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O universo da linguagem | Lançamento

O universo da linguagem | Lançamento

Três características básicas nos distinguem dos outros animais: o andar ereto, que deixou nossas mãos livres para pegar e fabricar coisas; um cérebro superdesenvolvido, que permitiu o domínio da natureza; e a linguagem articulada, que possibilita não só uma comunicação eficiente como o pensamento lógico e abstrato. Das três características, foi esta última a que representou nosso maior salto evolutivo, afinal nossos antepassados tiveram habilidade manual e inteligência por milhares de anos, mas somente a partir do momento em que despontou a aptidão simbólica, primeiramente nas pinturas e inscrições rupestres e, a seguir, com a invenção da escrita, a espécie humana passou de uma organização social tribal para a civilização.

Como aprendemos a falar na mais tenra infância e sem maior esforço, além de usarmos a linguagem no dia a dia da forma mais corriqueira, não nos damos conta do grande prodígio que é falar. A língua é não só um sofisticadíssimo sistema de comunicação de nossos pensamentos e sentimentos, mas sobretudo o instrumento que nos possibilita ter consciência de nós mesmos e da realidade à nossa volta.

Há muito tempo teólogos, filósofos e cientistas se indagam sobre o chamado “mistério das três origens” – do Universo, da vida e da consciência, e, das três, a mais embaraçosa para o nosso intelecto é exatamente a terceira, pois, sem a consciência, o próprio questionamento sobre a existência do Universo e da vida não seria possível.

Pois a consciência surge no momento em que se instaura em nossa mente a linguagem: bebês em fase pré-linguística não parecem ser autoconscientes; ao contrário, quando adquire a língua, por volta do segundo ano de vida, a criança sofre uma “amnésia” de sua existência anterior.

Apesar da importância crucial da linguagem em nossa vida, o estudo da língua ficou durante séculos relegado a segundo plano, resumindo-se a descrições pouco científicas deste ou daquele idioma de maior prestígio, e sempre de uma perspectiva predominantemente normativa. A linguística, ciência que estuda as línguas e a aptidão humana para a linguagem, tem apenas 200 anos de existência, só se dissociou definitivamente da gramática há cerca de 100 anos e, por tudo isso, é ainda pouco conhecida da maioria das pessoas.

No entanto, há uma imensa curiosidade sobre muitas questões ligadas à língua. Por que falamos? Como e quando a linguagem surgiu? Por que as línguas evoluem? Como nascem as palavras? Como a mente processa a linguagem? Como as línguas funcionam? Qual a relação entre a língua que falamos e o modo como vemos o mundo? A língua está mesmo se degenerando? Os outros idiomas são uma ameaça ao nosso?

Este livro reúne diversos ensaios que tratam do português e das línguas em geral, bem como de questões ligadas à linguagem humana e suas relações com a mente, a sociedade, a cultura e a civilização. A maioria deles é a adaptação de artigos publicados em minha coluna mensal na extinta revista Língua Portuguesa. Alguns deles foram publicados em outros veículos, bem como há alguns inéditos ou que haviam sido divulgados apenas em meu site pessoal. De toda forma, os textos originais foram em grande parte reeditados, atualizados, ampliados e, em alguns casos, combinados para ganhar maior organicidade no formato livro.

A obra divide-se em quatro partes. Na parte I, “Uma ciência chamada linguística”, procuro situar o leitor nas questões básicas da investigação nesse campo, como a definição de língua, a evolução linguística e as analogias entre os problemas e os métodos dessa ciência e das ciências naturais.

A parte II, “A mecânica da língua”, dedica-se a explicar o funcionamento das línguas em geral e da nossa em particular, desde os aspectos fonéticos, passando pelos gramaticais, até chegar às palavras, abordando questões espinhosas e polêmicas como o empréstimo e o estrangeirismo.

A parte III, “Linguagem, cultura e visões de mundo”, trata de nossa relação com a realidade circundante por meio da língua que falamos. Aqui são abordadas questões como o relativismo cultural e o modo como a visão que cada povo tem do mundo varia segundo a língua. Longe de vermos as coisas como são, vemos o que a nossa língua nos mostra. E como a língua é nosso principal ou único instrumento de pensamento, tendemos a confundir o real fora de nós com a representação mental que dele fazemos – representação esta formatada pela linguagem.

Finalmente, a parte IV, “A linguagem e a mente”, discute, dentre outras coisas, como o cérebro processa a linguagem, como a mente cria as representações internas que são o arcabouço do nosso próprio pensamento e a matriz de todas as manifestações simbólicas que podemos realizar, seja em nosso idioma nativo, em língua estrangeira ou em códigos não verbais (desenhos, gestos etc.), além de tratar das “ilusões” criadas pela linguagem, das quais a maioria de nós não tem a menor consciência.

O objetivo deste livro é discutir algumas ideias relativas à língua e à sua compreensão de um ponto de vista científico, levantando questões que considero relevantes e mesmo apaixonantes, as quais não haviam até o momento recebido a devida atenção.

Este não é um livro didático nem deve ser tomado como tal, embora possa, acredito, ser útil como leitura complementar no ensino de língua. De todo modo, o espírito que norteou a elaboração dos ensaios aqui contidos, e que norteia toda a minha atividade de pesquisador, pensador, colunista, conferencista e divulgador das ciências da linguagem, é o de levar ao leitor o deleite da reflexão sobre questões que têm um profundo impacto em nossa vida, embora não nos demos conta. Em suma, esta obra pretende ser um convite à contemplação da beleza e poesia contidas na linguagem e na ciência.


Aldo Bizzocchi é doutor em linguística e semiótica pela Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorados em linguística comparada na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e em etimologia na Universidade de São Paulo. É pesquisador do Núcleo de Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da USP e professor de linguística histórica e comparada. Foi de 2006 a 2015 colunista da revista Língua Portuguesa. Site oficial: www.aldobizzocchi.com.br.