Na década de 1950, por volta dos meus 7 anos, eu olhava para a janela da sala como se estivesse olhando através da janela do trem, como se estivesse dentro de um trem. Era uma fantasia inspirada na estação de Itaici, em frente à casa onde morávamos. Apesar de ser um bairro rural de Indaiatuba, Itaici tinha uma importância estratégica na malha da Estrada de Ferro Sorocabana: interligava dois ramais diferentes que percorriam as maiores regiões do estado de São Paulo − Sorocaba, Piracicaba, Campinas e Jundiaí. Doze trens diários de passageiros e carga paravam na estação, com destino a São Paulo, Santos e cidades do interior.
Na infância, ouvia muitas histórias sobre a estação e os ferroviários, entre eles meu pai, que, nos anos 1930, aprendeu o código Morse para ser telegrafista, seu primeiro emprego. Cresci à beira dos trilhos, presenciando embarques e desembarques, ouvindo apitos, descarrilamentos, manobras no pátio da estação. O trem passou a ter uma dimensão afetiva para mim: proporcionava viagens a passeio e me trazia de volta da Escola Normal Ave Maria, em Campinas, nos anos 1960. Até Itaici, a distância era de apenas 30 quilômetros, mas o trajeto durava uma hora e meia. Uma rotina que só não era mais monótona porque os irmãos Akaboshi, minha irmã Vera e eu cantávamos, ao som de um violão, sucessos da época. “Era um garoto que como eu amava os Beatles e os Rolling Stones”, gravada pela banda Os Incríveis, ecoava no vagão quase vazio: “Não tem amigos, não vê garotas, só gente morta caindo ao chão. Ao seu país não voltará, pois está morto no Vietnã. Stop! Com Rolling Stones. Stop! Com Beatles songs. No peito um coração não há, mas duas medalhas sim. Ratá-tá-tá-tá, tá, tá…”
A Guerra do Vietnã incitava protestos em todo o mundo, o movimento hippie pregava “paz e amor”.
Chegaram os anos 1970 e as viagens no Trem da Morte até Santa Cruz de La Sierra, na Bolívia, rota de mochileiros para Machu Picchu, nos Andes peruanos. Do outro lado do Atlântico, trens velozes partiam de estações imponentes da Europa, atravessavam os Alpes e cruzavam fronteiras em poucas horas.
Pamplona, no Norte da Espanha, foi um desses destinos. Em 1974, como muitos latino-americanos, participei de um curso para jornalistas na Universidade de Navarra. O ditador espanhol Francisco Franco ainda estava vivo – sua morte aconteceria um ano depois – e grupos separatistas praticavam atentados. A Revolução dos Cravos, em 25 de abril, derrubou a ditadura salazarista no vizinho Portugal, a mais longa da Europa (de 1933 a 1974), e levou Guiné-Bissau à independência no mesmo dia.
Cinco anos depois estive em Bissau, uma das cidades que conheci nos 40 dias de andanças por Senegal, Mali, Costa do Marfim, Alto Volta (Burkina Faso), Gâmbia e Guiné-Bissau. A viagem pelo Oeste começou no lendário trem “Dakar-Bamako”, uma expedição de 36 horas compatível com o espírito de aventuras da década de 1970. Além da população local, o comboio levava mochileiros que seguiam para Mopti e ao país dos dogons, povo isolado que resistiu a invasões imperiais e ao islamismo.
A rota atravessava florestas e savanas, paisagens que enchiam os olhos de quem buscava novidade e histórias para contar, como a do vagão superlotado que não se recusava a receber passageiros e bagagens pelas janelas em cada parada do caminho. Era um comboio diferente do trem de minha infância e adolescência, que parecia suave como o do poema “Trem de ferro” de Manuel Bandeira, que recitávamos na escola.
O trem, que me fez sonhar com viagens, levou-me para o mundo. Nas próximas páginas, escrevo sobre estudos de Jornalismo e Relações Internacionais na Espanha, na França e nos Estados Unidos (décadas de 1970, 1980 e 1990), e a respeito da cobertura da política externa brasileira de 1980 a 2003, na Gazeta Mercantil.
Maria Helena Tachinardi trabalhou 23 anos na Gazeta Mercantil (1980-2003). Foi correspondente do jornal em Washington, DC (1996-1998). Estudou jornalismo na Espanha (Universidade de Navarra) e na França (Centre de Formation et Perfectionnement des Journalistes). Cursou Relações Internacionais na Universidade Paris I – Panthéon Sorbonne, no Institut des Hautes Études de l’Amérique Latine (Paris III) e na Universidade de Brasília (UnB). Na Universidade de Maryland (EUA) estudou processos de tomada de decisão na política externa norte-americana. É autora do livro A Guerra das Patentes – o conflito entre o Brasil e os EUA sobre propriedade intelectual (1993).