Verão terrível. A sala não tem ar condicionado, nem sequer ventilação adequada na aula de História em uma importante universidade brasileira. O professor chama um aluno e uma aluna e pergunta por que eles estão de calça comprida, blusa, tênis e meia, não inteiramente nus, como seria mais adequado para suportar a temperatura ambiente.
A resposta certa é que não escolhemos, livremente, nossos hábitos. Somos fruto da História e, em certa medida, até da Geografia. Nossa vida concreta, as coisas que fazemos e até a forma como pensamos tem a ver, de uma maneira ou de outra, com quando e onde vivemos. Tivessem os jovens nascido no seio de um grupo indígena, provavelmente usariam menos roupas. Tivessem nascido há um século, provavelmente usariam mais roupas. Tivessem nascido em outra latitude, utilizariam roupas diferentes. Tivessem nascido dentro de um grupo religioso determinado talvez utilizassem véus, cabelos raspados, cores determinadas, símbolos diversos.
Quando professor em uma universidade paulista conversei com jovens que declaravam amar História Medieval; vários rapazes sonhavam ser guerreiros, combatentes montados em fogosos corcéis; várias garotas imaginavam-se nobres e disputadas damas. Eu atuava como destruidor de sonhos: assegurava que, caso o impossível se tornasse possível (eles viverem na Europa Ocidental, em plena Idade Média), teriam mais chance de serem camponeses, mãos grosseiras, trabalhando de sol a sol, vivendo pouco e mal, sem romantismo. Sim, havia nobres, havia sacerdotes, mas eram poucos, em uma sociedade injusta. Haveria alguma razão que justificasse alguma deferência especial para esses sonhadores brasileiros?
O ponto que quero ressaltar é frequentemente esquecido: práticas sociais não são leis naturais, embora estas possam ser consideradas e esgrimidas, quando um grupo quer provar a prevalência da sua tese… Por vivermos em sociedade (um homem não é uma ilha), nosso comportamento é determinado, fortemente, pelo tempo e pelo espaço. Por mais que um jovem nascido no século XXI possa acalentar a ideia de viver na Idade Media Ocidental isso não é possível. Tem gente que carrega valores, práticas sociais e preconceitos adquiridos na infância e adolescência pela vida toda. Todos nós conhecemos pessoas incapazes de evoluir, de se dar conta de que o tempo histórico se acelerou muito nas últimas décadas e que também ele precisa mudar. Ou ficar para trás, sonhando com cavaleiros e damas medievais…
A sociedade ateniense de 25 séculos atrás achava perfeitamente aceitável que homens mais velhos tivessem garotos, muitas vezes adolescentes, a seu dispor para práticas sexuais. Nossa sociedade do século XXI se revolta com os infelizes “desvios de conduta” de padres católicos e outros religiosos, que se aproveitam de sua ascendência sobre as famílias para atacar sexualmente rapazes da mesma idade que os garotos atenienses. O normal em uma sociedade não é normal em outra, daí não se dever usar a palavra “natural”, pois as práticas são sociais, referem-se a sociedades organizadas, não são naturais, não fazem parte da natureza…
Por outro lado a sociedade ateniense tendia a achar razoável que estrangeiros e mulheres não pudessem praticar a democracia direta, na Ágora, não tinham direito de falar, nem de votar. As sociedades modernas, pelo menos as ocidentais, discordam dessa prática, uma vez que tendem a permitir uma participação cada vez maior de gente jovem, estrangeiros naturalizados e, sem dúvida, de mulheres. No entanto, é frequente ouvir-se que a democracia começou na Grécia, e particularmente em Atenas. Mas os bons livros costumam lembrar que a democracia grega foi fruto do seu tempo. Tempo em que as mulheres não eram consideradas cidadãs. Tempo em que a escravidão era uma prática corrente. Mas tempo em que cidadãos livres, nascidos em Atenas, varões, com tempo disponível, tinham o direito de praticar a democracia. A democracia ateniense do século V AC. Impossível tentar compará-la com experiências democráticas contemporâneas.
Essas reflexões deixam claro que é impossível sacar modelos de muitos séculos atrás como exemplos válidos para os dias de hoje. A democracia grega não foi a democracia almejada pela Revolução Francesa, pelo modelo estadunidense, ou mesmo pela nossa Carta Magna de 1988. Os tempos são outros, as formações sociais são outras, a história de cada nação é específica.
Por outro lado, a aceleração do tempo histórico tem formado cidadãos que, um pouco mais velhos, não reconhecem o vocabulário usado, os hábitos dos jovens, as práticas sociais e culturais, a tecnologia, as formas de lazer. Nunca a História andou tão rápido. O fato de não se escrever mais à mão, nem com máquina de escrever, mas no computador, é uma mudança impressionante. O hábito de se ler, cada vez mais na tela, não no papel. A massificação do hábito de viajar. Músicas que são tocadas em estádios para dezenas de milhares de ouvintes ensandecidos, não mais para meia dúzia de nobres empoados. O fato de as pessoas não ficarem mais preocupadas com a opinião do líder religioso a respeito de temas como virgindade, práticas sexuais, casamentos de curta duração… De fato, as mudanças foram muito rápidas, ao longo de uma única vida…
Como dizia meu avô, inconformado, o tempo passa…
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.