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O sofrimento docente entre o Imaginário, o Simbólico e o Real

Com vistas a realizar uma abordagem sui generis e ao mesmo tempo elucidativa de um tema profundamente imaginarizado em nossos dias, a obra aqui resenhada leva a cabo uma articulação extremamente complexa e árdua entre os pensamentos de Sigmund Freud, de Hannah Arendt e de Paul Ricoeur. Ou, ao menos, a obra em tela articula com rigor e muita inventividade teórica e conceitualos respectivos conceitos de desejo, de ação e de narração, articulação essa que, e videntemente, nada apresenta de trivial.

Tal articulação teórica bem pode ser designada como “dialetização sem síntese”(ou até como “suplementação recíproca”), uma vez que a obrade Caroline Fanizzi não tenta empreender uma “síntese incestuosa” (ou mesmo uma “mútua complementação”) entre osreferidos autores (e, logo, entre seus respectivos conceitos).

Ou seja, de modo algum a complexidade e a singularidade desses pensadores e de seus conceitos são reduzidas a Um. Em outras palavras, de modo algum a alteridade entre Sigmund Freud, Hannah Arendt e Paul Ricoeuré achatada ao nível da mesmidade, da unicidade.

O sofrimento docente entre o Imaginário, o Simbólico e o Real

Ao contrário disso, é permanecendo fiel ao que há de irredutível entre os três autores que Caroline os articula de modo não todo. E é graças a esse procedimento meticuloso que a autora nos enseja vislumbrar aquilo que tem se tornado tão invisível no tocante ao sofrimento docente. E vale enfatizar aqui que tal invisibilidade decorre, por sua vez, dos excessos do imaginário arespeito do assunto em nossa época.

De certa maneira, a questão é que a noção de sofrimento docente se encontra atravessadapor toda sorte de certezas e de enuncia dos pretensamente inequívocos.

Isto é: por suposto, sabe-se muito bem o que é tal sofrimento, o que o causabem como o que ele causa–razão pela qual também costuma haver muita assertividade em torno dos meios higienistas a serem empregados com o fito de provocar sua alegada prevenção ou a sua dita erradicação. É que, como é de praxe, o higienismo de plantão procura seampararna lógica do“saber é poder”, isto é, no primado de uma racionalidade meramente tecno-instrumental ou tecnocientificista.

Mas foi exatamente com vistas a repelir tal primado que a autora se serviuda articulação não toda dos três pensadores acima mencionados, o que lhe deu então a preciosa oportunidadede simbolizar o sofrimento docente.

Ou seja, é em face de tanta certeza e assertividade que Caroline Fanizzi introduz certa equivocação simbólica em torno do conceito de sofrimento. Graças a isso a autora faz de fato com que o sofrimento docente acabe dando no que pensar.

Nesse sentido, a polissemia é o que move a obra em questão, e, assim, é por meio da análise filosófica e ao mesmo tempo psicanalítica que Caroline Fanizzzi engendra um pensar vivo sobre o problema do padecimento docente (de certa forma, pode-se até mesmo afirmar que o “problema” em questão só ganha o legítimo estatuto de problema teórico e conceitual exatamente porque a autora o recoloca em outro lugar, à margem dos clichês que assolam o debate contemporâneo sobre o tema)

Com isso, de um só golpe se descalcificam as certezas banais–porém muito difundidas e consentidas-acerca do sofrimento docente bem como se injeta em tal sofrimento uma margem de (in)consistência simbólica e, assim, de reflexividade, o que permite por fim uma confrontação muito mais viva-e bem menos sofrida-com o real da educação no que toca às vicissitudes do exercício da profissão de professor.

Desse modo, a obra em tela nos dá a ver,portanto, que o sofrimento docente é inversamente proporcional ao reconhecimento do real (do mal-estar) na educação.

Em outras palavras, o sofrimento docente é tanto menor conquanto se reconheça a fragilidade constitutiva (ou seja, irremediável) do ato educativo.

Ou ainda: o sofrimento docente tende a se dissolver em face da assunção (de modo algum indolor) do impossível intrínseco à educação (isto é, da impossibilidade–sempre que da educação se trata-de adequar os meios aos fins e, assim, de assegurar de uma vez por todas que se está fazendo a coisa absolutamente certa–isto é, inequívoca-ao educar as crianças e os jovens).

Ainda em outras palavras: o sofrimento docente se apequena quando se renuncia–conscientemente, mas, sobretudo, inconscientemente–à crença de que houve, de que há ou de que haverá o fundamento último de toda educação, fundamento destinado a pretensamente garantir que A educação ideal (Mannoni, 1973/1977) possa vir a ter lugar nas famílias e nas escolas-quando, na verdade, é apenas uma educação que pode eventualmente se mostrar possível conquanto os adultos não renunciem a educar os maisnovos e, portanto, assumam os riscos e as incertezas incontornáveis que a educação necessariamente comporta, comportou e comportará.

Entretanto, há em nossa época um empuxo extraordinário na direção de um sofrimento docente reduplicado, exacerbado. Em particular, o sofrimento se encorpa na medida em que os professores são lançados-a partir do discurso pedagógico imperante atualmente-a uma “polarização” entre a onipotência e a impotência. Sob tal polarização é que ora se admite que tudo é possível na educação, e logo depois, que nada é possível na mesmíssima educação das crianças e dos jovens(Cifali, 2009).

É que na modernidade tardia em que vivemos-isto é, nessa nossa modernidade tecnoburocrática e, logo, consideravelmente declinada quanto à ação política (Batista, 2012), nunca faltam os experts de plantão.

E eles, por sua vez, jamais abdicam de prescrever aos professores um papel docente sempre mais eficaz do que todos os outros papéis, uma metodologia sempre mais certeira do que todas as antecedentes, e uma tecnologia necessariamente mais avançada que a mais avançada das tecnologias–fatores alegadamente capazes de assegurar toda sorte de proezas em termos educacionais.

E estando pretensamente em posse dos ditos melhores papeis, métodos e tecnologias disponíveis no mercado de desenvolvimento de competências e habilidades, que professor não haveria, afinal, de se acreditar onipotente e de admitir que tudo é possível quando se trata de educar?

Todavia, nenhum desses expedientes, traquitanas e prescrições acaba de fato por conferir à educação as garantias que só no mundo da publicidade e do marketing se crê que possam porventura existir.

E assim o professor, tomado inicialmente por tal ilusão da onipotência, é então confrontado ante o real da educação e suas vicissitudesao tentar educar seus alunos segundo o receituário do expert da moda, oportunidade na qual esse mesmo professor se imagina submetido então a uma suposta impotência docente, uma vez que as certezas tecnopedagógicas se dissolvem noar em face da concretude de uma escola, desta ou daquela sala de aula, de alunos de carne e osso ou, simplesmente, em face das circunstâncias educacionais da hora e da vez. E, logo, ailusão do professor passa a ser a de que nada é possível em se tratando da educação de seus alunos.

Contudo, dado que quem que se entrega à impotência anseia (sem o saber) pela restituição da pretensa onipotência perdida, então a miséria neurótica imediatamente repõe a expectativade que outro novíssimo papel, de que mais um implacável método ou de que mais uma nova e revolucionária tecnologia venham enfim a resolver de vez a situação…E, dessa forma, o automatismo da miséria neurótica se relança novamente no exercício da profissão docente, produzindo assim mais e mais sofrimento.

Pois bem, é apenas mediante o reconhecimento do impossível–isto é, do inalcançável sem cura-da educação que um professor pode então se desvencilhar de tamanha miséria psíquica e existencial (até porque impossibilidade não é impotência!). E, da mesma forma, é apenas mediante esse reconhecimento que um professor pode então dar outro destino ao sofrimento que costuma acompanhar o execício de sua profissão nesses nossos dias tão tecnoburocráticos e mercadológicos.

Em tais termos, eis assim que o sofrimento docente, como bem nos aponta Caroline Fanizzi, difere do mal-estar na educação:

[…] podemos pensar que estar-mal, no sentido de uma relação que jamais se ajuste ou se previne, é algo estrutural às relações humanas e, ainda, agudizada no educar. O que oprofessor contingencialmente faz do impossível que estrutura seu ofício muda o fenômeno–mais ou menos afortunado–que chega até nós. O mal-estar docente–e não o sofrimento–é efeito da fragilidade constitutiva do educar, efeito de um (des)encontro que jamais se ajusta ou dissolve (Fanizzi, 2023, p. 43).

De tal sorte, enquanto o sofrimento docente é contingente, o mal-estar na educação não cessa de não se escrever (ele resiste à simbolização). O sofrimento docente é, assim, não todo curável, enquanto o mal-estar na educação é radicalmente incurável. O sofrimento docente é mais ou menos contornável; já o mal-estarna educação é tragicamente incontornável. Ou seja, enquanto um cessa de se escrever,o outro não cessa de não se escrever.

Ou em suma: o sofrimento docente tem um quê de fixação gozosa, enquanto o mal-estar na educação é real. Todavia, o sofrimento do professor, por outro lado, apresenta também suaponta simbólica,tal como adverte muito suspicazmente a autora do livro ora resenhado,fato que merece ser amplamente destacado aqui.

É que tal como Caroline insiste com razão, no sofrimento docente há sempre um sujeito, isto é,há um alguém a sofrer.

No sofrimento docente há sempre um alguém que não se adapta ao inaceitável (ou seja,que não se adapta ao que não merece adaptação).

No sofrimento docente,há sempre um alguém que resiste à desertificação tão disse minada em nossa modernidade tardia (tal como já foi aludido aqui,a declinação do político é, afinal, hegemônica em nosso tempo histórico).

E, por fim, a questão é que um alguém jamais é um Zé Ninguém; um alguém nunca é, tampouco, uma coisa, um objeto. Ou seja, o sujeito é o que faz ser possível haver lugar para um alguém em detrimento de todo anonimato tecnocrático imperante hoje em dia.Sendo assim, a equivocação, a simbolização que Caroline imprime às certezas que calcificam o sofrimento dos professores enseja refletir que o sofrimento é, em sua dimensãoimaginária, um recuo em relação ao desejo de um docente. Nesses termos, há aí um gozo decorrente do fato de alguém se objetificar na medida em que recuou do desejo que o habita(Fanizzi, 2023, p. 178).

Todavia, o sofrimento é também, agora em sua dimensão simbólica, perseveração do desejo(id., ib.).E, sobretudo, quando se trata de um sofrimento narrado.Logo, o sofrimento de um docente pode vir a ter um destino Outro conquanto o sofredor narre tal sofrimento para si, para um outro alguém, ou até especificamente para um psicanalista.

Eis que é, decerto, no campo da palavra e da linguagem que o sofrer de um professor se torna metaforizável,e o que assim lhe faculta deslocar-se do gozo para o desejo enunciativo e até mesmo para a ação política (quanto a isso, o leitor desta resenha não deve perder a preciosa oportunidade de se deparar com o que Caroline escreveu a respeito da trajetória de Violeta Leme e a narração sob a forma de livro–a saber, O calvário de uma professora-que a última realizou a respeito de sua experiência como professora no Estado de São Paulo no início doséculo XX!).

Uma vez mais, não foi sem boas razões que Caroline sabiamente voltou nossos olhos para a articulação não toda entre desejo, ação e narração. Desse modo, ela nos ensinou que o sofrimento docente é humano (demasiadamente humano); mas que, uma vez narrado, o sofrimento possui então o dom de nos humanizar,e isso sobretudo a nós, que somos professores submetidos aos dita mes e imperativos de um tempo tão tecnocrático e desumano.

Fonte: Revista Estilos da Clínica,2024, V.29, nº1 – por Douglas Emiliano Batista

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