A emancipação feminina deveria provocar uma diminuição significativa nos casos de feminicídios praticados por maridos, companheiros, namorados, candidatos a tal ou “ex” de qualquer tipo. Era razoável pensar assim, uma vez que emancipação implica em mais oportunidades para estudar, trabalhar e ser independente. Com maior liberdade econômica, as mulheres não precisariam mais se submeter a um relacionamento abusivo e deletério para sobreviver. Elas seriam donas de si próprias. Deixariam de ser dependentes dos maridos. Poderiam cuidar de sua vida sem prestar contas a quem não lhes interessasse. Escolheriam seus caminhos longe de qualquer homem violento, autoritário, ou simplesmente constrangedor. Como consequência, correriam menos riscos de ser assassinadas. Mas, ao que dizem os números, isto não aconteceu. Por quê?
De fato, as notícias de mortes de mulheres perpetradas por indivíduos ciumentos, vingativos, truculentos ainda são numerosas e assustadoras. É verdade que a maior liberdade nos costumes, assim como a maior independência financeira, tem conseguido livrá-las do contato diário com a violência doméstica e dos assédios e abusos de todo tipo. Por outro lado, não é arriscado dizer que esses mesmos sinais de poder feminino também provocam reações ainda mais radicais daqueles que não admitem ser desafiados: “se a mulher não quer ser minha, se não tenho outra forma de obrigá-la a me obedecer, vou matá-la”. O machismo dá razão e incentivo aos criminosos que chegam ao extremo de eliminar uma vida por não poder mais controlá-la. Nesses casos, num paradoxo infeliz, parece que a própria emancipação feminina exacerba a violência.
Não se pode negar os progressos. Os defensores dos assassinos já não alegam, cinicamente, que a violência tenha ocorrido por “excesso de amor”. Contra essa frase feita, a sociedade se deu conta de que a verdade estava com quem dizia que “quem ama não mata!”. Apelar, diante de tribunais e da opinião pública, para a batida e vazia “legítima defesa da honra” não garante mais a impunidade descarada que fez a fama de casos amplamente noticiados várias décadas atrás. Está consagrada a ideia de que um crime não pode ter a função de limpar o bom nome do assassino, supostamente manchado pela vítima adúltera. Alguns criminosos ainda tentam culpar a vítima – falam de suas roupas “provocantes”, sua insolência, seu comportamento liberal, sua promiscuidade, sua inadequação… –, mas sem o sucesso de antigamente, pois tais pretextos são cada vez menos aceitos.
O Brasil mudou, felizmente. A própria Lei do Feminicídio (no Código Penal desde 2015), que define como homicídio qualificado (portanto, sujeito a uma pena maior) o assassinato de uma mulher simplesmente por ser mulher, é um sinal evidente desse avanço. Significa o reconhecimento por parte da sociedade e do Estado da especificidade de um crime motivado pelo menosprezo à condição de mulher. A punição é tanto um reflexo do surgimento de uma nova consciência social, quanto um alerta aos machistas: “Isto vai acabar, isto tem que acabar”.
Historicamente, percebemos uma evolução desde o tempo da legitimação inconteste do assassinato de mulheres para sua condenação social. Antes, sem questionamentos, a ideologia patriarcal – disseminada, institucionalizada e mesmo garantida por leis – justificava a submissão feminina e alimentava nos homens o sentimento de posse sobre o corpo das mulheres, esposas, filhas moças ou companheiras sob sua tutela, permitindo-lhes recorrer à força para discipliná-las e controlá-las, como se elas fossem objetos pertencentes a um macho determinado e não um ser humano igual com os mesmo direitos. Hoje, políticas públicas, acordos internacionais, leis específicas procuram proteger as mulheres, coibir e punir os crimes contra elas. As próprias mulheres lutaram (e ainda lutam) por igualdade de oportunidades, educação de qualidade, condições de trabalho adequadas, ampliação dos direitos sobre seu corpo e liberdade de expressão. Não podemos deixar que suas conquistas se voltem contra elas. Não podemos admitir retrocessos. Essa cultura que ainda leva aos altos índices de feminicídio tem que ir para onde merece: o lixo da História.
Carla Bassanezi Pinsky é historiadora e editora de livros. Doutora em Ciências Sociais (área de Família e Gênero) pela Unicamp, mestre em História Social pela USP, autora de Mulheres dos Anos Dourados (2014), Pássaros da Liberdade (2000); coautora de História das mulheres no Brasil (1997), Nova História das Mulheres no Brasil (2012), História na sala de aula (2003), Novos temas nas aulas de História (2009), História da cidadania (2003); organizadora de Fontes históricas (2008) e O historiador e suas fontes (2009) entre outros livros – todos esses foram publicados pela Editora Contexto. Tem textos publicados em revistas acadêmicas como a REF.