O Brasil é um país cuja sociedade é o agregado estrutural de três características que formam sua peculiaridade, mesmo entre os países nascidos, como ele, do colonial-escravismo: cidade e fazenda nascem juntas e interligadas; agricultura e pecuária não formam atividades em si, mas componentes junto à indústria e a finança do sistema agroindustrrial-financeiro que é a base e estrutura da nossa formação social; e a indústria distingue uma dualidade de indústria de beneficiamento e indústria de transformação que nasce e se desenvolve de modo conflitivo e combinado dentro dessa estrutura agroindustrial.
O motor do desenvolvimento dessa sociedade é a evolução e interação dessas duas formas de indústria, a indústria de transformação puxando o desenvolvimento e a indústria de beneficiamento definindo a estruturação do conjunto da economia e da sociedade em sua progressão, isto desde o período da agroindústria do açúcar na fase inicial da colônia até o período da agroindústria da cadeia da soja e carne do presente.
Interação de que deriva toda a diversidade dos brasis que formam o todo de um só Brasil, as diferentes etapas de arrumação do arranjo espacial que define os momentos e estruturas temporais de nossa evolução socioeconômica, os problemas e entrelaces que ligam cidade e fazenda, cidade e campo, cidade e urbano num amplo leque de combinação desigual e inacabada, o todo singular e contraditório que é o país no contexto da América Latina e do mundo.
Não é uma trajetória sem tensões e conflitos, entretanto. Há sempre uma tendência de ruptura nessa relação entre as formas distintas de indústrias, dado cada qual no fundo tender a constituir um modelo e caminho diferente de desenvolvimento possível da formação social brasileira: o modelo agroindustrial-financeiro, que reiteradamente se reafirma, e o modelo urbano-industrial do conjunto, que continuamente o contesta. O modelo agroindustrial-financeiro vindo a manter a forma e natureza histórica da economia e sociedade do Brasil e o modelo urbano-industrial propendendo a instaurar uma modalidade de formação econômico-social nova e oposta àquela.
Tendência cujos exemplos são o momento do ciclo do ouro, que faz do século XVIII um claro período de economia e sociedade nitidamente urbanas entre os momentos agroindustriais da cana de açúcar e do café, e o momento da então chamada fase da revolução industrial do país, de uma economia e sociedade de um todo nacional industrial e urbano, entre os momentos agroindustriais do café e o atual da agroindústria da cadeia da soja.
Brasil, espaço e tempo tem essas fases e trajetos como seu tema e assunto. É pautado pela investigação e análise de uma abordagem de solo próprio, em que a geografia se mostra um campo de estudo voltado a se somar aos demais (a história, a sociologia, a antropologia, a economia), nos quais a sociedade brasileira é já um objeto de reflexão sistemática, múltipla e amadurecida, ajudando na busca do aclaramento do desafio recorrente de responder à indagação do que é e da cara enfim que tem o enigma Brasil.
Ruy Moreira é professor dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Ceará (UECE). Dedica-se à pesquisa nos campos da teoria (epistemologia-metodologia-ontologia) da Geografia e da teoria e compreensão global da sociedade brasileira; sua natureza e conflitualidades explicadas a partir das armas da teoria geográfica. É autor de artigos e livros sobre estes dois campos, sobre cujos entendimentos específicos e seus entrelaces publicou pela Contexto Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica, a trilogia O pensamento geográfico brasileiro (volume 1 as matrizes clássicas originais; volume 2 as matrizes da renovação; volume 3 as matrizes brasileiras), Pensar e ser em Geografia, Geografia e práxis: a presença do espaço na teoria e na prática geográficas, O discurso do avesso: para a crítica da geografia que se ensina, Sociedade e espaço geográfico no Brasil: constituição e problemas de relação e Brasil, espaço e tempo.