A aparência física de Juan não era das melhores. Tudo bem, uma das enfermeiras que dava plantão na clínica de repouso o havia barbeado, ainda antes do almoço, porque logo em seguida o pescador receberia a primeira visita daquele domingo. Mas isso não era suficiente para levantar seus olhos presos ao chão.
– Juan, olha um pouco pra cima, você vai ficar com dor no pescoço – disse uma enfermeira, sem obter resposta.
Ele olhava para lugar nenhum, para o lugar mais baixo, onde todos pisavam. Era como se estivesse desconectado com o resto do mundo, ao menos daquele pequeno mundo onde assistia TV em tempo integral.
A chuva choveu forte. Os pés de acácia, a dália amarela e o jasmim branco se esforçaram para se recompor. Do outro lado da calçada, numa árvore idosa, a casa de abelhas ameaçou despencar. Enquanto isso, uma enxurrada terminava o trabalho de lavar a calçada, levando tudo para a parte baixa do bairro, que novamente aprisionava as pessoas para que ela pudesse se esparramar a vontade. O bem-te-vi ignorou tudo isso e cantou o seu canto rotineiro. Quase não foi notado.
Francesca chegou. Seu avental branco trazia marcas da muita água e da lama derretida que a esperava. Ao descer do carro, por um descuido, faltou bem pouco para que o estetoscópio se jogasse água afora e se livrasse do pescoço da médica de plantão.
Aquele clima encharcado, o excesso de água na calçada, tudo trouxe de volta a lembrança do que Francesca considerava seu pior fracasso na profissão e de como se sentiu frustrada. Ela sentia-se cobrada e por isso investia tempo e trabalho para demonstrar a si mesma uma esperança teimosa de nunca mais viver algo parecido e, com isso, evitar o risco de ser novamente criticada. Felizmente seu CRM estava a salvo.
A clínica ocupava um sobrado num bairro de classe média, cheio de história construída por imigrantes italianos. Na parte superior havia um consultório médico e uma enfermaria, equipada o bastante para atender sofrimentos menores apresentados por um dos 28 internos, um grupo cujo número de mulheres predominava.
– Vamos lá, Juan, vamos ver como anda a sua saúde – disse Francesca.
– Não sei doutora, a minha saúde tá meio doente, foi minha filha que falou isso.
– Meio doente? Como é uma saúde “meio doente”? Me explica.
– É uma saúde que parece peixe que não quer sair da água, e quer arrastar a gente!
– Vamos cuidar do senhor, fique tranquilo.
Aguinaldo apareceu de repente, saído do nada. Ficou ali parado, diante dos dois, só observando.
– Olha quem está aí, doutora – Juan o viu primeiro pelo espelho na parede lateral, próxima à sua poltrona, que cederia a outra pessoa apenas se ela tivesse o devido mandado judicial para isso. A almofada xadrez, com predominância da cor verde, havia sido presente de um filho que não perdia uma boa partida de futebol.
– Olha quem está aí, Juan, o Aguinaldo. Ele tem cuidado bem do senhor? – Francesca riu enquanto olhava para os dois, propondo um jogo, uma brincadeira.
– Outro dia ele cuidou das minhas pernas, mexeu com elas pra lá e pra cá. Mas depois do banho ele quis pentear meu cabelo. Não gostei…
– Do que o senhor não gostou Juan?
– Não gostei porque eu não queria pentear. E ele nem é enfermeira.
– Mas era pro senhor ficar mais bonito – disse Aguinaldo. Suas pálpebras caídas sugeriam excesso de seriedade, e isso dificultava seu relacionamento com os idosos.
– Eu não quero ficar mais bonito, saco! Vai pra lá, vai! – disse Juan.
Aguinaldo saiu de mansinho, rindo em silêncio, porque não queria que os outros internos pensassem que fosse deboche. Subiu. Tiraria cinco minutinhos de descanso na Enfermaria, sem se entregar muito ao conforto da poltrona que o convidava, insistente, para uma soneca. Sentado, pensou no medo de envelhecer, e queria chegar lá em boas condições. “SDS, Só Deus Sabe” – pensou.
Francesca subiu lentamente os degraus da escada caracol e foi primeiro até a Enfermaria.
– E aí, Aguinaldo, tá difícil cuidar do Juan? Ele dá muito trabalho?
– É, doutora, ser fisioterapeuta em clínica de repouso… O pessoal reclama muito.
– Eu sei. Também não é fácil ser médica. Parece que eles sempre querem aumentar as coisas. E a gente fica meio perdida.
Faz parte, né, doutora, faz parte… – Bom, vou descer.
– Meu pai disse que o senhor está maltratando ele – disse a filha mais velha, dentro de uma camisete azul, calça jeans e rasteirinha cor de laranja muito madura. Lutando com um dente quebrado, para não comprometer a pronúncia, a jovem esquelética exibia lábios finos e quase robóticos.
– Não, claro, não estou maltratando o Juan. Só estou fazendo o meu trabalho – disse Aguinaldo.
– E qual é o seu trabalho?!
– Eu sou o fisioterapeuta que cuida dele. Você sabe, ele sente muita dor nas pernas.
– Ele se queixou de que você penteou o cabelo dele na marra, foi isso?
– Não, eu só penteei o cabelo dele, só isso. Pra ele ficar mais elegante, esnobar o cabelo bonito, cor de açúcar mascavo – não é, Juan? – disse, sorrindo um sorriso amigável.
– Você está insinuando que meu pai não é elegante?
– Aguinaldo, vem aqui um pouquinho, rápido. É pra atender a dona Rita, vê lá o que ela quer – disse uma enfermeira. O caso parecia urgente, ia além da questão de pentear ou não pentear.
O fisioterapeuta sumiu, o quarto de dona Rita era o último do corredor. A dor no braço direito havia aumentado repentinamente.
– Fica calma, fica calma, dona Rita. Eu vou chamar a médica, fica calma, tá?
– Chama, meu filho, chama… Acho que de hoje eu não passo.
Francesca já havia deixado sua sala. Mais do que isso, tudo indicava que a médica já ia longe.
– Pronto, dona Rita, pronto. A médica disse pra eu passar essa pomada no seu braço.
– Que pomada é essa?
– É uma pomada especial, a senhora vai ver, a dor vai passar rapidinho.
Aguinaldo aplicou uma dose generosa do remédio sobre o braço da mulher, fez massagem devagarzinho, trabalhou o quanto pôde pra que ela se sentisse confortável de novo.
Francesca já estava a algumas quadras dali, próxima à estação do metrô. Ligou para a clínica a fim de saber como estavam as coisas por lá, e trouxe de volta seus olhos para a passarela.
– Oi, filha, ainda bem que cheguei a tempo de te encontrar.
– Oi, mãe, tudo bem. Algum perrengue na clínica? Você está tensa!
– Nada não filha, está tudo bem, vamos pra casa. Fez boa viagem?
– Fiz, foi boa, mas a chuva não estava no programa, quase não aproveitei a praia. Tudo bem, valeu assim mesmo, a galera estava bem animada.
– Aproveita o período de férias pra descansar. Depois você sabe, né, você sabe como é a faculdade de Medicina, o que ela exige dos alunos.
Francesca deu a partida na SUV preta. No caminho de volta pra casa, num bairro afastado dali, o carro espaçoso foi preenchido por uma boa dose de silêncio. A médica aproveitou para rascunhar mentalmente o que publicaria nas redes sociais compartilhando sua experiência profissional. O rádio do carro tocava melodias produzidas por grandes nomes da MPB, inclusive aquelas de protesto, brotadas no período da ditadura.
De qualquer modo, a filha teria falado alguma coisa a respeito de algo que somente ela e Jesus Cristo sabiam o que era. Não falou.
De qualquer modo, a mãe teria falado alguma coisa a respeito de algo que somente ela e Jesus Cristo sabiam o que era. Nem uma palavra.
O celular tocou. Francesca deveria voltar imediatamente para a clínica.
A filha almoçou sozinha naquele dia de céu nublado e solitário. Somente ela e Jesus Cristo sabiam o que estava sentindo.
Mas sua cama estava a alguns metros da cozinha. Cansada e de estômago cheio, dormiria o necessário para esquecer o assunto por algum tempo. Deitada, pensou em qual seria a história a ser contada pela mãe. Qual seria a história se ela resolvesse contar.
Se Francesca abrisse espaço, a filha tentaria começar a falar. Ou, a ouvir. Apenas ensaiou um cochilo. Um bem-te-vi ignorou tudo isso e cantou o seu canto rotineiro. Quase não foi notado.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao