Assisto a um telejornal e vejo uma notícia que não é novidade, acompanhada do vídeo que comprova a narração do repórter. Contra fatos não há argumentos, aprendi ainda adolescente.
Dessa vez, o protagonista é um prefeito do Nordeste. Ele discursa, em campanha, trabalhando pela sua reeleição, que considera merecida. Sem o menor pudor, confirma que roubou, sim. É autêntico, verdadeiro. Mas destaca, senhoras e senhores, gente maldosa de todos os rincões deste imenso país, que foi bem menos do que o seu antecessor. Orgulhoso, lembra que este, sim, levou muito dinheiro dos cofres públicos. O motivo do desvio feito pelo adversário: construir uma mansão, a mais bonita da cidade, segundo o candidato.
Como se vê, a corrupção no Brasil foi institucionalizada. A piada já está pronta. Nesse sentido, a política é forte concorrente dos programas de humor. Quando chegam com alguma coisa aparentemente inédita, os profissionais do riso, coitados, já foram superados de longe pela classe política. Não fosse pelo veneno que exalam, esses palacianos são engraçadíssimos.
É preciso agir para reverter esse estado de coisas. O problema é que, vamos admitir, não estamos muito interessados nisso. Senão, observe: por que o Bolsonaro foi eleito, ele e seu discurso de ódio, homofobia, xenofobia, racismo, violência etc.? É triste admitir, mas, exceto algumas pessoas, nós também temos um pouco desse perfil grotesco. E Bolsonaro personifica, dá voz ao que temos de pior. Por isso, foi tão confortável colocá-lo na presidência. [Por isso será tão confortável, para ele, permanecer em Brasília. Primeiro, uma facada, que o esconde do debate e protege a sua falta de repertório. Agora, a Covid, que lhe dá o pretexto, fácil, chamado “Auxílio emergencial”, para comprar milhares de votos].
Ah, não é bem assim?! Hoje não nos referimos a alguém identificando esta pessoa como um “veado, que só faz serviço de preto etc.”. Também não afirmamos que “lugar de mulher é na cozinha”. Assim como ninguém sai por aí gritando que “favelado é gente perigosa” e que “só tem direitos humanos pra bandido, pessoas que deviam apodrecer na cadeia”. Isso, apenas para exemplificar. Mas será que já não dizemos nada disso, por que realmente mudamos o nosso jeito de pensar? Ou trata-se de uma maquiagem estratégica feita no discurso?
Será que mudamos? Ou decidimos que é melhor evitar o risco de constrangimento, demissão, processo, prisão e coisas do gênero por alguma coisa dita no lugar e na hora erradas? O que transformou Bolsonaro em “mito” foi nossa adoração, escondida, pelas coisas que ele teve a coragem, ausente em nós, pessoas educadas e cautelosas, de assumir e incorporar.
O Bolsonaro não faz de conta. Ele é autêntico. Tudo bem, sua autenticidade é diabólica. Mas ele é autêntico, verdadeiro. Pensa e diz o que está na mente e na língua calada de milhares de brasileiros que vivem uma aparente “mudança de mentalidade”. Inclusive gente que se esconde dentro das igrejas, porque acredita que o mundo não precisa das soluções inventadas pela ciência, mas da ignorância que justificaria um segundo dilúvio. Isso, como se alguém pudesse se salvar dessa tragédia em seus palácios. Sinceramente, não acredito que, no momento em que, pela segunda vez, Deus pronunciar a ordem “Noé, faz backup, porque eu vou deletar”, Bolsonaro e Trump se encontrarão na Arca.
É por essas e outras que as pessoas – e aqui não me refiro ao “povo”, como se eu pertencesse à “aristocracia” – tratam do assunto sem reconhecer ou lhe dar a devida relevância.
Reverter esse quadro demanda o envolvimento de gente que conhece as técnicas necessárias ao seu desmantelamento. Elas existem e estão por aí. Vivem desarticuladas, forças que não se encontram e não se falam. Tudo isso requer, também, uma liderança capaz de colocar todos os agentes em cena para a busca de resultados.
A solução encontrada ao fim desse processo tem de ser levada, rapidamente, ao maior número de pessoas. Sobretudo àquelas que mais precisam e são vítimas de injustiças causadas pela sua falta. O fim da corrupção vai trazer benefícios que atendem aos nossos valores mais significativos. Dentre eles, o direito a uma vida digna, com liberdade, educação, saúde, segurança etc. Mas, e desgraçadamente, nada disso vai acontecer, enquanto não existir transformação pessoal com a radicalidade que a situação exige.
Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]