O livro tem muitas datas comemorativas, mas todos os dias são o dia do livro para quem tem a leitura como hábito. Da minha parte, confesso que amo os livros desde que me lembro por gente. E o tempo só fez esse amor crescer.
Meus pais, imigrantes, não tiveram oportunidade de realizar estudos formais, mas sempre se dedicaram à leitura, tanto em português quanto na língua iídiche. E foram felizes em passar esse hábito aos filhos. Quando deitávamos para dormir, minha irmã e eu, tínhamos a oportunidade de ouvir meus pais lerem para nós contos ou páginas de romances que estimulavam nossa imaginação e desenvolviam nosso amor pelas letras. Por conta disso tratei de aprendi a ler muito cedo. Queria descobrir, eu mesmo, os tesouros que os leitores desvendavam naqueles papeis impressos e encadernados e que não eram revelados a analfabetos como eu. Pelo menos até os cinco anos de idade…
Devo confessar, se meus leitores cúmplices não divulgarem a informação confidencial, que nunca gostei muito da escola. Não que meus cursos tivessem sido particularmente ruins. Eu não gostava era da instituição mesmo. Não tinha paciência com os mestres explicando, pela enésima vez, a mesma coisa, só porque a burrinha da classe ainda não tinha entendido. De resto, escola era algo aborrecido mesmo. Com poucas exceções (Tortello e Ruy Nunes, nunca esquecerei o nome desses grandes mestres) os professores não me encantavam. Então eu lia. Livros escolares eu destrinchava com pouco esforço, o suficiente para passar de ano, mas lia o que aparecia na minha frente, sem muita ordem, sem disciplina, quase sem orientação, mas com intensidade cada vez maior. Lembro-me quando o professor de português perguntou, depois das férias do meio do ano, o que tínhamos aproveitado para ler. A maioria dos alunos não havia lido nada. Penso, hoje, que meu relatório devia parecer pedante, eu perguntava ao professor se ele queria que eu começasse pelos franceses, russos ou americanos, pois nessa fase eu já lia com alguma ordem… Eram dezenas de livros e eu tinha notas de leitura de cada um deles.
Se o professor Tortello me estimulava na leitura de obras de ficção, Ruy Nunes, que ensinava Filosofia, me provocava com sua visão filosófica assumidamente religiosa, cristã e tomista. Para poder discutir com ele, para poder enfrenta-lo, eu, que me considerava materialista, aceitei ler as obras que ele indicava, como o próprio Thomaz de Aquino e seus seguidores, como Jacques Maritain. Mas, para robustecer meu arsenal de argumentos, lia mais cuidadosamente ainda os autores que criticavam a visão aristotélico-tomista, assim como os que defendiam concepções contrárias, científicas, materialistas, como Bertrand Russel. O professor, sabendo que eu sempre me armava para contestá-lo, aceitava o desafio: dava suas as aulas em pé, ao meu lado, onde quer que eu me sentasse, mesmo porque eu era o único que se interessava, mesmo que dialeticamente, por seus ensinamentos. Confesso que me divertia (e me envaidecia) ver o professor chegar, fazer a chamada, me procurar, localizar e caminhar para onde eu estava para iniciar seu monólogo. É verdade que ele era um pouco dogmático e me punia nas notas por eu não concordar filosoficamente com ele e até contestá-lo. Também é verdade que falava com tanto entusiasmo que chegava a cuspir, para azar de quem ficava sentado perto dele (e esse alguém era sempre eu). Mas era culto, inteligente, tinha um arsenal de argumentos respeitáveis e me levou a ler coisas que eu nunca teria lido sem tê-lo como professor.
Passei de leitor a autor de livro quando, recém-formado, fui convidado a participar do livro Brasil em perspectiva, em companhia de importantes historiadores e cientistas sociais do país. O sucesso do livro, que teve dezenas de edições sucessivas, me deu confiança para continuar escrevendo. Já professor na Faculdade de Filosofia de Assis passei a fazer resenhas de livros no Suplemento Literário do Estadão, o que me obrigou a ler de modo mais crítico, mais impessoal. Alguns anos depois, com o doutorado na USP em mãos, publiquei uma obra que está no mercado há mais de meio século, 100 textos de História Antiga. Nunca parei de escrever e publicar, mas isso não me bastou. Queria ajudar a circulação do saber, muitas vezes aprisionado dentro dos muros acadêmicos. Minha concepção é a de que o saber, produto socialmente produzido, deveria circular para que todos pudessem ter acesso a ele. Isso tem a ver com estruturas editoriais que ajudassem os pesquisadores a se comunicar com a sociedade toda, não apenas com seus pares. Assim eu concebi e comecei a editar livros. Não apenas publicar o que já está pronto, mas estimular pesquisadores a escrever, ajuda-los a organizar um projeto editorial, a pensar na adequação entre seu saber e a necessidade da sociedade.
Um livro é uma árvore generosa, que dá sombra e frutos, mas também sabe espalhar sementes. Sem livros o mundo se torna um imenso deserto.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.