Meus leitores com mais de 50 anos de idade nasceram em um país rural. Hoje somos uma nação urbana, cheia de cidades, algumas delas enormes. Brasília, que acaba de se tornar a terceira maior, batida apenas por São Paulo e Rio de Janeiro, é uma exceção, pois começou a ser construída após ser planejada. A regra, em nosso país, é não planejar nada, ou só planejar alguma coisa depois que as cidades estão de pé, cresceram e incharam, trazendo problemas insolúveis. Basta ver o problema da Cracolândia, em pleno centro de São Paulo. Uma parte importante da cidade é subutilizada porque algumas centenas de dependentes de drogas se instalaram em ruas, estimulados por um comércio que supostamente não deveria existir e impedindo a vida normal de milhares de cidadãos.
Por conta do crescimento desorganizado temos muitas cidades com populações incompatíveis com sua estrutura de serviços. Enquanto Lisboa (almejada por muitos brasileiros), Manchester (que tem o melhor time de futebol do mundo) e Lyon, a terceira maior cidade da França não registram mais de 500 ou 600 mil habitantes, temos numerosas cidades com população bem maior do que elas no Brasil. O êxodo rural, fenômeno concomitante com o desenvolvimento industrial (não por acaso), em diferentes fases da nossa história, tornou-se mais intenso em nosso país a partir dos anos 1970 e provocou o crescimento, geralmente desordenado de nossas cidades. E o que as pessoas buscam nas cidades, desde a Antiguidade? Ora, gente procura gente, não apenas ocupação e segurança, gente procura liberdade e direitos, não apenas um cantinho para construir sua casa. Não por acaso a palavra cidade tem a ver com cidadão, o que habita nela e participa de sua vida.
A cidade é o espaço em que buscamos nos realizar, mostrar nosso potencial, usufruir nossos direitos, nos locomover com liberdade. É nela, e somente nela, que vivemos a nossa vida real, cotidiana, integral. Por mais que mantenhamos um espaço de sonho recheado de uma casa na colina, lua e violão, é na cidade que mostramos o que valemos. Mas, muitas vezes, na pressa em que vivemos, não nos damos conta de que estamos apenas vivendo um dia depois do outro, não usufruindo de nossa cidade, não exercendo nossa cidadania, não prestando atenção no próximo, nem nas ferramentas que a cidade tem, ou devia ter, a nosso favor. Afinal, se damos tanto a ela, não seria razoável esperar que ela retribua esse nosso esforço?
De uma forma, ou de outra, o fato é que somos um país predominantemente urbano, mesmo tendo nos tornado um dos grandes fornecedores de produtos agro pecuários do mundo. E não podemos deixar de notar que a falta de planificação e o desrespeito pelas construções antigas fizeram com que a maior parte de nossas urbes não tenham personalidade, ganharam uma feiura parecida com a das cidades vizinhas. São aglomerações caóticas. Cidades grandes tornaram-se gigantescas e cidades médias são hoje cidades grandes. Cerca de vinte municípios brasileiros possuem mais de 1 milhão de habitantes e acima de 200 contam com mais de 150 mil habitantes! Administrá-los tornou-se tarefa dificílima, mesmo quando há trabalho e boa vontade, mas o mais frequente, infelizmente, é constatar incompetência e desonestidade por parte de muitos prefeitos e vereadores.
Em cidades maiores não há contato entre cidadãos e dirigentes. Secretários municipais não ficam próximos dos cidadãos. As pessoas, por seu lado, não sentem as cidades como sendo suas. Edifícios com guaritas, vigilantes guardando a entrada de condomínios, muros altos tentando isolar os cidadãos “de bem” de outros cidadãos, por medo, fazem dos habitantes das cidades prisioneiros que respiram aliviados ao voltar para trás dos muros e grades no final do dia, seja para conviver com sua família, seja para simplesmente esparramar-se em uma poltrona para assistir TV (cada membro da família na sua, se possível), ou ainda para navegar pelas mídias sociais, a partir de onde poderá ofender quem quiser sem risco…
As pessoas desenvolveram também o hábito de ir ao shopping. Lá elas até fazem compras, mas utilizam-no mais para passear, ir ao cinema, lanchar, levar os filhotes, encontrar amigos. O shopping é uma instituição curiosamente classista. Suas lojas são determinadas, por especialistas, a partir do perfil econômico de cada bairro. Depende do bairro em que se instala, abriga diferentes lojas, tem diferentes restaurantes, toca diferentes músicas (o volume cresce nos bairros populares), as vagas do estacionamento têm diferentes dimensões. Com raras exceções as pessoas encontram centros de venda adequados à sua renda, aspirações, etc. Cada um na sua tribo, como se vivêssemos em uma sociedade estamental.
Vivemos?
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.