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Nesses tempos de mudanças, não ficou pedra sobre pedra | Rubens Marchioni

Na história humana, muito do que era não é mais – se é que um dia foi. Em que mundo estamos vivendo? Que o digam alguns eventos encontrados aqui e ali, envolvendo o passado e o presente.

Houve um tempo em que pai era pai. Mãe era mãe. Eles eram pais. Os filhos tinham medo de perder o seu amor. E valia qualquer esforço para garanti-lo intacto, na sua versão original. Até o dia em que os pais começaram a ficar apavorados diante da ideia, inédita, de perder o amor dos filhos. Transformando-se em “amigos”, para não traumatizar, eles se submeteram às suas vontades, por vezes tiranas.

Professor era professor. Obedecia-se. Mas então o aluno, sem a suposta condição de superar o mestre em termos de vivência e conhecimento, relativizou sua autoridade e o transformou em outro discípulo. As referências foram banidas. Por outro lado, o professor sabia. O aluno aprendia. E podia até se tornar professor. Mas então o mestre começou a carregar uma pergunta incômoda na bagagem: por que o aluno precisa de mim, se está tudo escrito no Google? Por que o aluno precisa de mim, se a televisão e as redes sociais assumiram o papel de ensinar?

Em algum momento nem Deus Pai escapou. Ele foi transformado em Deus Pai-e-Mãe. Ou Mãe-e-Pai – machismo exagerado ou feminismo exacerbado? No campo terreno, agora o politicamente correto é dizer “Eles e elas”, “Todos e todas”. Acontece que quando digo “Eles e elas”, “Todos e todas”, coloco o masculino em primeiro lugar. O que poderia ser interpretado como uma atitude velada de machismo não assumido. Bem, vamos resolver isso: “Elas e eles”, “Todas e todos”. Resolveu?

Não. A inversão, que apenas muda as posições, não eliminou a relação de poder. Então, que tal “Elxs”, para não insinuar preferências de gênero? Mas qual é a pronúncia desse neologismo? Novo perigo: “neologismo” é masculino. Seria, talvez, “neologismx”? A começar pelo início da palavra, se eu pronunciar o “E” com acento agudo, atribuo à letra uma conotação feminina. Com circunflexo, aceno para uma abordagem masculina. Não tenho saída, portanto. Verdade é que não sabemos para onde fugir. Estamos condenados. Há sempre um perigo a nossa espera – cuidado, a palavra “perigo” é masculina, não se comprometa.

Voltando para o espaço do sagrado, Deus havia criado todo o universo, exatamente como estava relatado na Bíblia. Estava tudo lá, e isso nos dava a segurança de saber como tudo começou. Mas então fomos informados de que todo o texto sagrado está repleto de linguagem figurada. Que nem tudo o que está escrito é exatamente como está escrito. A grande reportagem, o grande Manual de Instruções, tudo isso foi relativizado. Tudo é, mas pode não ser. Sei lá, depende. “Esse lance de Deus é um barato, sabia?”

Não existiam outras religiões. No máximo, a católica e a protestante, esse desvio que haveria de ser corrigido. E então alguns livros de História, escritos por intelectuais de altíssimo nível, sem vínculo com essa ou aquela denominação, escancaram a variedade de religiões disponíveis mundo afora, e tudo o que de belo e justo existe em cada uma delas. Tarde demais para quem assumiu compromissos, há tanto tempo, numa área em que nos sentimos pouco à vontade para fazer mudanças. Porque isso equivaleria a profanar o sagrado que nos deram em casa, negar-lhe a condição de absoluto, o que nos traria castigos celestiais indescritíveis.

As narrativas bíblicas eram originais. Mas então se descobre que muito da arquitetura da redação e das histórias foi emprestado de outras culturas, de outras religiões, mais antigas – como assim, “mais antigas”? Assim fica a sensação de que o que assumimos como última palavra é apenas a cópia de um original, produzido muito antes. E quem se sente confortável usando cópias? Leio que quem usa imitação merece-a.

O dilúvio narrado na Bíblia era o Dilúvio, evento singular, exatamente como está escrito. Mas os estudos de Religião, no seminário, mostraram que eu estava me afogando nas profundezas desse engano. Para especialistas, o dilúvio é a narrativa revisitada de uma grande inundação, dessas que sempre acontecem em algum lugar do planeta, especialmente em São Paulo e Rio de Janeiro, tomada como intervenção divina na História da humanidade.  

Existia a Bíblia católica. E só. A protestante era apenas algo estranho, a começar pela ausência do tratamento gráfico que caracteriza as publicações oficiais feitas pela Igreja católica. Eis que então, no primeiro dia de aula, no curso de Teologia, o professor de Sagrada Escritura, padre que durante cinco anos ficou imerso, estudando em águas profundas, no Pontifício Instituto Bíblico de Roma, para entender os meandros do texto sagrado, quebrou impiedosamente as nossas pernas. Ele sugeriu que aposentássemos a Bíblia Sagrada publicada pela editora líder no segmento católico e providenciássemos um exemplar da bíblia… protestante! Aquela de capa preta, traduzida por João Ferreira de Almeida. Igual à que o professor usava para ensinar; a mesma que está no púlpito e nas mãos dos chamados “crentes”. Aquela que não tem os mesmos livros existentes na versão católica apostólica romana. Justificativa do mestre: a tradução católica era precária. Tudo bem. Se essa é a “Palavra do Senhor”, respondemos em uníssono um perplexo “Graças a Deus”. E fomos às compras, porque essa era a lição de casa.

A eleição do papa era algo espiritual, sobrenatural. Nunca uma decisão política. Até o dia em que analistas informaram que a escolha deste ou daquele sumo pontífice foi uma decisão política estratégica, tomada por uma Igreja que precisa de um papa mais moderado, ou mais avançado, ou mais de centro-direita, ou mais de centro-esquerda, ou mais conservador. Um papa ecumênico, talvez. De preferência, escolhido entre os candidatos desse ou daquele continente. Quanto ao Espírito Santo, espera-se que ele não contrarie essas decisões da liderança católica romana. Roma locuta, causa finita. Se até a escolha do papa está contaminada desse jeito, imagine o resto.

Estava provado: Deus existe e é indispensável. Basta. Mas o Sr. Freud nos informou que essa história de ter e cultuar um deus é apenas a evidência do quanto o ser humano é infantil, incapaz de lidar com os grandes mistérios e desafios criados pela vida. Outros, como o professor israelense de História, Yuval Noah Harari, consome boa parte do seu livro mais recente, o best-seller 21 ideias para o século 21, colocando na mesa todas as provas de que, além de inexistente, Deus também é perfeitamente dispensável. Quanto ao bicho-homem, até então parceiro do divino na criação, Harari nos esfrega na cara que caminhamos para a experiência de sermos, nós e a nossa vontade, irrelevantes. Seremos desnecessários para levar em frente qualquer projeto. Isso, até mesmo para a empreitada de escolher uma pizza ou escrever um artigo como este. Para o bem ou para o mal, a Inteligência Artificial vai fazer tudo. E quanto à poesia, o romantismo? A Química e a Biologia explicam direitinho como esse fenômeno neutro, que ainda usamos para alimentar bobagens de tal forma anacrônicas e descabidas, acontece em nosso cérebro. É o desmanche de algumas das nossas mais doces convicções.

Por fim, hoje chegamos ao luxo de não ser necessário nos submeter a um prosaico animal bovino para dispor de carne e leite. A soja, esse vegetal nobre, cuida muito bem disso. “Garçom, uma picanha de soja, mal passada, por favor.”

Concluindo, tudo estava escrito. A vida seguia tranquila, bastava não fugirmos do script. No entanto, muita coisa foi apagada ou tornada ininteligível, borrada. Nada mais é seguro. Nem mesmo o que eu disse até aqui. Nenhuma garantia, portanto. 

Que trabalheira, meu Deus, redimensionar tudo! Não, Deus é masculino, não sejamos machistas. E depois, Rubens, não seja infantil. Já se esqueceu da advertência do Sr. Freud? Que trabalheira, minha Inteligência Artificial do céu! Mas Inteligência é feminino. Ou seria “femininx”? Ainda não acertei. Mas, o que é acertar e o que é errar, nesses tempos de tantas e tamanhas incertezas? As pedras que garantiam a segurança se transformaram em pó, e ele insiste em habitar os nossos olhos desorientados.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]