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Não existe linguagem neutra | Lançamento

“Todos e todas”, “todes”, “todos, todas e todes”, “tod@”, “todx”, “tods”. Será difícil encontrar alguém que viva na sociedade brasileira letrada contemporânea e que não tenha ainda se deparado com alguma dessas palavras. Elas estão nas redes sociais, nas notícias e até em questão do vestibular da Unicamp de 2024.

Também será difícil encontrar alguém que não tenha observado alguma reação a essas palavras, seja negativa, seja positiva. Afinal, pessoas foram demitidas por causa delas e projetos de lei para proibir seu uso foram propostos.

Em comum, as palavras são designativas de pessoas, um grupo de pessoas. E pessoas têm gênero. Pessoas têm identidade, expressão e orientação quanto ao seu gênero, em perspectiva binária ou não binária, e são categorizadas por isso. Do ponto de vista da psicologia social, a partir do momento que atribuímos nome a uma entidade e a inserimos em uma determinada categoria, estamos atribuindo valores positivos ou negativos e definindo seu lugar em escalas hierárquicas.

Na sociedade brasileira, tanto língua como gênero são temas de especial interesse das pessoas. Mas todo mundo se sente no direito de palpitar sobre língua. Existe um campo da ciência, a Linguística, que estuda a língua, mas que pouco é escutado ou lembrado. Em tempos de desinformação, fake news, negacionistas das mudanças climáticas, antivacinas e terraplanistas, a ciência linguística também contribui para desfazer os mitos e os equívocos que perpetuam na sociedade e que geram discriminação e preconceito. Um deles é o que tem sido chamado de “linguagem neutra”.

“Linguagem neutra” está aqui entre aspas porque é uma expressão que pode evocar muitos significados, sendo essencialmente ambígua. O adjetivo “neutro” pode significar não assumir posições, não tomar partido, manter-se em cima do muro. Neutro, na Linguística, evoca o termo neutralização, conceito advindo de uma corrente da Linguística, o Círculo Linguístico de Praga, que se refere à ausência de contraste entre dois elementos pareados (neutralização de traços). Neutro, na expressão de gênero, pode significar não ser nem masculino nem feminino, um rompimento com o binário. Neutro também pode significar não se importar com o gênero enquanto modo de categorização de pessoas. Como podemos ver, neutro pode ser muita coisa e, sem definir o que é neutro, ou linguagem neutra, cada um pode entender o que quiser.

Não existe linguagem neutra | Lançamento

Se as pessoas acreditam que “todos e todas” é redundância, já que “todos” inclui “todo mundo”, é porque trata-se do resultado de um processo de convencionalização de usos e de gramatização de uma forma de referência a gênero como sendo aquela que abriga e representa as demais; como tudo na língua, é um processo moldado por forças sociais que fazem com que percebamos essa convencionalização como natural. Para mim, não é natural que “todos” signifique “todas as pessoas”; seria muito mais lógico “todas” = “todas as pessoas”, um processo em que pessoas é uma palavra do gênero gramatical feminino, que é usada como uma referência ampliada. Também não é natural para mim que, em um grupo misto, uma sala de aula, por exemplo, em que há nove mulheres e um homem, a forma de referência ao grupo seja “todos”. Se a maioria é de mulheres, a forma deveria ser “todas”. Há ainda a referência a pessoas que não se identificam com o binarismo do masculino ou feminino, não havendo ainda uma marca gramatizada para isso. Mas a lógica da língua nem sempre segue a lógica de como as coisas funcionam no mundo.

A ambiguidade do adjetivo “neutra” em “linguagem neutra” permite que diferentes grupos evoquem a sua perspectiva, alinhada à sua ideologia, ao seu modo de ver e conceber o mundo, um viés. Até mesmo a suposta objetividade da ciência encobre a consciência da existência de viés, de um ponto de vista, de uma perspectiva. A ciência é feita por pessoas, pessoas têm perspectivas, então a ciência também tem viés. Essa não é uma discussão recente. No início do século passado, Max Weber já discutia a neutralidade axiológica nas Ciências Sociais, no ensaio “A ‘objetividade’ do conhecimento na ciência social e na ciência política” (2016): ter consciência e reconhecer que existe viés é importante para desnaturalizar certas concepções que circulam com o rótulo de científico. Por isso, não existe neutralidade nem na língua, nem na sociedade. Não existe linguagem neutra porque pessoas não são neutras, ou seja, pessoas expressam quem são e a que grupo pertencem. Logo, sempre que alguém fala está expressando, além da informação, a sua indexação a um grupo.

A sociolinguística, campo da Linguística que estuda as relações entre língua e sociedade, tem uma agenda de pesquisa que, nos últimos 60 anos, vem demonstrando que podemos saber muito de uma pessoa só observando como ela fala. Só de ouvirmos uma pessoa, fazemos predições sobre a sua idade, de onde é, o quanto estudou e, também, sobre seu gênero. Se essas categorizações são importantes na sociedade, buscamos pistas delas, e uma fonte dessas pistas é a língua.

O que tem sido denominado “linguagem neutra” precisa ser entendido como um rótulo amplo, que se consolidou em explicações sobre os usos tanto de “todos e todas” quanto de “todes”, “todos, todas e todes”, “tod@”, “todx”. Esse rótulo é aplicado tanto nas situações em que a referência a todos os gêneros das pessoas é explicitada, como em “todos, todas e todes”, quanto em situações em que uma forma – “todes”, ou “tod@s”, ou “todxs”, alternativa ao masculino genérico convencionado para esses contextos – refere-se a um grupo de pessoas cujo gênero não é conhecido ou não é possível de ser identificado. Ou, ainda, refere-se ao uso de “todes”, tod@s”, todxs” para referir-se a pessoas cujo gênero não é masculino ou feminino (é não binário).

Dessa diversidade de usos, uma explicação bastante usual no senso comum é a de que, em relação ao gênero de pessoas, quando não se refere a masculino ou a feminino, é neutro. Essa é uma aproximação pouco precisa, pois pressupõe que só existem identidades de gênero masculinas ou femininas, invisibilizando outras identidades de gênero. Por outro lado, também há o uso de marca de feminino coordenada à marca de masculino, em alternativa ao uso do masculino genérico, que, também no senso comum, é entendido como neutro. O uso coordenado de formas em alternativa a uma forma de suposta neutralidade (como é o masculino genérico) dá contornos de inclusão, e não de neutralidade. Essas estratégias de uso seriam mais apropriadamente denominadas de linguagem inclusiva, que é como esse movimento é chamado em outros países e em outras línguas. É por isso que o título deste livro é Não existe linguagem neutra!, no sentido de que não há neutralidade na língua quando em referência a gênero de pessoas.

Continue a leitura da Introdução aqui


Raquel Freitag é linguista e professora titular da Universidade Federal de Sergipe, com doutorado em Linguística pela Universidade Federal de Santa Catarina. Desde sempre é curiosa sobre como a língua funciona. E logo descobriu que a língua vai mudando pelas dores e amores de quem a usa. Em termos mais acadêmicos, estuda o processamento da variação linguística. Foi vice-presidente da Associação Brasileira de Linguística Abralin (2019-2021) e vice-presidente da associação do Grupo de Estudos Linguísticos e Literários do Nordeste, por duas gestões (2019-2020 e 2021-2022). Coordenadora da área de Letras/Linguística do Comitê de Assessoramento do CNPq (2021-2024). Pela Contexto é coautora dos livros História do Português Brasileiro Vol. IV , Psicolinguística: diversidades, interfaces e aplicações e Não existe linguagem neutra! Gênero na sociedade e na gramática do português brasileiro.

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