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Muita calma nessa hora | Rubens Marchioni

Fabíola foi movida pela mais pura curiosidade. A cachoeira, naquele lugar, era algo interessante, com uma força capaz de arrastar um inexperiente, levando-o para dentro da torrente nervosa e da profundidade da água. Além do que, a pedra era muito escorregadia.

O primeiro passo para um acidente era se aproximar um pouco mais para ver e sentir de perto a força da água e ter a intensa experiência de perceber que ali embaixo até a alma ficava lavada. Depois o descuido, por causa de todas as sensações. Depois o escorregão. Depois…

Fabíola tinha olhos cor de cacau e estava com um colar feito de sementes colhidas de árvores lendárias, em alguma floresta que ela desconhecia.

Na cabeça, levava uma testeira, presente do noivo, porque o sol era forte naquele horário.

Conversava com Evangelina, que acabara de conhecer. Não falavam nada sobre as grandes questões da humanidade – as duas amavam jabuticaba e Chico Buarque. Ficavam limitadas ao pequeno universo do lazer, do desejo de jogar todo estresse para bem longe, dos planos para as próximas viagens.

– Fabíola, acho que você devia ir com cuidado. Essa cachoeira…
– Será? Não sei, acho que você está exagerando, não está, não? Será por causa do meu corpo esquelético?
– Cuidado, já ouvi histórias sobre esse lugar. Melhor não facilitar.
– Tudo bem, mas eu vou só um pouquinho. Certo? – Fabíola desconversou.

Quando coçava o queixo e adotava uma expressão levemente reflexiva, isso sinalizava tudo: Fabíola faria de conta que ouviu. Simplesmente seguia em frente e pronto. Para ela, era suficiente causar a impressão de que não deixou a outra pessoa falando sozinha, que fora atenciosa, educada, gentil, essas coisas que rendem elogios.

O celular tocou, e era Lúcio na outra ponta da linha.

– Oi, amor, tudo bem por aí? O que está fazendo?
– Nossa! Vou experimentar uma cachoeira.
– Vai experimentar como? Vai entrar mesmo? Cuidado. Cuidado. Você sabe!
– Claro, eu tomo cuidado. Não vou abusar. Advertência da minha nova amiga, a Evangelina, que conheci há uns bons vinte minutos. – Você vem pra cá ainda hoje?
– Devo ir amanhã. Ainda estou resolvendo umas coisas no cartório, uma chatice isso, esse negócio me tira do sério.
– É, advogados têm mais facilidade com isso. Mais do que corretor de seguros…
– Sim, eu sei. Podia ter pedido ajuda de um advogado. Mas vai dar certo, vai dar certo, se o escrivão parar de me tratar como inimigo, que saco! Um beijo. Me espere amanhã.

Fabíola estava pronta para entrar, ficar sob a força da água. Queria conhecer de perto aquela sensação e saber como era tudo aquilo. Para isso, os cinco sentidos seriam insuficientes, precisaria de mais alguns, quem sabe mais uns dez, uma dúzia seria quase suficiente.

Ela tentaria descrevê-la para si mesma e, depois, para os amigos. Mas descrever sem conhecer? Impossível.

Conhecer, conhecer; para Fabíola, conhecer era essencial. Ela sempre queria conhecer as coisas, as pessoas, os seres espirituais, as emoções, a vida individual e coletiva. Queria conhecer a alma de Deus e sobre a vida que prometeram existir além dessa que vivemos agora.

Deixou o celular sobre uma pedra, ao lado de algumas prímulas, colocado numa posição estratégica, sob um livro de Neruda, para que evitasse os raios de sol forte. Entrou.  Evangelina ficou ali mesmo, sentada, aplicando protetor solar sobre os braços, feitos de pele clara e agora bem avermelhados pelo sol.

De repente, e sem tempo de pedir licença, ligou para Lúcio e pediu que voasse até onde estavam, 250 quilômetros em 50 minutos, talvez. A experiência de Fabíola não tivera um resultado dos melhores.

Ao mesmo tempo, Evangelina procurou por socorro imediato. Pediu ajuda a outros turistas, que imediatamente se movimentaram. Sem socorro imediato, Fabíola poderia enfim realizar alguns dos seus desejos de conhecimento, inclusive para fora da dimensão terrena. Saindo da cidade, o brincalhão, que não encontrou qualquer motivo para essa piada, viu a chaminé de uma antiga fábrica jogando fora uma fumaça amarelada e, devido a um trauma trazido da infância, aquilo sugeria tragédia para ele – no Vaticano, os católicos ficam sabendo que o novo papa foi eleito, quando na chaminé aparece uma fumaça branca provocada pela queima dos votos e, felizes, saúdam com emoção o sumo pontífice – essa foi só uma lembrança desse escriba.

O carro de Lúcio ficou estacionado em algum lugar mais ou menos perto dali. Depois de se armar de uma espécie de cajado, instrumento sem o qual não conseguiria se livrar de toda espécie de vegetal que impedia seu avanço mais rápido, ele chegou ao local. Ali estavam Fabíola e Evangelina, Fabíola deitada no chão e a nova amiga mergulhada na ansiedade e tensão, temendo pelo que poderia acontecer e tentando ajudá-la de alguma forma.

Ela seria incriminada? Teria de responder pelo que nunca pensou em fazer? Seria chamada a depor como testemunha? Teria problemas devido a um problema que nem era seu?

– Eu voei pra cá, é claro, mas a estrada tem limite de velocidade, você sabe como é.
– Eu disse pra Fabíola tomar cuidado. Falei do perigo, de histórias que ouvi sobre isso aqui.
– Acredito, mas a Fabíola é assim mesmo, é sempre o mesmo desejo de competir, de ter razão. Três anos de convivência… Eu sei como é – olhou para o céu e pediu a Deus que não se confundisse, que lhe desse paciência, não outra coisa, amém.
– Eu vou no meu carro, ele está logo ali. Tchau, nos vemos no hospital.

E lá se foi Lúcio, ele e seu medo de contrair doenças, o que fazia com que não frequentasse hospitais e clínicas, não ia ao cemitério nem andava em certos lugares que para ele eram suspeitos.

Fabíola sobreviveu e Evangelina ganhou um lugar no seu grupo de Whatsapp.

Um dia, entre um gole e outro de chope, Fabíola me contou essa experiência, quando estava com Lúcio, num restaurante para um almoço de rotina, quinta-feira, dia de batente.

Provocador, disse-lhe que havia conhecido uma cachoeira fascinante, muita água, muita energia, muita adrenalina. Disse que poderíamos ir, nós três, para um final de semana emocionante e cheio de aventuras.

Fabíola ficou de pensar. Disse que responderia logo, um dia desses e, nesse caso, essa breve medida de tempo seria contada do momento em que os convidei até o dia da próxima vinda de Jesus, se eu quisesse mesmo esperar.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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