Historiadora fala sobre identidades, guerras de independência e interpretações acerca do desenvolvimento da região
Maria Ligia Coelho Prado já era mãe de três filhos quando decidiu, aos 27 anos, cursar história na Universidade de São Paulo (USP). Supostamente tardia, a escolha se revelaria mais do que acertada: além do “amor à primeira vista” pela disciplina, propiciou-lhe o exercício do magistério – ofício no qual se destacaria como poucos de seus pares. Maria Ligia deu aulas em cursos secundários de escolas públicas e particulares. Na década de 1980, percorreu o estado de São Paulo lecionando história da América para professores do ensino médio. No ensino superior, antes de ser contratada pela própria Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, iniciou sua carreira como professora de história contemporânea de futuros arquitetos.
Entre os grandes temas que se propôs a discutir em sala de aula estavam a escravidão, o capitalismo e interpretações sobre o desenvolvimento da América Latina. Além da bibliografia convencional, costumava apresentar aos alunos contratos de trabalhadores, declarações de operários e programas de partidos políticos. Ignorou fronteiras e, atendendo a convites de instituições norte-americanas, entre 1987 e 1995 deu oito cursos nos Estados Unidos: três de graduação e cinco de pós-graduação, em universidades como Brown, Stanford e de Nova York.
Maria Ligia formou gerações de profissionais, na graduação e na pós-graduação, e fez grandes amizades. Uma delas foi com a também historiadora Maria Helena Capelato. “Defendemos a dissertação de mestrado no mesmo dia, com a mesma banca, uma depois da outra”, conta. Depois lançaram um livro em conjunto, O bravo matutino(Alfa Omega, 1980), com os resultados da pesquisa que tratou do jornal O Estado de S. Paulo. Entre os livros que publicou, um deles, o paradidático A formação das nações latino-americanas (Atual, 1985), teve 23 edições impressas e vendeu mais de 70 mil exemplares. Atualmente prepara novo livro com artigos já publicados e textos inéditos, entre eles um sobre os significados da pena de morte aplicada a mulheres consideradas traidoras pela Coroa Espanhola, durante as guerras de independência, e outro sobre o debate a respeito do papel do Estado, da Igreja e da família na educação pública na Colômbia do final do século XIX.
Fundadora da Associação Nacional de Pesquisadores e Professores de História das Américas (ANPHLAC), que presidiu entre 1998 e 2000, Maria Ligia falou à Pesquisa FAPESP sobre América Latina, identidade, o papel do discurso histórico e a função do conhecimento.
Idade
76 anos
Especialidade
História da América Latina
Formação
Graduação em história (1971), mestrado (1974) e doutorado (1982) em história social pela USP
Instituição
USP
Produção científica
15 livros, dos quais cinco em coautoria, orientação de 19 alunos de mestrado, 32 de doutorado e 6 supervisões de pós-doutorado
Como surgiu seu interesse pela América Latina como objeto de pesquisa?
Na minha graduação em história havia duas disciplinas que tratavam da América: história da América colonial e história da América independente. Concluí o curso em 1971, mas jamais estudei América independente – nunca ultrapassamos o período do caudilhismo. Ficamos lá atrás. Como aluna, nunca estudei nada sobre América Latina depois de 1850. Nada. Em 1975, quando ingressei na universidade como professora, em um concurso para história da América, tinha de dar aulas de história da América independente. Minha intenção era mudar depois, porque eu pesquisava história do Brasil. Sou autodidata em história da América Latina, iniciei sem referência alguma. Comecei a estudar e fiquei fascinada.
O que causou esse fascínio?
Um exemplo: a história do México, do mundo indígena e de como se formou o Estado mexicano. Não temos noção do que foram as comunidades indígenas no México, depois no Peru, Bolívia, Guatemala. O que foram as reformas liberais no México, e depois na América espanhola, que é a tentativa de destruição da comunidade indígena. O mundo cultural, a questão da língua, a questão da arte, o lugar da Igreja Católica. E as disputas entre o mundo laico e o mundo religioso.
O seu aprofundamento, em questões distintas da história, se dá sempre pela América Latina?
Sempre. Eu conheço a história de alguns países da América Latina, não conheço a de todos porque é impossível. Conheço melhor a história do México, da Argentina e do Chile. Quando comecei a lecionar, em plena ditadura, Cuba era um assunto proibido, tabu. Então não se estudava. A América Latina era um lugar de ditaduras. Por ter uma posição política à esquerda, já iniciei me posicionando contra a ditadura. Isso contribuiu para certo encantamento que tenho pela região. Algo que me fascinou desde os primeiros instantes foram as aproximações históricas entre a América portuguesa e a América espanhola. Entre elas, perspectivas de pensar o conhecimento, a religão e a arte, ao lado das particulares relações sociais que se formam nesse espaço com marcante população indígena e africana.
Quando surge a noção de América Latina? Quando essa região passa a ser assim denominada?
Considero essa questão muito interessante porque as pessoas usam o termo sem se dar conta de seus significados. Essa é uma denominação construída no século XIX ao que parece, pelos franceses. Há uma longa discussão sobre isso. Foi o economista Michel Chevalier [1806-1879] quem primeiro pensou essa diferença, que era comum no século XIX, entre latinos e anglo-saxões. E, como os franceses tinham interesses nas Américas, fortes interesses no México, houve a ideia de que essa parte das Américas, que não era anglo-saxônica, era uma parte latina que aproximava toda essa região da França. Nos textos, por exemplo, da Revue des deux Mondes [revista francesa que circulou no século XIX], há uma afirmação muito clara de que a França era o principal país latino no mundo e que, dessa maneira, essa parte das Américas se identificava com os franceses. Então, essa é uma versão, um termo criado fora, com intenções externas, um termo de alguma maneira imposto.
Mas há outra perspectiva, daqueles que entendem que o termo, na verdade, nasceu na própria América Latina.
Sim, há uma discussão em torno do escritor colombiano Torres Caicedo [1830-1889], que fez um poema em que fala de uma América Latina. Mas a questão principal dessa disputa é um problema que nos acompanha. Isto é, se o termo foi criado fora, pela Europa, pelo imperialismo e acabou imposto sobre nós, ou se nasceu na própria América Ibérica para pensar uma América Latina unida, em que havia uma aproximação entre a parte espanhola e, de alguma maneira, a parte portuguesa, que enfrentariam as vicissitudes juntas. Ou seja, a própria designação já traz um problema.
Como você pensa a questão da identidade latino-americana?
Vou fazer uma digressão para chegar aí, ao seu ponto. Se considerarmos os textos de letrados – que podem ser intelectuais ou políticos –, como os de Simón Bolívar [1783-1830], por exemplo, ele se pergunta na famosa Carta da Jamaica, de 1815: “Quem somos nós? Não somos americanos e não somos europeus”. Essa busca de afirmação está presente muito fortemente nos textos e depois em muitas manifestações que vão acontecer pelo século XIX. Digo isso para destacar que a questão da identidade nos acompanha desde a independência. Se tomarmos as fontes a partir daquela época, há documentos e ações que mostram preocupação com a aproximação entre as diversas partes da América colonizada pelos espanhóis, e, posteriormente, já no século XX, com o Brasil.
Portanto, sempre relacional.
Sim, muito. Temos os textos do intelectual e político chileno Francisco Bilbao [1823-1865] dos anos 1850, em que ele descreve a América em perigo, considerando o que depois vai se chamar América Latina, se contrapondo aos Estados Unidos. O problema da identidade não é algo que os historiadores ou os antropólogos criaram. Não é artificial, na minha maneira de interpretar. Porém, como eu já escrevi, trabalhar com identidades é algo que precisa ser garantido pelo espírito crítico, porque as identidades apagam as contradições. As identidades harmonizam.
Pasteurizam, quase.
Pasteurizam. Todas as mulheres são iguais, todos os negros são iguais, todos os índios são iguais, para usar uma terminologia habitual do século XIX, e as contradições, as tensões, os conflitos são camuflados. A identidade, que mexe com os sentimentos, é uma construção intelectual, mas entra nos corações, impacta a vida, as escolhas, e faz com que as diferenças e os conflitos sejam deixados de lado. É preciso ter muito espírito crítico para trabalhar com o tema. A identidade supõe sempre o outro – e o outro é o inimigo. É preciso escolher. No caso dos latino-americanos, a construção do inimigo, já no século XIX, passa pelos Estados Unidos. Há uma data-chave, que é 1898, quando os Estados Unidos entram na guerra de independência de Cuba ao lado dos cubanos, isto é, contra os espanhóis, e transformam Cuba num protetorado.
Você escreveu que desde a independência de seus países, as elites latino-americanas aspiravam consolidar sua dominação sobre a sociedade, baseadas em uma identidade homogênea, que lhes garantisse a hegemonia política. É possível dizer, em alguma medida, que elas não foram tão bem-sucedidas, na América Latina?
Essa é uma pergunta que me acompanha, muito difícil de ser respondida. O século XIX é maravilhoso para ser estudado porque os intelectuais, os políticos fizeram as perguntas essenciais com as quais ainda trabalhamos. O que é nação, o que é civilização, o que é legítimo, o que é Estado? E responderam estabelecendo padrões do que deveria ser a “civilização”. A associação estabelecida entre raça e cultura foi um elemento central na dominação simbólica das elites, favorecendo a discriminação e os preconceitos. Apesar de ser artifical e inverossímil, esse discuro teve um grande poder de persuasão nas sociedades latino-americanas até nossos dias. O discurso branco e civilizado insistia em impor sua visão sobre toda a sociedade, tratando de marcar a distância que o separava do “outro bárbaro”. Entretanto, nunca foi possível controlar ou anular los de abajo. Índios, escravos, mestiços, mulheres marcam sua presença na política, na arte, na literatura e resistem à dominação imposta pelos brancos. Enfim, creio que as elites foram bem-sucedidas no seu projeto de dominação. Porém, é preciso reafirmar a importância da presença dos subalternos que desempenham um papel político protagonista sem ter sido, muitas vezes, reconhecida pela historiografia.
Houve, na história recente da América Latina, um momento em que os países que a integram estiveram mais próximos, inclusive como objeto de estudo?
Sim, durante as ditaduras recentes, mais próximas por conta das circunstâncias políticas de uma luta única pela democracia. Houve uma aproximação, um interesse, um conhecimento maior. O advento da democracia acabou nos distanciando. O Brasil novamente voltou as costas para a América Latina e, mais uma vez, se colocou como um país diferente. Está claro que, na história política e diplomática brasileira, o Brasil sempre quis ser o país hegemônico da América do Sul. Isso tem repercussão no lugar da América Latina e na importância da América Latina nos estudos da história. Ao ignorá-la, perdemos essa perspectiva de abrir janelas para compreender o próprio Brasil. Quando acompanhamos e estudamos a história desses países, conseguimos compreender muitas questões da história brasileira. Os historiadores estão muito habituados a se fechar dentro das interpretações das historiografias nacionais, ainda muito marcadas pelas construções elaboradas no século XIX.
Você tratou dessa questão em seu livro América Latina no século XIX: Tramas, telas e textos (Edusp, 1999).
Em primeiro lugar, reafirmo a importância de pensar o Brasil como parte da América Latina. Atravessar as fronteiras oferece possibilidades instigantes ao historiador para propor novos problemas e ampliar os diálogos historiográficos. Como se sabe, no século XIX, depois das independências, se organizam os Estados nacionais e se constroem as identidades nacionais. Na minha perspectiva, a questão da nação se impunha e penetrava na variada produção política, historiográfica e artística da época; políticos, publicistas, historiadores, mulheres e homens letrados e artistas, nos mais diversos países da América Latina, se dedicaram a pensar a questão nacional. Além dos problemas econômicos, das disputas políticas, das convulsões sociais, das guerra civis, que mobilizaram as energias das sociedades, se produziram apaixonados debates sobre a construção da Nação e das identidades.
Isso remete também ao conceito de transculturação do sociólogo cubano Fernando Ortiz. Poderia refletir um pouco sobre ele?
Em seu livro Contrapunto cubano del tabaco y del azúcar, publicado em 1940, Ortiz [1881-1969], ao pensar a cultura cubana, acaba por cunhar esse conceito de transculturação, depois apropriado por muitos críticos literários, antropólogos e historiadores. O conceito carrega uma ideia, com a qual eu concordo, muito importante para se pensar a América Latina. Durante muito tempo se afirmou que a cultura europeia foi imposta a nós, aos povos que aqui viviam antes dos europeus chegarem e, depois, a aqueles que viviam nas colônias. A cultura europeia teria sido transposta e imposta aqui. O que sobrou teria sido apenas a aceitação. O resultado dessa aceitação seria a cópia. Ortiz disse que não se pode pensar – e ele está falando de Cuba – em uma simples imposição de fora para dentro, mesmo em uma sociedade estruturada em torno da escravidão. Na visão dele, aqui e lá se criou uma cultura muito particular e os europeus não ficaram imunes ao meio em que viviam, incluindo a cultura africana. É uma via de mão dupla. Há uma questão de poder e a Europa ganhou a língua, a religião, mas é preciso entender essas relações que se dão em todos os níveis, como ele diz, desde o econômico até o sexual. Aquilo que se estuda naquele ambiente societário é uma transculturação, sofre mutações e é repensado. Do meu ponto de vista é algo que segue fazendo sentido.
Na sua visão, o discurso histórico pode ser reduzido a uma função de conhecimento? Ou ele teria uma função social?
Se tivessem me perguntado isso em 1975 eu diria que o discurso histórico não se reduz a uma função de conhecimento e que possui uma função social, intervindo na realidade onde será mais ou menos útil para as forças em luta. A compreensão do passado outorgava condições de conhecer o presente e prognosticar o futuro. A história desempenhava, assim, papel destacado na confrontação ideológica, e os historiadores e acadêmicos deveriam compreender que seu trabalho não estava isolado de sua responsabilidade política. Nos dias de hoje, os debates são de outra ordem. Tomemos a questão da “Escola sem Partido”, que parte, sem dúvida, da ideia de que o discurso histórico tem uma função social. Esse grupo, assumidamente de direita, ataca a esquerda porque esta estaria instrumentalizando o saber com fins ideológicos e políticos, afirmando, assim, que o conhecimento não é neutro. Porém, contraditoriamente, se apresenta como imune à política e se arvora em guardiã da única “verdade”.
É possível notar mudanças na historiografia que remetam a essa função social do conhecimento?
Especialmente durante a ditadura [1964-1985], pensávamos que o conhecimento seria emancipador, traria democracia, propiciaria a construção de uma sociedade mais justa. Se pensamos em uma função social é porque o conhecimento e as ideias produzem ação. As propostas políticas que vão ser efetivadas estão baseadas em ideias e, nesse sentido, o conhecimento da história é fundamental. Vamos analisar, por exemplo, o lugar que o indígena tinha na sociedade. Os antropólogos e os historiadores trabalharam para mostrar como os indígenas foram explorados, oprimidos, humilhados. O mesmo foi feito sobre os escravos africanos no Brasil. A historiografia brasileira, e também a cubana, trabalhou muito para virar do lado avesso a visão estabelecida. Outra coisa que a sua pergunta sugere é a ideia de que, no caso da história, finalmente vai se mostrar a verdade. Os historiadores se dividem ao pensar a questão da verdade. O que é a verdade? Eu gosto de utilizar como exemplo algo distante de nós: a Revolução Francesa. Aqueles que escreveram sobre ela, os seus contemporâneos, e as primeiras gerações posteriores. Como é possível escrever sobre a Revolução Francesa [1789-1799] sem tomar partido? Qual visão um aristocrata, vamos pensar em Alexis de Tocqueville [1805-1859], tem sobre ela? E um homem à esquerda, no espectro político francês do século XIX? Há alguns fatos concretos e indiscutíveis: o rei e a rainha foram guilhotinados. Agora, como nós interpretamos os fatos? Essa é a questão. Podemos reduzir e dizer: “Agora eu vou contar a verdade sobre a Revolução Francesa”. Qual verdade? Isso quer dizer que estamos interpretando, analisando documentos. É preciso ter formação teórica para compreender qual é o papel, qual é o lugar daquele documento, o que ele expressa.
A história não ensina? Ou é a humanidade que não aprende?
Penso muito sobre isso. Não sou obcecada pela Revolução Francesa, mas vou tomá-la como exemplo, mais uma vez. A Revolução Francesa estabeleceu que a tortura não deve ser uma prática legal, o ser humano não pode ser violado. Não exatamente nesses termos, mas pela primeira vez se fez essa afirmação. Antes, a tortura era considerada absolutamente legal e legítima. Esse é um marco muito importante na história recente da humanidade do mundo ocidental, pelo menos. O que não significa, como bem sabemos, que a tortura foi eliminada.
Ainda é bastante desconhecido o papel da mulher nas lutas pela independência, por exemplo, tema relevante em seus estudos. Poderia falar um pouco sobre seus achados?
As mulheres são tratadas pela historiografia, em termos de século XIX e XX, como inexistentes do ponto de vista de atuação política. Já há muitos trabalhos importantes sobre a valorização desse lugar da mulher como pensadora, escritora e jornalista. Mas o que me interessou foi pensar a participação política das mulheres no século XIX. Em geral, a historiografia começa a apontar a presença das mulheres na política com a questão do sufrágio, quando elas começam a lutar pelo direito ao voto. Mas ainda que em número pequeno, elas tiveram participação política na história do Brasil e da América Latina no século XIX. Parti da seguinte ideia: por que Maria Quitéria [1792-1853], que vivia no sertão da Bahia, se vestiu de homem, foi ser soldado e lutar pela Independência do Brasil contra as forças portuguesas do general Madeira? A história da Maria Quitéria é essa: ela ouviu, na casa do pai, um emissário que estava buscando voluntários para a guerra. Como minha cabeça sempre atravessa as fronteiras, pensei na América espanhola. Foi quando, depois de pesquisar bastante, ler muitas biografias e um ou outro jornal do período, descobri que as mulheres participaram da guerra – sobretudo no caso da América espanhola, porque aqui no Brasil foi muito rápido. Na América espanhola, durante 10, 12 anos de guerra, as mulheres participaram de maneiras muito diversas.
Inclusive pegando em armas.
Sim, elas pegaram em armas, se vestiram de soldado e muitas foram as chamadas “mensageiras”, isto é, aquelas que se infiltravam e assumiam uma posição, corriam riscos. Para mim, o ponto é que elas se interessaram e participaram, não ficaram alheias. Mesmo quando se pensa em homens, é preciso lembrar que as guerras pela independência são de uma minoria. Apenas uma porcentagem pequena da população participa. Temos aqueles que acreditam na causa, pegam em armas e vão lutar para ganhar ou para perder, é um risco. Há mulheres que foram presas, julgadas e condenadas. Um caso exemplar é o caso da colombiana Policarpa Salavarrieta [1795-1817], fuzilada na praça de Santafé, em Bogotá. Ela e sete homens, entre eles seu noivo. A morte da Salavarrieta foi algo que repercutiu muito fortemente. Existem quadros de artistas anônimos a retratando no cadafalso. Poemas foram escritos em sua homenagem, peça de teatro. Como ela, outras mulheres também foram condenadas à morte ou a castigos públicos, como ter a cabeça raspada, andar nua pela cidade. São muitas as histórias, mas isso é absolutamente desprezado, ignorado. No entanto, é fato: na América Latina a mulher e a política já estavam juntas no século XIX.
Em seus textos, você também faz reflexão importante sobre as utopias.
Não resta dúvida de que, para a minha geração, que viveu sob a ditadura, havia uma utopia socialista no horizonte, o que nos dava esperança e força para enfrentar o cotidiano. Depois, nos anos 1980, foi muito forte a perspectiva da importância fundamental da democracia, que também apareceu como uma utopia na América Latina. Atualmente vivemos um momento muito difícil, de grandes conflitos, confrontações ideológicas, de posições políticas muitas vezes tomadas às pressas, sem maior reflexão dos significados que têm. O problema para mim, mais contundente, é a falta de uma utopia. Nos momentos de extrema dificuldade e desesperança, a minha geração imaginava que havia no horizonte algo melhor, o futuro de alguma maneira nos ofereceria uma sociedade mais justa, a democracia, menos opressão. Isso fazia com que nós, ao mesmo tempo, suportássemos aquele período difícil e nos solidarizássemos. Hoje o mundo parece ser tão cínico… O consumismo ganhou um espaço enorme. A ideia dos grandes princípios que nortearam muitos dos caminhos de políticos e intelectuais, trabalhadores do século XX, parece que se perdeu. Tudo está muito pragmático, imediatista. A mim, isso parece algo perturbador e perigoso. É preciso ter um projeto de futuro para podermos suportar o cotidiano político. Precisamos ter um horizonte. Hoje, o grande guarda-chuva que parece unir as pessoas é a ecologia, pensar as questões ambientais, a preservação da natureza. Isso é algo que comove e junta até aqueles com ideologias políticas diferentes, à esquerda ou à direita. Mas não vejo uma utopia que nos diga “vamos ter um mundo com menos pobreza, com mais igualdade”, que nos alimentou nos momentos mais difíceis do passado. Não sou cética imaginando que as coisas não vão mudar. Acredito que mudarão, mas será demorado.
Você diz que a dimensão da esperança como bússola foi eleita pela sua geração. Para onde aponta a sua bússola hoje?
Até o começo dos anos 1990 eu tinha muitas certezas. Porque pertenço a uma geração que tinha certezas em relação ao futuro, particularmente do Brasil, da América Latina. No início dos anos 2000, perdi – para o bem, acho – as certezas, mas mantenho o mesmo ânimo e o mesmo entusiasmo olhando para frente. Desejo olhar para o horizonte e tentar enxergar esboços, ainda que mal alinhavados, de utopias. É necessário refletir criticamente sobre o presente e entender que aquilo que se vive não é “natural” e sim resultado das ações e contradições dos indivíduos na história. E, finalmente, lembrar que é preciso ter paciência, pois sabemos que as ideias dão frutos em tempos longos, que não coincidem com os tempos das ações dos políticos.
Fonte: Revista Pesquisa Fapesp
Por Glenda Mezarobba| ED. 257 | Julho 2017