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Marcenaria ou laboratório? O escritor, a beleza e a vida | Rubens Marchioni

No seu ateliê, o marceneiro conversa com a madeira – madeira de lei. Ela é como um violino: se bem executado, pode entregar uma melodia que tem o poder de encantar.

O artesão procura extrair-lhe o que de melhor se pode obter em termos de um móvel. Ele quer uma peça extremamente bela, cheia de utilidade e resistente. A decoração e a praticidade da cada ambiente estão em jogo. O conforto deve prevalecer em todos os detalhes.

Enquanto isso, em outro canto, num laboratório, o cientista se envolve profundamente na prática de uma quase alquimia. Ele está em busca da fórmula perfeita que salvará muitas vidas, vidas sem perspectivas, com ausência de horizontes. Sua atividade é vital.

Por sua vez, o poeta e o escritor são assim: eles olham para a realidade e a percebem em toda a sua crueza, sem qualquer disposição para o diálogo. Depois, eles se detêm nas palavras, que são tantas e de tantos matizes. E acreditam que a aplicação da palavra exata sobre a superfície dura da madeira pode convertê-la em matéria-prima, que aceita uma versão mais confortável. E então eles iniciam o processo, levando-o adiante até que a matéria bruta se converta em arte e encante as pessoas.

Comentando essa analogia, Gabriel Garcia Márquez, escritor colombiano, autor de Cem anos de solidão, dentre outros, lembra que os dois, escrever e produzir móveis, são trabalho duro. Para ele, escrever alguma coisa é quase tão exigente quanto fazer uma mesa. E explica, lembrando que nos dois casos trabalha-se com a realidade, um material tão duro quanto a madeira. E explica: “Ambos são cheios de truques e técnicas. Basicamente, envolve pouca mágica e muito trabalho duro. E como Proust, acho, disse, requer dez por cento de inspiração e noventa por cento de transpiração. Nunca fiz marcenaria, mas é um trabalho que admiro muito, especialmente porque nunca se consegue encontrar alguém para fazê-lo pra nós”, conclui.

Um pouco antes de Garcia Márquez, Jesus Cristo ensinava por meio de parábolas. Senão, como transformar em conhecimento digerível um conceito de tal forma abstrato como o significado de Reino dos Céus? No mínimo por confiarem na sua procedência, os escritores seguem a mesma trilha didática do Mestre: usam analogias e metáforas, motivo porque somos gratos a eles. 

Assim, em seus ensaios críticos, Marianne Moore, poeta americana, faz frequentes analogias entre o poeta e o cientista. Ela acredita que esse recurso é útil para o poeta moderno.  No entanto, está convencida de que, para muita gente, isso talvez não fizesse tanto sentido. Essas pessoas estariam prontas para defender a ideia de que a comparação entre um poeta e um cientista não faz sentido, por serem personagens que desempenham papéis antagônicos ou, pelo menos, opostos. A propósito disso, e refutando o suposto argumento, Marianne propõe uma reflexão: “O poeta e o cientista não trabalham de maneira análoga? Ambos estão dispostos a não poupar esforços. Ser rigoroso consigo mesmo é uma das principais forças de cada um deles. Ambos são atentos a indícios, ambos devem ser rigorosos na escolha, devem buscar a precisão”.

Colocar os olhos sobre a realidade. Olhar para o que todos olharam e enxergar o detalhe original. Usar um critério rigoroso na escolha do material a ser traduzido e pincelar com extremo rigor e precisão cada palavra empregada, eis a tarefa do escritor e do poeta. O que vem depois é escrever, editar e entregar. Produzir beleza e conforto a partir da dureza da realidade, salvar uma vida e lhe oferecer alguma poesia: o que pode ser mais relevante nesses tempos em que estar no mundo parece uma aventura extremamente perigosa frente à nossa fragilidade?


 Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]