Dante era mais italiano do que dado à solidão de casa, cravada numa cidade feita de duzentos mil habitantes, se tanto, e de um rio cheio de mau humor e de histórias pra contar. Na sala da pequena residência, que agora dividia com nada menos do que ninguém, ganhava destaque um quadro onde se via toda a força de uma tempestade. Físico por direito e amor à profissão, os raios, relâmpagos e trovões o fascinavam.
Numa partida corriqueira de futebol, conheceu Lídio, que se identificava como uma espécie de “senhor das águas”, e Everton, jovem que havia aprendido a respeitar e admirar o poder da Natureza nem sempre dada a relevar comportamentos inadequados.
O verão havia chegado com toda força. Na bagagem, trouxe chuvas regulares, como se lhes tivesse sido comprado ingresso com dia e hora marcada. Chovia muito. Chovia forte.
Lídio gostava disso. Aproveitava para ensaiar aventuras arriscadas. A extrema autoconfiança o carregava para dentro da água, deixando-o à vontade para brincar. Enquanto isso, Everton usava cada nova oportunidade para aumentar as chances de ingressar no Corpo de Bombeiros. O velho sonho deixou a versão inicial mais cedo do que ele imaginava.
Entre um encontro esparso e outro, Lídio continuava se aventurando pelas águas, sem perder o contato com Everton, que regularmente se envolvia profissionalmente em episódios de salvamento. Cada um no seu quadrado, sempre trocavam experiências.
Dois anos atrás, Dante perdera o irmão mais velho, vítima de uma chuva tão forte quanto imprevisível. Nem mesmo toda habilidade do “senhor das águas” teria sido suficiente para salvá-lo da tempestade, feita de raios, trovões e muita fúria. Não fosse pela distância em que se encontrava, Everton poderia tentar o resgate.
Por conta da perda, Dante sentia que era sua a missão de se dedicar ao salvamento que não pôde fazer para manter seu irmão trabalhando em doses generosas, falando com todo o corpo, cantando e tomando vinho com amigos.
Em uma das tempestades, depois de tomar um aperitivo modesto, Lídio decidiu brincar num lugar pouco acolhedor e nada amistoso. Audacioso, achava divertido insultar a água e sua ânsia de sempre vencer. Não deu certo.
Sentindo que era chegada a hora, e acreditando que a vida tinha muito valor, o italiano se jogou na água para salvar alguém que ameaçava se afogar. Na figura do que até então era um estranho, Dante salvaria o próprio irmão, e parte da sua dívida emocional seria quitada.
O previsível aconteceu: sem avaliar os riscos, Lídio reagiu, dificultando qualquer forma de ajuda. Essa atitude fora de hora provocou em Dante o instinto de aumentar o empenho na empreitada, que se tornava cada vez menos promissora.
Dante perdeu Lídio de vista, que foi levado pela força da água com os entulhos de que se armara. Cada um a seu modo, os dois foram vencidos. Resignado, Dante voltou para casa. Até prova em contrário, o amigo estava mesmo desaparecido.
Somente depois de algum tempo, Dante soube de indícios de que Lídio havia se agarrado a uma árvore, talvez, longe dali, e conseguido se salvar. Então o físico lutou de outra forma, buscando informações sobre o destino daquele que não poderia estar morto. Ao menos por algum relato sem fonte identificada, era verdade que ele havia sido visto bem longe dali.
Everton suspeitava do desaparecimento completo do amigo. Talvez tivesse razão. Para testar essa hipótese, começou uma pesquisa mais detalhada do caso no sistema da corporação. Por sua vez, Dante manteve e reforçou a busca, porque também acreditava que “o senhor das águas” poderia estar vivo, talvez sem se lembrar do quase afogamento e do próprio endereço.
Olhando numa velha agenda, finalmente Everton encontrou o endereço de Dante. Cauteloso, decidiu procurá-lo. Dias depois, aconteceu a visita inesperada do bombeiro. “O Lídio foi visto novamente, sem ser reconhecido; é o que dizem” – confidenciou, convidando-o para visitar o local onde ele supostamente estaria vivendo.
Foram até lá. Mas logo voltaram, sem resposta e com mais dúvidas. Verdade é que Lídio nunca mais foi nem supostamente visto. Nem fato, nem fake existiam.
Everton e Dante procuraram salvar ao menos a amizade que, afogada pelo tempo, vagueava quase irreconhecível.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao