Fechar

Luiz Felipe Pondé e a política

O filósofo Luiz Felipe Pondé empresta sua ironia refinada, texto ferino e indiscutível erudição a um objetivo mundano, mas bastante complexo: explicar a política em nosso dia a dia. Política no cotidiano é seu segundo livro na coleção.

Luiz Felipe Pondé e a política

Não tenho nenhuma expectativa política. Nenhuma utopia. Não espere aqui qualquer salvação política. Nosso objeto é a política no cotidiano, e este é o inimigo número 1 de qualquer utopia. O que não implica que ele seja distópico. Distopias na história são, geralmente, utopias que se realizaram e destruíram o cotidiano.

O cotidiano é o inimigo número 1 da perfeição. O que nos resta quando olhamos para o cotidiano? A humildade de saber que sempre fracassamos em nossas expectativas de perfectibilidade. A política, nos últimos séculos, se fez o terreno por excelência das utopias, por isso, uma lupa sobre seu cotidiano, em várias frentes, implica uma experiência antiutópica para o pensamento.

A política, dita de forma metafórica, é uma ferida aberta, mais ou menos infecciosa continuamente. A arte da política é lidar com isso para que a infecção não piore; logo, a arte da política é a clínica da ferida. A filosofia política deveria ter como tarefa olhar para essa ferida sem imaginar que ela seja algo que sangra e, muitas vezes, mata. A ciência política deveria ser sua anatomia.

Luiz Felipe Pondé e a política

Dito de forma menos metafórica, política é o terreno do poder, e o poder é sempre perigoso, e ninguém sabe direito onde colocá-lo de forma mais segura. A política é uma esfera de risco, sempre. Por isso política tem muito a ver com religião, apesar de os semiletrados acharem que não. Política e religião sempre andaram juntas: na Pré-História, na Antiguidade, desde sempre e até hoje, mesmo que sob formas não tão evidentes. Esse vínculo é muito sério e perigoso, e não foi por acaso que esse mesmo vínculo matou o pai fundador da filosofia, Sócrates, acusado de ateísmo em Atenas.

A política coloniza o invisível, os sonhos, o futuro, a imaginação, o sexo, os bons e maus sentimentos, os deuses e os demônios. Alguns, como Michel Foucault (século XX), suspeitaram que a própria ideia de verdade (sua “episteme”) era, apenas, política, formas organizadas de discursos e práticas de poder.

A percepção de que a política coloniza o cosmos humano pode nos fazer mal porque tudo parece, a partir de então, ser apenas uma luta pelo poder. E esse mal-estar tem fundamento. Quando adentramos o terreno da política, não há espaço para mais nada além do que ela mesma, mesmo quando, mais recentemente, muitos creem existir uma política do bem, sustentada na racionalidade ou no utópico caráter ético dos cidadãos. Essa forma de equívoco, alimentada por autores como Jean-Jacques Rousseau (século XVIII) e John Stuart Mill e Karl Marx (ambos no XIX), entre outros, nos faz crer que o “povo” é sempre confiável, apesar de a História estar cheia de exemplos de que não há nenhuma garantia com relação ao comportamento moral de ninguém quando o que está em jogo é o próprio poder. A política é sempre um terreno do mito.

O recurso do autoengano nesse caso é o retorno ao caráter religioso mais óbvio da política, caráter essencial da política, como diz o filósofo Simon Critchley. Na democracia, esse elemento teológico age na crença teórica e prática de que existam agentes portadores da graça redentora histórica, agentes preservados das contingências e dos males dos demais agentes políticos em questão. Uma forma de fé sem deuses em pessoas com carisma ou no “povo”.

A política no cotidiano é a colonização deste por aquela. Aviso que a consciência desse processo pode causar mal-estar em quem decidir segui-lo até o fim. Para mim, penso que esse processo pode ser de algum modo libertador, como toda forma de expectativa superada sempre é. Só se pode refletir a sério acerca da política sem alimentar qualquer expectativa com relação a ela. A política é “um sistema triste”, como se referia Rousseau ao seu próprio pensamento político.

Antes, um último reparo. Sei das crenças em que identificar o elemento político, por exemplo, nos corpos (biopolítica), é visto como emancipador. Não duvido de que em alguma medida assim o seja. Entretanto, tenho uma agenda escondida (“hidden agenda”, como se fala em inglês) aqui com relação a crenças como essa (biopolítica foi apenas um exemplo, nada mais): denunciar que a politização do cotidiano e da vida em geral é uma nova expulsão do paraíso. Aumenta nossa consciência e, portanto, pode nos fazer mais infelizes. O cotidiano saturado de consciência política é uma forma de inferno, que já vivemos. Entretanto, muitas vezes, responder à agressão do mundo pode assumir contornos de políticas inesperadas, como algumas que veremos a seguir.

Refletir sobre a política do cotidiano é olhar de perto o modo como distintas formas de poder se espalham e inundam o mundo para além das próprias instituições políticas e seus profissionais, e não apenas pensar no cotidiano como um dia atrás do outro. Num arroubo epistemológico, fazer o percurso da política do cotidiano pode ser uma investigação do cosmos desse cotidiano a partir das formas distintas de como ele é objeto do poder. Olhar o mundo deste lugar pode se constituir num sério convite ao niilismo.

O leitor perceberá que os capítulos dialogam entre si, se entrelaçam e retomam temas uns dos outros, formando uma teia, a teia da política do cotidiano.


Luiz Felipe Pondé é filósofo graduado pela Universidade de São Paulo (USP), com mestrado pela mesma instituição e pela Université de Paris VIII, além de doutorado também pela USP. É vice-diretor e coordenador de curso da Faculdade de Comunicação e Marketing da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). É autor de diversas obras, colunista do jornal Folha de S.Paulo e comentarista da TV Cultura. Pela Editora Contexto publicou também Contra um mundo melhor: ensaios do afeto e Filosofia do Cotidiano.