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A linha dos ratos | Nazistas entre nós

Por Marcos Guterman, na introdução do livro “Nazistas entre nós

A mais conhecida rede de auxílio de nazistas depois da guerra, a “Odessa”, nunca existiu de fato. Famosa em razão do thriller literário Dossiê Odessa (1972), de Frederik Forsyth, transformado depois em filme de sucesso, a Odessa alimentou a imaginação de gerações a respeito de um complô internacional para dar refúgio e liberdade a alguns dos piores criminosos de guerra da História. Além de Forsyth, outro que se esforçou para que o mundo acreditasse na existência da Odessa foi o caçador de nazistas Simon Wiesenthal, famoso não só por sua perseverança na perseguição aos criminosos do Terceiro Reich, mas também por alguns exageros.

A Odessa pode ter sido apenas ficção, como demonstra a ausência de documentos a atestar sua existência, mas houve de fato diversos empreendimentos organizados para tirar os nazistas da Europa e levá-los a lugares seguros, onde, com a ajuda de membros do Vaticano e dos serviços secretos de várias partes do mundo, escapariam da Justiça e poderiam reconstruir suas vidas, muitas vezes emprestando sua expertise em tortura e assassinato para governos ditatoriais ou mesmo em democracias dispostas a usar qualquer arma, mesmo as imorais, para vencer a Guerra Fria contra os comunistas.

A principal rota de fuga para os nazistas, esta sim muito real, era a chamada Ratline, literalmente “Linha dos Ratos”, também conhecida como “Rota dos Monastérios”, por envolver vários sacerdotes católicos. Os carrascos Josef Mengele, Klaus Barbie e Adolf Eichmann foram alguns de seus beneficiários mais importantes, mas centenas de outros oficiais do Terceiro Reich usufruíram desse serviço.

A Ratline foi organizada por sacerdotes de ultradireita, que usaram parte da estrutura do Vaticano para operar. Há quem diga que o próprio papa Pio XII – cujo papel ambíguo a respeito da perseguição aos judeus alimenta toda sorte de especulações sobre suas intenções à época – tinha conhecimento da iniciativa, mas os documentos a esse respeito não são conclusivos.

A Ratline foi um sucesso também porque sua rota contava com a fragilidade da vigilância na Itália. Embora derrotada na guerra já em 1943, a Itália permanecia em parte sob o controle nazista, e esse controle perdurou, em algumas regiões, até mesmo depois da guerra. Não era difícil, portanto, circular por ali e alcançar os portos italianos, por onde foi possível escapar da Europa.

Um dos protagonistas da Ratline foi o padre Krunoslav Draganović, um fascista croata que tinha grande trânsito nos serviços de inteligência americanos, os quais ele ajudava com informações e com o perigoso trabalho de transportar para fora da Europa os nazistas que interessavam muito aos Estados Unidos, mas que, por outro lado, poderiam causar embaraços aos americanos se fossem capturados e levados a julgamento – ocasião em que certamente falariam sobre essas relações.

Outro importante operador da Ratline foi o bispo Alois “Luigi” Hudal, reitor de um seminário austro-germânico em Roma. Foi ele quem organizou pessoalmente a fuga de Franz Stangl, ex-comandante do campo de extermínio de Treblinka, para a Síria, e também de Adolf Eichmann e Josef Mengele. Em uma carta ao caudilho argentino Juan Domingo Perón, datada de agosto de 1948, Hudal pede 5 mil vistos de entrada, para 3 mil alemães e 2 mil austríacos. Disse que não se tratava de refugiados, e sim de soldados que haviam “lutado contra o comunismo”. Enfatizava, na mensagem, que a Europa estava livre do bolchevismo graças ao “sacrifício” daqueles homens.

Junto com Hudal, trabalhava o padre húngaro Edoardo Dömöter, de uma paróquia de Gênova, de onde partiam os navios que levavam os nazistas para fora da Europa. Dömöter foi o responsável por solicitar o passaporte com o qual Adolf Eichmann, o responsável pela organização do genocídio dos judeus europeus, fugiu para a Argentina.

Em menor escala, outra organização, chamada Die Spinne (“A Aranha”, em alemão), também trabalhou para tirar nazistas da Europa – cerca de 600 criminosos foram beneficiados. Essa organização é o mais próximo que se pode chegar da lendária Odessa, pois se dedicava, tal como a rede fictícia, a salvar apenas ex-integrantes da SS, a tropa de elite nazista. Um de seus principais arquitetos foi o superespião nazista Otto Skorzeny, um dos mais importantes oficiais da SS, que vivia na Espanha depois da guerra e trabalhou sob a proteção do ditador Francisco Franco.

Os serviços de inteligência americanos sabiam perfeitamente como funcionava a rede Die Spinne, mas aparentemente nada fizeram para interromper seu trabalho. Pelo contrário: em sua determinação de enfrentar a ameaça comunista, fizeram uso dos bons serviços do competente Skorzeny. E ele não foi o único nazista útil para o governo dos Estados Unidos.