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Linchamentos: a justiça popular no Brasil – José de Souza Martins

por José de Souza Martins, na introdução do livro “Linchamentos: a justiça popular no Brasil

A frequência dos linchamentos no Brasil pede que se conheça melhor a forma e a função do justiçamento popular, entre nós endêmico. O que esta sociedade é também se expressa e se mostra por meio delas. A compreensível tendência da Sociologia é a de interessar-se primeiramente pela investigação e pela interpretação dos fenômenos sociais de superfície, aquilo que é concebido como realidade social. Isto é, os fenômenos que, em primeira instância, são acessíveis a alguma compreensão dos próprios agentes sociais, aqueles que podem narrar e explicar o que vivenciam, ainda que narrativa e explicação viesadas pelas deformações, bloqueios, omissões e limitações naturais da consciência individual. Cabe aí ao sociólogo, a partir das evidências nessa fonte obtidas, reconstituir o real para expor as insuficiências do senso comum, chegar aos fundamentos ocultos das relações e ações sociais, desvendar a estrutura a elas subjacente e a temporalidade menos visível dos processos sociais que as preside.

O justiçamento popular se desenrola num plano complexo. Há nele evidências da força do inconsciente coletivo e do que estou chamando aqui de estruturas sociais profundas, as quais permanecem como que adormecidas sob as referências de conduta social atuais e de algum modo presentes também no comportamento individual. As estruturas sociais profundas são as estruturas fundamentais remotas que, aparentemente vencidas pelo tempo histórico, permanecem como referência oculta de nossas ações e de nossas relações sociais. São estruturas supletivas de regeneração social, que se tornam visivelmente ativas quando a sociedade é ameaçada ou entra em crise e não dispõe de outra referência, acessível, para se reconstituir, fenômeno que se expressa nos linchamentos. Nesse sentido, os linchamentos podem ser remetidos à concepção de violência fundadora, de René Girard, que de linchamentos tratou em várias de suas obras. Sendo o linchado, via de regra, o estranho ou o que, por seus atos, é socialmente estranhado, isto é, repelido e excluído, mesmo no átimo de sua execução, preenche a função de “quem vem de um outro lugar”, do “estrangeiro”, cumpre a função ritual e sacrificial do bode expiatório.

Não é, portanto, estranho que encontremos nos linchamentos de hoje em dia formas de ação muito parecidas com aquelas já presentes nos primeiros linchamentos ocorridos no Brasil, ainda na Colônia. Antes mesmo que essa palavra surgisse na América inglesa, no século XVIII, e aqui chegasse, no século XIX, na conjuntura de tensões e linchamentos da proximidade da abolição da escravatura, quando essa palavra se tornou, aqui, de uso corrente. E ainda, não só as formas, mas também os significados que presidiram as condenações da Inquisição ao longo do período colonial. Os enforcamentos, sentença comum da Justiça brasileira até 1874, como aconteceu em outros lugares, tinha estrutura de espetáculo público, o que também acontecia nos autos de fé da Inquisição. Não lhes faltava nem mesmo a decapitação dos sentenciados e a decepação das mãos junto ao patíbulo, salgamento de cabeças e mãos e seu acondicionamento em caixas de madeira levadas, por capitães do mato, em excursões a lugares remotos das províncias para escarmento dos povos, como se dizia. Verdadeiro funeral de horror. Espetáculo ainda visível nos linchamentos de hoje, no açulamento de executores, como se fazia com o carrasco de antigamente, não só homens adultos coadjuvando os mais ativos na execução, mas também mulheres e crianças. Nos linchamentos, a presença de mulheres e de crianças, acolitando e até participando das execuções, aparentemente confirma o caráter ritual que os linchadores querem dar à punição.

linchamentos-3dA força da tradição, seja na própria concepção de linchamento, seja nos rituais de que se revestem, ganha sentido nos costumes funerários da sociedade brasileira, ainda fortes nas regiões rurais. São verdadeiras sobrevivências de arqueologia simbólica e imaterial que um dia dominaram, no Brasil, nossas concepções sobre a vida e a morte e o modo como se determinavam reciprocamente. Sem levar em conta a centralidade cultural da morte nas tradições da sociedade brasileira, perde-se o conteúdo sociológico essencial da prática do linchamento, que fica reduzida a mero ato de violência e limitada a uma compreensão semijurídica. Fiz, paralelamente à pesquisa sobre os linchamentos, uma pesquisa complementar e artesanal sobre a morte e o morto e sobre as crenças relativas ao corpo. Os três ensaios dela resultantes estão contidos na segunda parte do livro. Eles esclarecem as concepções subjacentes a certas práticas associadas aos linchamentos, especialmente relativas ao inconsciente coletivo e às estruturas sociais profundas. As questões propriamente metodológicas são analisadas na terceira e última parte do livro.

Há uma demora cultural na mentalidade que permanece, ainda que impregnada de disfarces de uma atualidade que não é a do novo, mas a do persistente. A Justiça formal e oficial deixou de aplicar a pena de morte, ainda no Império, abolida por lei, mas o povo continuou a adotá-la em sua mesma forma antiga através dos linchamentos. Trágica expressão do divórcio entre o legal e o real que historicamente preside os impasses da sociedade brasileira, divórcio entre o poder e o povo, entre o Estado e a sociedade. Os linchamentos, de certo modo, são manifestações de agravamento dessa tensão constitutiva do que somos. Crescem numericamente quando aumenta a insegurança em relação à proteção que a sociedade deve receber do Estado, quando as instituições não se mostram eficazes no cumprimento de suas funções, quando há medo em relação ao que a sociedade é e ao lugar que cada um nela ocupa.

Os linchamentos expressam uma crise de desagregação social. São, nesse sentido, muito mais do que um ato a mais de violência dentre tantos e cada vez mais frequentes episódios de violência entre nós. Expressam o tumultuado empenho da sociedade em “restabelecer” a ordem onde ela foi rompida por modalidades socialmente corrosivas de conduta social. É que o intuito regenerador da ordem, que os linchamentos pretendem, fracassaram, tanto quanto a República fracassou no afã de modernizar e de ordenar, de instituir o equilíbrio de que toda sociedade carece na legítima aspiração de paz social e de garantia dos direitos da pessoa. Quanto mais se lincha, maior a violência; quanto mais incisivo o discurso em defesa dos direitos humanos, mais violados eles são. A polarização que se expressa nesses abismos pede superação, o que depende da lucidez que nos está faltando.

Os dados que recolhi e examinei nesta pesquisa evidenciam que, nos últimos 60 anos, cerca de um milhão de brasileiros já participou de, pelo menos, um ato de linchamento ou de uma tentativa de linchamento. Em face do volume de casos ainda não incorporados ao banco de dados, eu me arriscaria a dizer que esse número pode chegar a um milhão e meio de participantes disseminados por quase todo o país. Esse número de participantes mostra que a crescente frequência dessas ocorrências já pode ser o resultado de um efeito multiplicador, o que se nota em municípios e bairros em que tendo ocorrido um linchamento, com facilidade ocorre outro. O veto da censura da consciência social ao justiçamento praticado pela multidão foi aparentemente levantado e sua prática está sendo incorporada como um fato natural na vida rotineira da sociedade, a justiça da rua disputando autoridade com a justiça dos tribunais. Esse número também confirma que o linchamento é hoje um componente da realidade social e vem perdendo sua eventual caracterização como fato anômalo e excepcional.

Nos cerca de 60 anos abrangidos pelos 2.028 casos que compõem o material desta pesquisa, 2.579 pessoas foram alcançadas por linchamentos consumados e tentativas de linchamento. Nestas, apenas 1.150 (44,6%) foram salvas, em mais de 90% dos casos pela polícia. Outras 1.221 (47,3%) foram de fato capturadas pela turba e alcançadas fisicamente nas agressões – feridas ou mortas –, espancadas, atacadas a pauladas, pedradas, pontapés e socos, nessa ordem e nessa progressão, até os casos extremos de extração dos olhos, castração, extirpação das orelhas e cremação da vítima ainda viva. Desse grupo, 64% (782) foram mortas (30,3% do total de vítimas) e 36% (439) foram feridas (17% do total de vítimas), salvando-se estas graças à chegada da polícia, que interrompeu o processo de sua execução. Ainda no conjunto dos linchamentos e tentativas, 8,1% das vítimas conseguiram escapar por seus próprios meios.

Os ensaios reunidos neste livro foram escritos, aos poucos, ao longo do tempo da própria pesquisa de que resultam. Constituem o preâmbulo de outro livro, ainda em preparo, de análise sistemática dos dados colhidos, com ênfase na dimensão propriamente ritual dos linchamentos. Foi um modo de organizar e interpretar provisoriamente, passo a passo, os dados que iam se acumulando, para definir as conexões de sentido dos casos que, ao se avolumarem e se diversificarem, acrescentavam novos e significativos elos à complexa trama de componentes dos linchamentos. Desse modo, o que era, inicialmente, apenas um tema de pesquisa exploratória, foi se encorpando como objeto de conhecimento ao longo de mais de 30 anos de observações e registros.

A ideia, neste momento, não é apenas expor resultados da investigação sobre um problema social, mas expor a arquitetura de uma pesquisa, a nervura do processo investigativo e a sequência de seus resultados parciais e acumulativos. É, também, a de expor o método da pesquisa, os passos do trabalho investigativo, como descrição progressiva e interpretativa, numa dinâmica de investigação-explicação-investigação. Um modo diferente do convencional no trato de questões sociais. Cada momento aparece no texto em sua inteireza provisória. Cada momento do processo não concluído já permite análise e interpretação. Mesmo que seja para correção, reformulação e atualização nos passos posteriores. São insights que foram dando andamento à pesquisa, preparando seus desdobramentos, multiplicando os campos de registro e de observação das ocorrências.

Estes textos não formam necessariamente uma sequência e nem sempre há coincidência nos números neles contidos, pois resultam de diferentes etapas de apuração dos dados. Onde coube, atualizei os dados numéricos, deixando de fazê-lo apenas em relação a temas e momentos em que há uma dimensão monográfica no episódio ou no momento analisado. Às vezes a linha da análise pediu que fossem preferencialmente adotados os números apurados até aquele momento. São os de quando a pesquisa chegou a um patamar de consistência suficiente para uma interpretação de meio de caminho que permitisse formular seus passos seguintes. Em cada um, o importante é o desvendamento progressivo das conexões de sentido da realidade observada. São os dados suficientes para tanto naquele momento considerado. São mantidos assim para destacar um aspecto importante do artesanato intelectual na Sociologia que é o da dinâmica da própria pesquisa e as decisivas conclusões parciais e, eventualmente, provisórias. É esse um meio de refinar os dados e preparar o estudo final sobre o tema. O conjunto dos capítulos tem uma inteireza própria e peculiar na medida em que se completam não como sequência explanativa, mas como conjunto de prospecções investigativas que se articulam. Há, portanto, neste livro o adicional de uma contribuição pedagógica não só em relação à observação sociológica, mas também ao modo de fazer a observação sociológica sobre um tema insólito como esse.

O que pretendo, aqui, é expor os momentos de uma investigação sobre justiçamento popular no Brasil, vários deles de monitoramento diário das ocorrências – linchamentos e tentativas de linchamento – através da reciclagem do noticiário jornalístico a respeito. A pesquisa teve, ainda, desdobramentos em três estudos de caso, realizados em trabalho de campo no oeste de Santa Catarina, no interior de São Paulo e no sertão da Bahia. Três casos que foram escolhidos no conjunto dos registros já feitos, entre 58 selecionados em função de apresentarem em detalhe e de maneira mais completa o cumprimento do que foi se evidenciando como uma espécie de protocolo inconsciente de procedimentos punitivos contra acusados de crimes motivadores da ação coletiva, da suspeita à execução.

Em cada momento da coleta dos dados, a própria informação já colhida foi propondo modificações na estrutura do formulário de registro dos casos, adotado para agregar evidências que não haviam aparecido antes e classificá-las. Em cada alteração, os dados já colhidos foram revistos e transferidos para o formulário modificado.

Essas agregações geram ou suscitam novas variáveis, que resultam da combinação agora possível e da nova configuração dos dados empíricos. Trata-se de um procedimento incomum na tradição sociológica, o de que a pesquisa em seu próprio andamento propõe e impõe o formato das ferramentas nela utilizadas. Seja em consequência do incontornável tipo de fonte e de suas limitações, seja em consequência das alterações na perspectiva dos autores e dos divulgadores dos dados, seja como resultado da própria modificação do objeto da pesquisa devido ao maior volume de informações. O acrescentamento do número de casos foi, ao longo da pesquisa, expondo elos minúsculos e insuspeitados entre as evidências maiores e mais repetidas, uma confirmação da relevância do excepcional em relação ao frequente e repetitivo. À medida que os linchamentos se tornaram mais frequentes, os jornais tenderam a padronizar as informações a eles relativas, mesmo que cada jornal definisse uma linha própria de tratamento do assunto. Foi o que levou o pesquisador a que não se conformasse com os dados contidos numa única fonte. As diferenças de modos de ver das diferentes fontes sugeriram que os dados fossem tratados na perspectiva de uma sociologia do conhecimento.

A pesquisa nasceu, aliás, artesanalmente, da reunião aleatória de informações que surgiam em conexão com outra pesquisa que o autor fazia sobre conflitos e tensões na região amazônica, na fronteira, na chamada frente de expansão. Num certo momento, as informações acumuladas ao acaso, em blocos de recortes de jornais, começaram a indicar uma regularidade nas ocorrências e nas repetições, um padrão, uma evidência de que estavam referidas a um lado mal conhecido da estrutura e da dinâmica da sociedade brasileira. Um objeto de conhecimento sociológico se evidenciava como problema social. Ao mesmo tempo, propunha os termos de sua elaboração teórica inicial e dos decorrentes problemas de investigação e interpretação, que poderiam ser traduzidos num projeto de pesquisa.

Material comparativo sobre as mesmas ocorrências em outras sociedades e em outros momentos históricos foi localizado e lido, em bibliotecas daqui e do exterior. Do numeroso material bibliográfico examinado, apenas cerca de 20% foi encontrado em bibliotecas brasileiras. O restante foi localizado, lido e reproduzido em bibliotecas de outros países. Também aí entrou um procedimento artesanal para viabilizar a busca, o de pegar carona em outros compromissos. Em diferentes viagens de trabalho, para atender a outras solicitações, de motivos diversos dos desta pesquisa, recorri às bibliotecas de instituições europeias, como as da Universidade de Cambridge, na Inglaterra, e nela a University Library, a do Institute of Criminology e a Seeley Historical Library. E, também, à biblioteca da Fondazione Internazionale Lelio Basso, em Roma, Itália, e à biblioteca da Maison des Sciences de l’Homme, em Paris, França.

Na Inglaterra, foi decisivo para isso meu vínculo com a Universidade de Cambridge e nela com seu Center of Latin American Studies e com a Cátedra Simón Bolivar, que ocupei em 1993-1994, bem como o vínculo com Trinity Hall, de que me tornei fellow e que tem me acolhido nestes últimos 20 anos. Foi decisivo, também, o apoio que recebi de Linda Bimbi, na Itália, e de Alain Touraine, em Paris, que me acolheram e generosamente me ofereceram os meios institucionais para fazer ali a pesquisa bibliográfica e a leitura do material encontrado.

Os ensaios que foram resultando da observação realizada também refletem a progressiva acumulação de evidências, que deixa de ser puramente quantitativa para ser qualitativa. Conexões de sentido de números ínfimos de evidências, que se tornam visíveis com o crescimento do volume de dados, revelam conteúdos do objeto que de outro modo não chegariam à análise. O objeto que se propõe à análise e interpretação do pesquisador modifica-se ao longo da pesquisa, à medida que novas evidências indicam que é um objeto maior e diferente do que fora concebido num momento anterior à análise. Também aqui, trata-se de um procedimento incomum na Sociologia, cujas regras pressupõem que a análise sociológica incida apenas sobre objetos de pesquisa “acabados”, definitivos, demarcados, desde a elaboração do respectivo projeto.

Este tem sido meu modo de conceber o objeto da Sociologia, como um objeto dinâmico, objeto insubmisso, objeto de processo social, que não se propõe ao pesquisador sempre do mesmo modo. Um objeto dependente da própria ferramenta da investigação e suas possibilidades, que se modifica ao modificar e aperfeiçoar a pesquisa e o instrumento de que o pesquisador se vale. O objeto é uma construção teórica, empiricamente fundamentada. A concepção de um objeto dinâmico, próprio do artesanato intelectual, demonstra-o este estudo, enriquece a pesquisa científica com a intuição teoricamente formulada e as possibilidades que abre para a observação sociológica a partir de materiais descartáveis e aparentemente irrelevantes do ponto de vista dos formalismos dos métodos convencionais.

A estrutura final da ficha de registro e classificação dos dados recolhidos nos jornais é datada de 30 de junho de 1997 e tem 189 campos. É essa, desde então, sua formatação final. O banco de dados tem atualmente fichas de 2.028 ocorrências, concentradas especialmente entre 1945 e 1998. E mais 2.505 ocorrências que trazem as informações até 2014, examinadas qualitativamente mas não desagregadas para compor o fichamento analítico. Trata-se, por ora, de um procedimento comparativo e experimental de monitoramento diário das ocorrências. Uma das ferramentas que desenvolvi para manter a uniformidade dos critérios de classificação dos dados foi o Manual de códigos e critérios, reformulado e adaptado sempre que dados qualitativamente novos sugeriam o acrescentamento de itens ao formulário já existente. Sempre, portanto, que a perspectiva de compreensão das ocorrências ganhava novos contornos e alargava sua interpretação.

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