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Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade | Izidoro Blikstein

Kaspar HauserDe onde veio Kaspar Hauser? Quem matou Kaspar Hauser?

Tais perguntas poderiam justificar O enigma de Kaspar Hauser, título brasileiro do filme Jeder für sich und Gott gegen alle (1974), do cineasta alemão Werner Herzog. E a verídica e obscura personagem tem, de fato, uma história enigmática que pode atiçar a curiosidade “detetivesca” do espectador: criado em um sótão, sem nenhum contato humano até os 18 anos, Kaspar Hauser aparece em Nurembergue, por volta de 1828, com uma carta em que há referências à sua misteriosa origem; acolhido na casa do criminalista Feuerbach, é assassinado em 1833, mas o crime nunca foi esclarecido. O segredo de Kaspar Hauser resistirá à dissecação de seu cadáver e até mesmo à retaliação de seu cérebro, considerado “esquisito”: depois do minucioso exame, os pontificais cientistas – parece que saídos do quadro A lição de anatomia do Dr. Deymann, de Rembrandt – ordenam que o atento secretário anote, no relatório médico, a observação de que a causa do estranho comportamento de Kaspar Hauser deve ser atribuída à deformidade de seu cérebro. Com tal conclusão, o obediente secretário retira-se eufórico, proclamando a perfeição e a beleza do relatório. Mas… será mesmo esta a causa das “esquisitices” desse misterioso indivíduo? Esse final de filme não deixa de ser decepcionante e o enigma muito pouco atrativo para aqueles que, seduzidos pelo título brasileiro, foram ver o filme guiados pela narrativa clássica das novelas policiais.

Mas, se começarmos a “leitura” do filme pelo título original, perceberemos talvez que o melhor enigma é bem outro. Com efeito, Jeder für sich und Gott gegen alle, “Cada um por si e Deus contra todos”, é um antirrefrão que embaralha logo de início a óptica tradicional, plantada no senso comum da cultura ocidental.1 Subversão de nosso aparelho perceptivo-cognitivo: este deve ser o eixo semântico a iluminar a significação mais profunda da história de Kaspar Hauser, vista por Herzog. De fato, pior do que os enigmas atirados ao espectador, é o estranho mundo em que se vê, de repente, plantado, atônito, perplexo, o próprio Kaspar Hauser. Seu olhar fixo diante de pessoas, ruas, casas, objetos, paisagens. Tudo assusta. As dimensões, os movimentos, a lógica, a perspectiva, o pensamento, a fala, o riso.

Numa recepção mundana, põe-se a chorar e, depois, subitamente, retira-se para um aposento onde começa a tricotar. Qual o pássaro de Magritte, em La grande famille, uma galinha aparece-lhe descomunal e pavorosa.

Tudo confuso, misturado, desproporcional. O quarto de Kaspar Hauser é maior do que a torre em que se encontra, maior do que a cidade, o mundo talvez. Vejo o filme de Herzog e ouço Bachelard: “O espaço habitado transcende o espaço geométrico”.

E também compreendo as dimensões dos objetos de Magritte.

Apesar de explicado pela linguagem, pelas palavras, por signos linguísticos, enfim, a paisagem em que foi colocado Kaspar Hauser permanece turva e indecifrável. Tão turva quanto as sombras que se movem nos desertos de seus pesadelos. Conhecer o mundo pela linguagem, por signos linguísticos, parece não bastar para dissolver o permanente mistério e a perplexidade do olhar de Kaspar Hauser. Talvez porque a significação do mundo deva irromper antes mesmo da codificação linguística com que o recortamos: os significados já vão sendo desenhados na própria percepção/cognição da realidade.

Kaspar Hauser: linguagem, mundo, realidade, percepção, significação, cognição… assim é que, procurando desvendar os enigmas do filme de Herzog, fui sendo levado, pouco a pouco, a revisitar um antigo e problemático tema, situado num entroncamento por onde passam a linguística, a semiologia, a antropologia, a teoria do conhecimento etc.: trata-se da relação entre língua, pensamento, conhecimento e realidade. Até que ponto o universo dos signos linguísticos coincide com a realidade “extralinguística”? Como é possível conhecer tal realidade por meio de signos linguísticos? Qual o alcance da língua sobre o pensamento e a cognição?


Izidoro Blikstein possui graduação e especialização em Letras Clássicas pela Universidade de São Paulo (USP), mestrado em Linguística Comparativa pela Université Lumière Lyon 2, doutorado e livre-docência em Letras pela USP, e é professor titular em Linguística e Semiótica pela mesma instituição. É consultor da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e professor adjunto da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas SP. Tem experiência na área de Comunicação, atuando com Semiótica e Intertextualidade. Pela Editora Contexto, publicou Falar em público e convencer, Técnicas de comunicação escrita e Kaspar Hauser ou a fabricação da realidade.