Jô Soares foi uma figura ímpar. Homem culto, não deixava de fazer referências eruditas, mesmo na televisão comercial, veículo frequentemente utilizado para conversas chulas e irrelevantes. Era senhor dos seus programas de entrevistas, conduzindo o interlocutor para onde bem ele, Jô, desejava, e não necessariamente para onde o entrevistado queria. Mas, ao contrário de donos rasteiros de horários nobres, fazia isso com tanto tato e elegância que, mesmo saindo sem dar o recado que julgava interessante passar, o entrevistado se sentia feliz, realizado. A isso chamamos ter classe.
Posso falar com alguma experiência do que era ser entrevistado por Jô, já que fui convidado e aceitei ir a seu programa quatro vezes, duas quando, ainda no SBT, chamava-se Jô Soares 11:30, referindo-se ao horário em que, supostamente, deveria ir ao ar, e outras duas já na Globo, onde ele reinou por muitos anos. Compartilho alguma coisa de cada vez que fui lá.
Recebi o primeiro convite quando montei, na Bienal do Livro de São Paulo, uma exposição sobre os Pergaminhos do Mar Morto, dos quais muito se falava na ocasião. Com a ajuda da historiadora Carla Bassanezi Pinsky e a convite dos organizadores do evento, pesquisei em Jerusalém sobre os documentos encontrados por um pastor anos antes nas proximidades do Mar Morto, mas só então devidamente organizados e apresentados ao público no Museu de Israel. No Brasil, o material foi objeto de cuidadosa exposição, visitada por centenas de milhares de pessoas. E eu levei ao programa do Jô um livro americano com fotos dos pergaminhos e expliquei seu significado. Nunca imaginei que a entrevista pudesse ser tão acompanhada, como foi. Durante semanas, pessoas procuraram um livro de minha autoria sobre o assunto (algo que nunca existiu), tanto em livrarias, quanto na própria Editora Contexto. E, embora eu nunca tivesse atribuído o tal livro ilustrado a mim mesmo, acabei levando uma bronca de uma senhorinha que, por telefone, me recomendou que eu não falasse de um livro como sendo meu quando não o tivesse escrito. Explicaram-me, depois, que havia uma parte da audiência que não assistia ao programa inteiro, que isso é muito comum, etc. e tal…
Quando publiquei, em dupla com a então promotora pública Luiza Nagib Eluf, o livro Brasileiro é assim mesmo, cidadania e preconceito, fui convidado uma segunda vez. Nessa ocasião, pude falar de uma obra que escrevi junto com uma mulher inteligente e articulada. O livro circulou bastante e aborda temas que, infelizmente, ainda estão na crista da onda, como racismo, patriarcalismo, diferenças socioeconômicas absurdas e preconceitos de todos os tipos.
Meu terceiro papo com Jô ocorreu como decorrência da publicação do livro Faces do Fanatismo, também da Contexto. Um livro de vários autores, várias ideias, mas todas combatendo fanáticos de todas as cores.
Gostaria, contudo, de falar de minha quarta ida ao Jô, na Globo, que está acessível na internet até hoje (neste link), quando fui entrevistado sobre meu livro Por que gostamos de História. Desta vez, montei uma estratégia para poder dar um recado, conduzir a entrevista em vez de ser por ela conduzido (o que significa, ser conduzido pelo Jô). Desde o começo, eu o tratei como um interlocutor inteligente e preparado, amante da História. Dialogando até com pessoas da plateia, procurei mostrar a importância do ensino da matéria, a necessidade de termos bons professores e de remunerá-los adequadamente, o fato de que conhecer História, de verdade, nos faz pessoas mais integradas no tempo, no espaço e na própria sociedade em que vivemos, pois a entendemos melhor por meio do conhecimento histórico. A entrevista correu tão bem que Jô resolveu ocupar comigo mais um dos três módulos de que ele dispunha, e pude então desenvolver ideias à vontade, contando com sua simpatia e o interesse da plateia. Assim, dei por encerrado com chave de ouro meu ciclo de entrevistas com Jô.
De resto, tanto o Jô como o pessoal de sua produção sempre prestigiaram os autores da Editora Contexto. Muitos deles foram convidados, participaram dos programas, agradaram, fizeram sucesso. Não por acaso. Com mais de 1.000 (mil mesmo, não há engano) das melhores cabeças brasileiras escrevendo e publicando seus livros conosco, é natural e compreensível que autores nossos tenham sido convidados para entrevistas com esse homem inteligente, culto, divertido, sensível e extremamente criativo.
Jô, sentiremos muita falta de você.
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.