Deixem a ortografia em paz
Publicado originalmente no jornal Correio Braziliense em 09/05/2014
por Jaime Pinsky
Do Senado, duas notícias, uma boa e outra má. A boa: parece que temos senadores preocupados com o ensino de português. A má: querem alterar outra vez nossa ortografia, agora radicalmente, com a esperança de que, com isso, alunos possam obter melhores resultados na aprendizagem da língua. Criaram até uma comissão, com o objetivo de aplicar o acordo ortográfico (o mesmo que, na prática, já está em vigor), e para fazer com que “se escreva como se fala”. Além de não ser boa, a ideia é impraticável. Fico curioso a respeito de como vai se escrever, por exemplo, aquilo que na ortografia atual é denominada Estação das Barcas (lá na Praça Mauá, no Rio de Janeiro). Para “fazer justiça” à pronúncia, deveríamos grafar “Ijtação daj Barcaj” ou Ixtação dax Barcax”? Fora do Rio, talvez “Istação”, ou ainda “Stação”, como muita gente fala, já que poucos dizem “estação”, além dos curitibanos…
E como redigir o quarto mês do ano? “Abriu”, como dizem muitos brasileiros, “abril”, como diriam alguns gaúchos, ou “abrir”, como parte dos paulistas, mineiros, paranaenses e outros pronunciam? Cabe ao leitor pensar em outros exemplos.
Pesquisas excelentes, feitas por linguistas sérios (Thais Cristófaro, Ataliba Castilho, Stella Maris Bortoni, entre muitos outros) têm mostrado enorme variação linguística até no chamado português culto. Qual seria, pois, o ponto de partida oral, para sua suposta reprodução em texto escrito? Obrigar todos a pronunciar as palavras de uma só maneira, ou ter uma infinidade de representações gráficas para diferentes expressões fonéticas?
Mas isso não é tudo. Como costuma lembrar Carlos Alberto Faraco, a língua escrita não é mero reflexo da língua falada: ambas constituem meios autônomos de manifestação do saber linguístico. A ortografia é uma representação abstrata e convencional da língua. E é fundamental que o sistema ortográfico seja estável e que, independentemente da variação na fala, haja uma única representação gráfica por palavra. Do contrário, não teríamos como reconhecer palavras que fossem escritas em outro tempo (ou até em outro espaço). Seria o caos.
As línguas, patrimônios culturais da humanidade, possuem história. Elas resultam de práticas sociais que as moldaram para que aqui chegassem do jeito que são. São fatores fonológicos, morfológicos, etimológicos e de tradição cultural que fizeram com que nossa língua seja grafada do jeito que é. Línguas também têm parentesco, e nossa origem latina comum permite que possamos ler com relativa facilidade (mesmo que não falemos) outras línguas como o espanhol, o francês e o italiano. Mesmo o inglês, graças ao enorme contingente de palavras de origem latina, fica mais acessível a partir de grafias semelhantes. Arrancar as raízes de nossa ortografia seria romper com importantes aspectos de nossa identidade histórica.
Temos ainda o aspecto prático, talvez o mais relevante de todos. Quando foi imposto o último acordo ortográfico (que, absurdamente, teve sua implantação oficial postergada), toda a indústria editorial movimentou-se para preparar novas edições de todo o seu acervo. Dezenas de milhares de títulos sofreram as mudanças exigidas pelo MEC e outros órgãos governamentais e privados. Gramáticas e dicionários foram refeitos; tratados foram revisados; livros infantis, alterados; manuais, reeditados. Uma nova reforma seria desastrosa, não só para as editoras, mas também para os governos, que teriam que substituir todas as bibliotecas novamente. Trata-se de muito dinheiro jogado fora, possivelmente levando à falência muitas casas editoriais importantes, promovendo gasto desnecessário de verbas públicas, tornando obsoletos bilhões de livros escolares e universitários.
E há, ainda, o aspecto da exclusão social. Quando uma reforma ortográfica é implantada, grande parte dos adultos se torna analfabeta, já que eles nem sempre conseguem reter e utilizar as novas regras inventadas por capricho de meia dúzia de “sábios”, ou de desavisados.
A preocupação é com a qualidade do ensino? Busquem-se soluções adequadas, fazendo com que excelentes pesquisas realizadas por importantes grupos de especialistas possam chegar até as escolas brasileiras, por meio de amplo programa nacional de qualificação de professores do ensino fundamental. Se houver, de fato, intenção de melhorar o ensino no Brasil, está cheio de gente boa pronta para ajudar.
Jaime Pinsky é historiador, professor titular da Unicamp, diretor da Editora Contexto, autor de Por que gostamos de história, entre outros livros
Prezado professor concordo plenamente que há fatores mais importantes para se preocupar com a qualidade do ensino em nosso país, seja em no aperfeiçoamento do idioma ou em outras quaisquer. Existem escolas nas quais a estrutura é ínfima faltam carteiras, portas nos banheiros dos alunos, deficiência por parte de funcionários e outros problemas mais que não cabe ser relatados… Penso que nossos representantes públicos deviam se preocupar em fornecer condições de trabalho adequados, salários dignos a nós professores e não implantar uma atrocidades dessas ao nosso idioma, se com uma única forma de escrita temos essa dificuldade tamanha para que escrevam imagine se cada um de nós pudermos escolher a forma que devo grafar determinada palavra? É um absurdo que não tem nem o que se comentar. Espero que este atentado ao idioma não ocorra.
Excelente! Concordo com você professor Jaime Pinsky.
As revisões ortográficas são sempre muito desastrosas. Mais que desastrosa, a proposta dessa nova revisão é a instauração do Terror! Uma nova guilhotina na Língua Portuguesa, já tão à míngua. Fico a imaginar se os franceses se inspirassem nesse falso brilhante, extraído da cabeça de cascalho desses doutos senadores, e tentassem nivelar por baixo a escrita francesa ao modo da fala…Nunca vi tamanha estultice (ou será stultici? ou sturtisi?).
A alteração/destruição da nossa língua é mais uma artimanha gramscista/comunista.
Uma crítica ao texto:
Não é absurda a postergação da implantação oficial da reforma ortográfica. É absurda a própria reforma ortográfica, essa monstruosidade, essa aberração desnecessária e sem nenhum propósito concreto.
O artigo traz toda uma série de informações relevantes de forma sucinta e interessante. Além disso, o artigo dispara o gatilho da imaginação do leitor: Já se imaginou se, em nome de alguma liberdade absoluta de escrita, os senhores senadores resolverem que se deve passar a escrever do modo como cada um fala, e não como se fala em cada país ou região, tal como o articulista imagina? Conheço uma moça que, falando, troca o “n” pelo “m”. Como é que ela vai escrever que “o nenê nanou”? “O memê mamou”?
Foi-se o tempo em que especialistas da língua eram consultados para tomadas de decisão importantíssimas como essas. O natural resultado de uma votação desse tipo só pode ser um desastre. Concordo em absolutamente todos os pontos levantados pelo prof. Jaime Pinsky. Com a ortografia não se brinca.
Será que mudando o nosso jeito de “escrivinhar” corretamente a língua falada este país será melhor avaliado pelos Projetos Internacionais, tchê! Quanto a “dinheirama” que o governo gastou e gasta com publicações – não é ele que vai pagar a conta mesmo – e mesmo os editores grandes acharão uma maneira de conseguir um ressarcimento junto aos bancos governamentais, certo!
Reformem as escolas sucateadas Brasil a fora. Criem mais incentivos “Reais” para a qualificação dos professores em todos os níveis; da educação infantil até o superior. Invistam mais nos Projetos que realmente podem alavancar a Educação deste país tão necessitado.
Mais é esperar muito da grande maioria de políticos que apenas acreditam em resultados imediatos e palpáveis nos seus bolsos.
Esperamos que os Políticos sérios e preocupados com o país façam a diferença.
Não custa nada acreditar na força da Palavra: “ESPERANÇA”.
No Brasil é sempre assim que se resolvem os problemas. Buscam sempre a maneira mais cômoda, que, diga-se de passagem, não resolve problema nenhum, apenas camufla-o. É evidente que é necessário estabilidade na ortografia de uma língua. Essa necessidade pode ser facilmente comprovada através do novo acordo ortográfico, que já nem é tão novo assim, mas continua a suscitar dúvidas na maioria dos brasileiros. Talvez seja necessário uma reforma mesmo, mas não na ortografia. Seria importante rever algumas regras de nossa gramática que já caíram em desuso até pelos usuários da norma culta da língua. Porém, essa discussão não pode partir apenas do governo, deve envolver todos os atores que trabalham diariamente com a língua, como gramáticos, linguistas, estudantes, entre outros, e , claro, os falantes do português brasileiro.
É a síndrome do major Policarpo Quaresma atacando periodicamente os nossos legisladores. Tal como os surtos de gripe, não há ainda remédio pra isso.
Sou professor de geografia. E penso que nossa ortografia deve ser algo que nos dê uma unidade nacional. Embora devemos respeitar o regionalismo brasileiro, se alterarmos a ortografia dessa maneira não estaremos contribuindo para melhorar a educação, mas sim para segregar a nação e ferir profundamente nossa cultura.
Não há notícia que seja boa! Porque essa preocupação nem revela interesse em educação. Esses senadores nada sabem! E insistem em dar provas disso. Podiam desistir! O povo já se convenceu!
Tomo conhecimento desta “barbaridade” de querer mudar novamente a ortografia pelo ótimo e lúcido artigo do Pinsky! Hoje vi um cartaz na Universidade (UFRGS) que dizia: Não queremos mais este congresso! Constituinte já!”. É de ficar pensando….
Texto muito interessante pela discussão que suscita e precisa mesmo acontecer. Concordo que não se deve esperar de novo que meia dúzia de “sábios” ou “desavisados”, – eu prefiro o último adjetivo – façam o que bem entendem sem avaliar as consequências de suas “brilhantes” decisões. Até agora não se sabe como a última Reforma vai melhorar o ensino ou o uso da Língua Portuguesa, porque realmente não é disso que se precisa.
Trata-se realmente da derrocada do saber, após tantos protestos e reivindicações para a melhoria do estudo nacional, alguns conformistas apresentam sua rendição ao coloquialismo, e exaltam assim um falso dialeto para que a atual e próxima geração não se curve ao trabalho de delinear nossa língua moldada pela história, e isto por si só apresenta o fato de que palavras possuem seu verdadeiro sentido, e substituí-las não só distorceriam seu significado com dizimariam sua existência ,tais como : acender e ascender; aferir e auferir; seção e sessão enfim pronúncias semelhantes e sentidos totalmente diferentes, melhor que “simplificar” a ortografia seria mostrar ao jovens estudantes sua musicalidade e com isto apresentar a engenharia das letras, pois não são complexas e sim necessárias, as regras gramaticais permitem a leitura de nossos clássicos literários como um transporte ao passado(e desta forma que se aprende) como ler Machado de Assis trocando suas palavras?, este que usava de magia e psicologia em seus escritos, Simão Bacamarte seu célebre personagem discordaria da interferência “nas línguas de Babel” em nome de uma simples objetividade, Policarmo Quaresma chamaria isto de “caba”,sim uma vespa , e imediatamente tomaria a defesa de nosso “tupi”, pois agora teria um inimigo em comum conosco, ou seja, o aviltamento de nossa língua.
Verdades ditas pelo autor do artigo, basta agora reiterar as sua palavras. Há que se investir na Educação do nosso país, ao invés de ficar tentando criar planos mirabolantes como esse apresentado no artigo em tela. Eu sei, e todos sabemos, que o poder público brasileiro fará de tudo para retardar a educação da massa, pois é visível o querer mantê-la “emburrecida” por toda eternidade. Não sistemas de intermeios que consiga acabar com a baixa qualidade na educação dos nossos jovens, a não ser a ação concreta de iniciativa das próprias autoridades brasileiras, baseada no que muito bem colocou o autor: pesquisas e investigações estão apodrecendo nas prateleiras de universidades brasileiras, tornando-se teses vazias. É preciso pois, que se passe imediatamente à ação, porque gente brilhante, com ideias magníficas estão por aí, à solta.
Pois é, não é?
Tremendo retrocesso,
Neste nosso ingresso horrendo
A língua passa por maus bocados
E, mesmo sem sabê-lo,
Cai ao nosso lado,
Condenado a fazê-lo de modo apressado…
Pobre de Nossa Língua Portuguesa,
Violentada por Analfabetos Engravatados
Envergonha-nos sermos brasileiros
Num país tão cheio de atrasados…
Ultrapassar os limites — quais?
Os que nos empurram ao retrocesso
Deixemos em Paz a Ortografia
Para que continue sua cantoria
Em nome da Ordem e do Progresso!
Wellington V. Fochetto Junior*
*Professor de Língua Portuguesa, Publicitário Profissional e “poeta” nas horas “vagas”…
Acredito que devemos deixas a língua “brasileira” em paz. Ao fazer o acordo ortográfico com os países da língua portuguesa muito se produziu. E tenho a certeza que a grande maioria dos brasileiros ainda desconhece o “novo português brasileiro”. Devemos dar tempo ao tempo e investir fortemente na educação de qualidade, não em educação de índices governamentais (tem que aprovar o aluno de qualquer maneira). Obrigado pelo convite de participar desse debate.
Gostei muito do artigo ‘Deixem a ortografia em paz’ do professor Jaime Pinsky. É difícil conquistar a ‘ortografia’, como é difícil conquistar muita coisa na vida. Os argumentos aduzidos pelo professor são convincentes. Eduardo Hoornaert.
Você tem razão em suas ponderações. meu caro. Nossos legisladores só conseguem nos indignar.
Como historiador, me pergunto a quem serve este tipo de projeto no Senado Federal.