Por Claudia Gasparini para Revista Isto É
Perder o emprego é um baque e tanto. Em entrevista exclusiva, professor explica como transformar a experiência do fracasso em sabedoria
São Paulo — Nada de “pensar positivo” ou acreditar que o sucesso depende apenas de você. No dia em que a vida trouxer notícias ruins, como a de uma demissão, Leandro Karnal espera que você abandone todas as respostas prontas.
Em entrevista por telefone a EXAME.com, o historiador e professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas) diz que o discurso típico da autoajuda se apoia em premissas pouco realistas, e ignora que o êxito e o fracasso não dependem exclusivamente do indivíduo.
Por outro lado, reconhecer o peso inegável das circunstâncias — como a crise econômica que assola o país e deve produzir quase 14 milhões de desempregados até 2018 — não significa que você não tenha nenhuma responsabilidade por um eventual desligamento.
Para Karnal, o profissional dispensado não deve se sentir um “perdedor”, até porque se colocar nessa posição só funciona como pretexto para se acomodar.
A saída mais interessante é aproveitar o lado útil do fracasso: a oportunidade de refletir sobre as suas fraquezas, aceitar o lado trágico da vida e construir uma nova atitude. “A felicidade engorda, enquanto a tristeza faz você se movimentar”, resume o professor.
Confira a seguir os principais trechos da conversa:
EXAME.com – Até que ponto o fracasso é culpa do indivíduo?
Leandro Karnal – Hoje existe um discurso dominante de que 100% do que acontece nas nossas vidas depende das nossas escolhas. Isso nasce de um certo pensamento liberal do início do século XIX, que tem uma dose de perversidade. É como se todo mundo que está mal tivesse optado por estar mal, e que todos podem estar bem — basta querer.
É o que embasa a ideia de que a pobreza é responsabilidade completa da pessoa, assim como a riqueza. Grande parte da autoajuda que percorre as palestras brasileiras diz: “Se você acreditar que é um vencedor, certamente vai vencer”. É uma crença excessiva na liberdade do indivíduo.
Teorias de diversas naturezas, da religião à psicanálise, contrariam essa tese. Não somos tão racionais, nossas escolhas não nascem de uma liberdade total e o acidente tem um papel muito maior do que imaginamos. Isso inclui até teorias de esquerda, como as de Thomas Piketty, que fala sobre a exclusão produzida de forma inevitável pelo nosso sistema.
Ao desenvolver a teoria psicanalítica, Sigmund Freud mostrou que as nossas ações são fruto de uma coleção de traumas e experiências infantis, e que certos graus de neurose e patologia existem em todos nós, até naqueles que não estão em casas psiquiátricas. Desde que Freud determinou isso, sabemos que há dificuldades estruturais com essa liberdade.
EXAME.com – O que se pode concluir, então?
Leandro Karnal – Tenho usado em minhas palestras duas noções desenvolvidas por Nicolau Maquiavel: a “virtù”, total de habilidades e competências que nascem comigo e que posso desenvolver, e a “fortuna”, que significa o acaso, a sorte, o azar, o inesperado.
Ninguém é tão divino (só “virtù”) e nem tão objeto inanimado e suscetível às circunstâncias (pura “fortuna”). No gráfico imaginário formado pelas retas “virtù” e “fortuna”, somos um traço tenso e curvo. Faz muita diferença a escolha do indivíduo. Mas nem sempre esse indivíduo lida com uma lógica absoluta, ele faz sua escolha dentro do possível.
EXAME.com – Diante de uma demissão, muitas pessoas se sentem “um lixo”, porque acham que tudo depende da tal “virtù”. Outras culpam a crise e negam qualquer responsabilidade pelo que aconteceu, como se tudo fosse resultado da “fortuna”…
Leandro Karnal – Sim. Acontece que, se você se sente um “lixo”, talvez você esteja certo. Mas a pergunta que realmente importa é: qual é a etapa seguinte? O que você vai fazer para mudar? É paralisante se sentir um “lixo” porque no fundo isso é um recurso psíquico para não agir. É uma forma de defesa, de preguiça, como se você dissesse: “Não dá, eu sou um fracassado mesmo, não preciso fazer mais nada”. Não há alegria maior do que entender que eu nunca mais vou emagrecer. Perdi o limite, engordei muito e agora não tenho como retroceder, então agora estou alegre. O fracasso é uma zona de conforto.
Outra forma de paralisia é atribuir tudo a forças exteriores. “Eu sou bom, mas sou perseguido”. “Sou competente, mas este país não presta”. Quando eu atribuo a responsabilidade de tudo a terceiros — destino, signo, Deus, governo — eu passo a viver também numa zona de conforto. Você diz, na prática, que não é gestor da sua vida.
Gosto de dizer que você é sócio majoritário do projeto da sua biografia. Ser sócio majoritário não significa poder controlar tudo, funcionários, fornecedores, clientes. Mas a responsabilidade é muito maior do que creem os deterministas.
EXAME.com – De que forma o autoconhecimento pode ajudar uma pessoa que está vivendo uma fase ruim na carreira?
Leandro Karnal – Se você olha para si mesmo com muita honestidade, se encara o retrato terrível da Medusa, que é o seu lado difícil, você tem a primeira chance de encará-lo e superá-lo. É preciso se observar sem máscaras, ou com menos máscaras.
É o que diz a máxima “Conhece a ti mesmo”, que funda a filosofia de Sócrates. Quando você não se conhece, acaba sendo controlado por partes de si, sua dor, seus traumas. É preciso investigar a si mesmo para perceber que você também é preguiça, você também é raiva. Se você sabe disso, fica mais fácil aceitar e diminuir o efeito dessas fraquezas.
Se eu descobrir, por exemplo, que a irritação com o meu chefe reproduz uma relação com a autoridade paterna mal resolvida, posso perceber que, na hora em que o meu chefe é chato, quem deve reagir é o funcionário Leandro, e não a criança Leandro.
Por outro lado, conhecer a si mesmo também é conhecer o que há de bom em mim mesmo, e também aquilo que me traz bem-estar. É muito comum ver pessoas que dizem que a carreira é tudo para elas, mas sofrem de úlcera e gastrite no domingo à noite. Elas não se conhecem, não sabem o que realmente querem.
A autoajuda falha porque pressupõe um modelo que não existe. Há pessoas que adoram atividades repetitivas. Outras são pouco ambiciosas e só são felizes se puderem ficar em patamares fixos. Há indivíduos viciados em desafios. Eu preciso saber do meu perfil. Não posso contrariar permanentemente a minha natureza.
EXAME.com – O fracasso pode criar um ciclo vicioso: a melancolia gera mais problemas e os problemas geram mais melancolia. Como escapar desse mecanismo?
Leandro Karnal – Em primeiro lugar, é preciso aceitar que há uma parte da vida que necessariamente dá errado. A morte chegará. As pessoas que eu amo podem desaparecer. Posso perder o emprego. Posso ser uma pessoa ruim. A existência tem sempre uma dimensão trágica. Tristeza não é um problema, não é algo excepcional.
Note que estou falando de tristeza, não de depressão. Depressão é uma doença grave, que requer acompanhamento profissional e tratamento. Já a tristeza é uma ferramenta de aprendizado. Se eu não quero sair da tristeza, é porque ela me dá um conforto. Talvez o meu medo de enfrentar um novo mercado de trabalho seja tão grande que eu vou me refugiar na melancolia. “Não dá, não tem jeito, é assim mesmo”. Porque o medo é maior.
Acontece que os países, as empresas e as pessoas se reorganizam na crise — para o bem ou para o mal. É a partir de uma crise nacional profunda que emerge a figura de um Winston Churchill. É também numa crise nacional profunda que emerge um Adolf Hitler. A crise é um grande momento, pode gerar muitas transformações e aprendizados.
O problema é que a “geração Facebook” acha que a vida só é plena se você pode publicar fotos felizes. Na verdade, a felicidade engorda. A tristeza faz você se movimentar.
EXAME.com – A morte do sociólogo Zygmunt Bauman no início do ano reacendeu o debate sobre a deterioração das relações humanas na era da internet. Redes sociais como o Facebook geram uma falsa ideia sobre o sucesso alheio?
Leandro Karnal – Toda tecnologia é neutra. Um martelo pode fixar um prego para pendurar um quadro, mas também pode assassinar uma pessoa. A rede também é neutra, tudo depende do que fazemos com ela.
Vivemos na sociedade do espetáculo, em que toda a atenção é voltada para imagem. O que precisamos entender é que tudo aquilo que se publica no Facebook é de autoria de um roteirista. É alguém construindo uma imagem. Se eu acredito naquilo, o problema não é a internet, mas a minha dor e o meu vazio. A rede alimenta um problema antigo, que é enxergar no outro o fracasso dos meus próprios projetos.
EXAME.com – A inveja pode ensinar alguma coisa?
Leandro Karnal – O sucesso alheio me incomoda porque não estou olhando para mim mesmo, meu foco está nos demais. A palavra “inveja” é formada por “in” e “vedere”, que significam “não ver” em latim. Quando não me vejo, não enxergo o meu próprio desempenho, olho excessivamente para o outro.
A psicanálise diz que, se você sentiu dor pela felicidade do outro, isso é uma pista maravilhosa, porque revela algo sobre você e sobre o que você quer. Refletir sobre a própria inveja ajuda a reconhecer os seus desejos, entender os seus fracassos, olhar de novo para si mesmo.