Os meios de comunicação são um aspecto central das sociedades contemporâneas. Esse é um fato pouco contestado. Na mesma medida em que nossa percepção do mundo em que estamos inseridos cresceu em escala, isto é, se ampliou para além do que é territorialmente próximo e cotidiano, as mediações ganharam maior relevância. Novos recursos tecnológicos incidiram sobre seus padrões. Da imprensa às transmissões de rádio, da televisão à internet, acumulam-se textos e imagens que compõem o ambiente social e político em que transitamos.
Como se dá a produção desses textos e imagens? Qual é a forma de organização dessa produção e como ela é financiada? Se a ampla maioria da comunicação é produzida no âmbito de empresas, como os interesses dessas empresas incidem no que é comunicado? E, ainda, qual é a relação entre o ambiente comunicacional e o ambiente político, entre o controle sobre a comunicação e o controle sobre o Estado? Essas são algumas das questões que atravessam as pesquisas sobre mídia e política.
Quando o termo democracia é inserido nas análises, um componente normativo se associa a essas questões. Trata-se não apenas de entender como funciona a comunicação em sociedades complexas, mas também de analisar quais modos de produção e circulação da informação são compatíveis com a democracia, em suas dimensões institucionais e cotidianas. Nesse ponto é que chegamos a uma contradição importante nas sociedades capitalistas: a concentração dos aparatos de comunicação nas mãos de alguns grupos está em conflito com a ideia de uma sociedade na qual a soberania popular é o fundamento das decisões políticas.
De maneira bem simplificada, os meios de comunicação empresarias são atores interessados na construção do ambiente político em que as pessoas se situam, fazem suas escolhas e avaliam os resultados dessas escolhas. Em sociedades complexas e conflitivas, isso implica que algumas visões e interesses estarão alojadas em processos comunicativos com grande potencial para alcançar massivamente a população em um país de dimensões continentais, enquanto outras visões e interesses poderão circular, porém de maneira mais localizada ou com menor ressonância.
Nossas preferências não são inatas. Mesmo naquilo que é rotineiro, elas se definem em contextos sociais, legais e institucionais determinados. Quando se trata da política institucional, há uma dimensão que é mais discutida talvez por ser mais evidente, que é a da adesão das empresas de comunicação a candidatos ou partidos políticos. É o ponto em que a atuação da mídia se encontra com as escolhas eleitorais e temos o problema da influência midiática na definição de pleitos específicos. Aqui, a visibilidade de candidatas e candidatos na mídia, mas principalmente a associação entre elas/eles e qualidades e defeitos dentro de narrativas mais amplas sobre competências políticas e problemas sociais é um ponto central. Um exemplo foi a eleição de Fernando Collor de Mello, em 1989, construído com o “caçador de marajás” em meio a narrativas que definiam como problemas centrais do país os salários do funcionalismo e desvios de agentes públicos.
Entre eleições, no entanto, outras dimensões ficam mais evidentes: todos os dias, o noticiário e mesmo a programação de entretenimento dão relevo a determinados problemas, e não a outros; concedem voz a determinados atores sociais (individuais e coletivos) e dão forma a certos interesses, mas não a outros. Constroem-se, assim, ambientes nos quais certos problemas são o eixo das narrativas sobre os desafios da política e mesmo sobre o que somos como sociedade. Os silêncios, isto é, as narrativas, experiências e atores que não ganham lugar no dia-a-dia do noticiário são um ponto crucial, já que estamos tratando de sociedades complexas, nas quais os conflitos de interesses estão ligados diretamente a hierarquias e desigualdades sociais.
Assim, problemas fiscais do Estado podem ser todos os dias apresentados nas vozes de “consultores” e “investidores”, enquanto alternativas para os problemas fiscais que considerem as desigualdades sociais, por exemplo, são ausentes nos noticiários. A corrupção pode ser agenda constante, mas pode ser associada a desvios de alguns atores sociais e não à forma regular da relação entre Estado e capitalismo, isto é, à influência sistemática do dinheiro na conformação do Estado, organizando as regras do jogo, a política econômica e o orçamento, além, é claro, de financiar candidatas/os e eleitas/os. Com isso, determinadas formas de abordar o Estado e a política ganham expressão massiva, enquanto outras têm menor potencial de difusão. Seguindo com os exemplos aqui utilizados, a defesa da austeridade fiscal e o combate aos desvios de políticos corruptos podem se tornar o discurso de referência em um dado contexto político.
Nesse ponto é que chegamos a uma contradição importante nas sociedades capitalistas: a concentração dos aparatos de comunicação nas mãos de alguns grupos está em conflito com a ideia de uma sociedade na qual a soberania popular é o fundamento das decisões políticas.
É claro que pesam também as experiências cotidianas das pessoas; pesa o grau de organização política de públicos subalternizados (trabalhadoras/es, mulheres, população LGBT, população negra). Pesa especialmente o grau de pluralidade do debate público. Nele, incidem não apenas as regras de concessão e a concentração relativa do mercado de mídia, mas também o ambiente complexo da internet e a imprensa alternativa, o sistema de financiamentos por meio de publicidade estatal, que pode ser voltado para algumas grandes empresas ou mais diluído, a comunicação organizada de outros setores da sociedade civil, como igrejas e sindicatos.
O ambiente político-midiático é, sem dúvida, multifacetado. Mas a história brasileira mostra que o fato de que tenha se tornado ainda mais complexo com o advento da internet não tornou menos importante a ação política das grandes empresas. O golpe de 1964 e o de 2016, a transição e campanha pelas diretas nos anos 1980 e a crise atual em que, esfacelado o bloco no poder, temos o embate aberto entre um grupo há pouco levado ao poder com o protagonismo da maior empresa brasileira de comunicação e essa mesma empresa, mostram diferentes padrões de atuação da mídia. Em todos os casos, a análise das relações entre mídia, democracia e preferências políticas permanece como um desafio de primeira ordem para se compreender o jogo político e seus desfechos, tanto quanto as formas assumidas pela adesão de diferentes setores da população a posições e interesses em conflito.
Flávia Biroli é doutora em História pela Unicamp e professora do Instituto de Ciência Política da UnB, onde também coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê). É autora de diversos livros.