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Independência: deixar de ser português e tornar-se brasileiro

Em agosto de 1822, as notícias que chegavam de Portugal não eram nada animadoras. Como reação, a 6 de agosto, D. Pedro tornou público um manifesto dirigido aos governos das nações amigas, cuja autoria é atribuída a Bonifácio. Mais de um mês antes do famoso grito de 7 de setembro, a independência brasileira era então declarada. Depois de afirmá-la, o manifesto apresentava os motivos que levaram ao rompimento com Portugal.

No final de 1807 ocorreu um fato sem precedentes nos impérios coloniais: o governo português, sediado em Lisboa, de onde administrava colônias na América, na África e na Ásia, transferiu-se para uma delas, a americana, e instalou-se no Rio de Janeiro. Diante da guerra que se desenrolava entre Inglaterra e França, Portugal foi obrigado a tomar uma posição. Pressionado pelas duas potências europeias, tinha que se aliar a uma ou a outra, o que significava ao mesmo tempo declarar guerra a uma delas. Houve conflito no interior do governo português sobre qual partido tomar. Aliar-se à Inglaterra resultaria na invasão do reino pelos franceses. A aliança com a França, por sua vez, colocava em risco o controle sobre a América, que ficaria sujeita à intervenção da poderosa marinha britânica. Qualquer escolha acarretaria uma perda. Portanto, a decisão era qual seria a perda menos onerosa.

Venceu o grupo que defendia a aliança com a Inglaterra, conferindo prioridade em manter as posses de além-mar e contando com o apoio britânico para defender o reino da provável invasão francesa. A colônia americana era vista por esse grupo como a parte com maior potencial econômico do império. Por essa razão, um dos seus líderes, D. Rodrigo de Souza Coutinho, já defendera em ocasiões anteriores a transferência da sede do governo metropolitano para o Rio de Janeiro e a adoção de reformas que alterassem a inserção da colônia, de modo a permitir que suas potencialidades pudessem se desenvolver.

A decisão pela aliança com a Inglaterra, diante da iminente invasão francesa, foi também a decisão de colocar em prática a proposta de transferir a Corte para o Rio de Janeiro. Apresentada, então, como estratégia defensiva, teve impacto que transcendeu os conflitos bélicos europeus. A sede do império português, a partir de 1808, era uma pequena cidade colonial, resultando em transformações profundas na América portuguesa e na sua relação com o império lusitano.

Para o Rio de Janeiro deslocaram-se nobres, funcionários dos primeiros escalões, as instâncias de governo, a rainha D. Maria I e seu filho, D. João, que ocupava o cargo de regente em função da doença mental que havia acometido sua mãe. Quais seriam as consequências de tamanha inversão, a capital do grande império e o aparato do governo estarem estabelecidos em território colonial?

Nova capital do império

Em primeiro lugar, não era mais possível manter um dos principais elementos que marcavam a relação da América com Portugal: o exclusivo metropolitano. Até então, apenas portugueses podiam fazer comércio com a colônia e apenas eles tinham permissão de desembarcar em seus portos. O monopólio comercial era um dos mecanismos centrais que propiciava lucro aos portugueses. Entretanto, não era cabível que a nova sede do império permanecesse fechada ao restante do mundo, até porque Portugal encontrava-se em guerra com a França. Assim, logo que desembarcou, ainda em Salvador, D. João extinguiu o exclusivo, no que ficou conhecido como abertura dos portos. Comerciantes de outras nações poderiam fazer negócios diretamente com a América portuguesa, que se abria também para a entrada de viajantes de outras nacionalidades.

Em relação ao comércio, foram os ingleses os mais beneficiados, por sua dianteira industrial e sua aliança política com os portugueses. Os manufaturados ingleses eram os principais produtos que adentravam os portos da América lusitana. A medida, por outro lado, atendia aos anseios dos grandes proprietários de terra da colônia, pois a liberdade para comercializar era condição do aumento de seus lucros.

A abertura dos portos, contudo, não tinha apenas um aspecto econômico. Ela abria a América para o mundo. A partir de então, recebeu viajantes de várias nacionalidades: ingleses, alemães, dinamarqueses, italianos, suecos e, depois de terminada a guerra, também franceses. Vieram, de um lado, cientistas ansiosos por conhecer as especificidades daquela terra que por séculos ficara reservada aos portugueses. Estudiosos da flora, da fauna, dos costumes viajaram pela América lusitana para descrever plantas e animais, para estudar os costumes indígenas. Entre eles, destacaram-se Auguste de Saint-Hilaire, Johann von Spix, Carl von Martius, Jean Debret e John Luccock. Fizeram detalhados relatos de suas viagens nesse período e pinturas que procuravam retratar os costumes locais, como a querer mostrar ao mundo a misteriosa Terra de Santa Cruz, que só agora lhes era dado conhecer. Contribuíram para ampliar o conhecimento que se tinha sobre a América. Tanto o conhecimento científico, ao estudarem a flora, a fauna, os minérios, como o conhecimento de regiões ainda não exploradas pelos portugueses. Ao fazê-lo, introduziram olhares diferentes. O olhar de quem vinha de outra realidade, de quem tinha outras referências culturais e nacionais. Assim, mesmo o que já era conhecido por portugueses e colonos foi visto de outras formas a partir dos registros deixados por esses viajantes.

A instalação da Corte no Rio de Janeiro teve também como resultado um governo que chamava para si a administração do território americano. Foram realizados investimentos em estradas que ligavam a nova capital às diferentes partes da América portuguesa, com a principal intenção de a elas levar a sua autoridade. Foram transferidas para a colônia instâncias importantes, responsáveis pelas decisões administrativas e políticas. Foi necessária a organização de instituições de governo; a criação da Imprensa Régia, para publicar a legislação e demais medidas governamentais; a abertura de cursos de nível superior, como o de Economia Política e os da Real Academia Militar; o treinamento de membros da elite local para ocupar os postos de governo etc. Para viabilizar essas medidas, ao longo do tempo a arrecadação de impostos foi em grande parte direcionada para o território americano. Era o princípio da integração, ao menos administrativa, das diversas partes da colônia sob a direção do Rio de Janeiro.

Um reino na América

Como sede da capital do império e com o fim do exclusivo metropolitano, a colônia não era, na prática, mais colônia. O reconhecimento dessa situação de fato veio em 1815, quando formalmente foi mudado o estatuto do Brasil, ao ser transformado em Reino Unido a Portugal e Algarves. Adquiria oficialmente a mesma condição política que Portugal. Quando isso ocorreu, já fazia cinco anos que a guerra contra a França tinha acabado.

Depois da expulsão dos franceses em 1810, com auxílio das tropas britânicas, teve início o custoso processo de reconstrução do país. A expectativa entre os portugueses era de que, encerrada a guerra, a Corte retornasse a Lisboa, de modo que o reino voltasse a sediar a capital do império. Mas isso não aconteceu. Passavam-se os anos e a Corte não dava sinais de que pretendia sair do Rio de Janeiro.

A permanência da Corte na antiga colônia pode ser explicada de diversas formas. Em primeiro lugar, o enraizamento dos interesses de membros da nobreza e da burocracia reinol nas terras de além-mar. Nobres e funcionários de alto escalão do governo, uma vez instalados no Rio de Janeiro, tornaram-se proprietários de terra, estabeleceram negócios com a elite local, tanto na agricultura de exportação como no grande comércio. Centenas de pessoas fixaram residência na nova capital. Outras tantas para lá se dirigiam, para tratar de eventuais negócios com o governo e recorrer a determinadas instâncias, como, por exemplo, as responsáveis por decisões judiciais. O significativo aumento da população do Rio de Janeiro gerou a demanda por gêneros de subsistência e, consequentemente, um intenso comércio de abastecimento, alimentado pela produção de São Paulo e Minas Gerais. Através do vale do Paraíba, rota das tropas de mula, principal forma de transporte de mercadorias, esses produtos eram escoados para o Rio de Janeiro. Muitos daqueles proprietários e comerciantes que se dedicaram a essa atividade foram agraciados pelo governo com terras no vale do Paraíba, dando origem aos grandes latifúndios que se dedicariam à produção de café. A estreita relação entre membros do governo e essas elites era altamente rentável para os primeiros. Associaram-se para explorar comércio e agricultura, mas não apenas por meio de contratos. Nobres e altos funcionários casaram-se com filhas da elite local.

Havia ainda motivações de natureza política. A transferência da Corte foi a materialização de um projeto que por algum tempo já era defendido pelo grupo liderado por D. Rodrigo de Souza Coutinho. A mudança de estatuto da outrora colônia, transformada em reino, e a capital na América eram consideradas medidas estratégicas para fortalecer o império como um todo. Desse ponto de vista, a América era o centro a partir do qual seria alavancado o desenvolvimento do império. A elevação à condição de Reino Unido, em 1815, seria a formalização da vitória desse projeto. Além disso, a independência dos Estados Unidos e movimentos como a Inconfidência Mineira colocaram em pauta o risco de perder a colônia. Risco que seria neutralizado pelas reformas que garantiriam maiores liberdades para os colonos e pela própria presença da Corte.

A frustração das expectativas iniciais de que, terminada a guerra com a França, a Corte retornaria a Lisboa, fazia crescer, paulatinamente, a tensão entre os portugueses dos dois lados do Atlântico. Surgiam também dificuldades na relação entre o Rio de Janeiro e colonos de outras regiões da América. As distâncias geográficas, de interesses políticos, de costumes geravam demandas que não eram atendidas pelo governo. O maior foco de insatisfação manifestou-se em Pernambuco. A elite pernambucana via a Corte no Rio como praticamente uma nova metrópole. Senhores de engenho, grandes comerciantes ligados à exportação de açúcar e ao tráfico de escravos, profissionais liberais e padres compunham essa elite, a qual exigia maior autonomia política e recursos financeiros para atender às demandas, como o investimento em obras públicas, que beneficiariam a economia da província. De fato, os investimentos se concentraram prioritariamente na região Centro-Sul (atual Sudeste), sem que as regiões do então genericamente chamado Norte (atual Norte e Nordeste) fossem agraciadas com melhorias relevantes. A independência, que teria como vantagem adicional a possibilidade de instaurar um regime liberal, era ainda o projeto mais atraente. Em 1817, membros da elite pernambucana iniciaram uma revolta com este objetivo: tornar Pernambuco independente sob um governo republicano. No entanto, foram militarmente derrotados pelas tropas governistas.

A revolta de 1817 em Pernambuco foi um prenúncio do fracasso do projeto do reformismo ilustrado no Brasil. Entre outras coisas, evidenciava sua incapacidade de promover a unidade da América sob o governo do Rio de Janeiro sem gerar ou aprofundar graves tensões. E uma das fontes do problema estava na associação do reformismo ilustrado com o absolutismo, que se traduzia em centralismo. A iniciativa política continuava concentrada nas mãos do monarca, enquanto a arrecadação tributária era centralizada, tornando as partes do império dependentes do governo central. Os pernambucanos se ressentiam, em especial, de novos impostos criados justamente para financiar a manutenção da Corte no Rio de Janeiro e promover as melhorias que a cidade, como capital, exigia. Talvez o mais importante, a revolta indicava que as ideias de um governo representativo começavam a penetrar no mundo português de maneira mais intensa, materializada na reivindicação pernambucana por uma república.

A revolução portuguesa

Enquanto movimentos de insatisfação eram resolvidos militarmente na América, continuava a crescer o descontentamento em Portugal. Em 1820 eclodiu uma revolta armada liderada pela burguesia mercantil. Ela teve início na cidade do Porto, onde se concentrava boa parte do comércio de larga escala do reino. A Revolução do Porto, como ficou conhecida, obteve grande adesão de diversos setores da população. Os rebeldes exigiam o retorno da Corte para Lisboa. E não era apenas isso, reivindicavam a mudança de regime, de uma monarquia absolutista para uma monarquia constitucional. Em Portugal, o desejo de um regime liberal, um governo representativo na forma de uma monarquia constitucional, também era alimentado por parte significativa da população.

Conforme afirmou, então, o marquês da Fronteira,

[…] as ideias de revolução eram gerais. Rapazes e velhos, frades e seculares, todos a desejavam. Uns, que conheciam as vantagens do governo representativo, queriam este governo; e todos queriam a Corte em Lisboa, porque odiavam a ideia de ser colônia de uma colônia.

Os rebeldes foram vitoriosos e assumiram o governo.

A demanda por monarquia constitucional estava em harmonia com os ventos liberais que sopravam por grande parte da Europa. A vitória da Revolução do Porto foi seguida pela convocação das Cortes de Lisboa, assembleia de representantes eleitos, para escrever uma constituição.

As Cortes reuniram-se em Lisboa em 26 de janeiro de 1821. Somente em março chegariam à América as instruções para se proceder às eleições de representantes de cada capitania luso-americana. Muito embora, entre os deputados de Portugal, houvesse os que desejassem retomar os privilégios coloniais em relação à América portuguesa, prevaleceu, por parte da maioria, o reconhecimento do novo estatuto de reino unido da ex-colônia, logo, de território integrado ao império em condições de igualdade com Portugal.

Na América lusitana, as notícias da revolução foram bem recebidas pelas elites locais. A monarquia constitucional condizia com suas aspirações, ao abrir espaço maior para sua participação. Reunidas as Cortes, duas medidas importantes foram aprovadas em relação à América: a exigência do retorno da Corte a Lisboa e a determinação de que as capitanias, transformadas em províncias, seriam governadas por juntas eleitas localmente. As capitanias da ex-colônia, a começar pela do Pará, manifestaram, uma a uma, sua adesão aos princípios da Revolução do Porto, declarando-se províncias do império e constituindo juntas governativas, na primeira experiência de governos próprios em território luso-americano. Foram também realizadas eleições para indicar os representantes de cada província nas Cortes lisboetas. Depois de um breve período de hesitação, D. João VI acabou se rendendo à vitória dos rebeldes e embarcou para Portugal, mas deixou no Rio de Janeiro seu filho, D. Pedro, príncipe herdeiro, para dirigir a América na condição de regente.

Deputados da América x deputados portugueses

Com a chegada dos deputados da América a Lisboa, teve início uma intensa disputa entre eles e os representantes do reino. Os representantes da América e os da metrópole concordavam com a instauração de uma monarquia constitucional. Concordavam também com a permanência da América no império português na condição de Reino Unido, ou seja, nem os luso-americanos falavam em independência, nem os metropolitanos fizeram tentativas de retomar antigos privilégios coloniais, como o fechamento dos portos. Por que então surgiram divergências entre eles? O problema fundamental estava no perfil que deveria ter a monarquia constitucional. Enquanto os deputados luso-americanos queriam preservar o grande grau de autonomia conquistado com a instalação da Corte no Rio de Janeiro, os portugueses do reino estavam decididos a organizar um regime centralizado em Lisboa. Se isso significava que todas as partes do império teriam representantes no Legislativo, e que este teria um poder decisório fundamental no jogo político, de outro lado, implicava que suas decisões seriam tomadas em Lisboa e, em seguida, aplicadas a todo o império. Era a segunda parte que os luso-brasileiros consideravam inaceitável, apesar do fato de que estariam representados na Assembleia Geral e de que as liberdades conquistadas em 1808, especialmente a de comércio, permaneceriam inalteradas.

Manter um governo no Rio de Janeiro, com capacidade decisória sobre temas relativos aos interesses específicos da América, era uma reivindicação inegociável para os luso-americanos. Manter um governo imperial central em Lisboa começava a parecer uma reivindicação inegociável para os portugueses.

De início, os deputados luso-brasileiros não tiveram uma atuação coordenada. Não se consideravam representantes de uma nação brasileira, que não existia, nem mesmo do conjunto da América portuguesa. Cada qual se via como representante de sua província. Unificaram-se, contudo, na oposição ao projeto centralizador dos deputados portugueses.

Em setembro de 1821, as Cortes promulgaram um decreto ordenando que D. Pedro retornasse a Portugal. Outro decreto determinava a extinção dos tribunais criados por D. João VI no Brasil a partir de 1808. Era um duro golpe contra as pretensões de se manter um governo autônomo no Rio de Janeiro. Os deputados portugueses mostravam disposição de tornar esse projeto inviável na prática.

A América reage

As ordens lisboetas chegaram ao Brasil em dezembro e foi imediata a reação das elites americanas: a articulação em torno da permanência de D. Pedro no Rio de Janeiro. Os líderes da Câmara Municipal fluminense começaram prontamente a recolher assinaturas em uma representação que pedia a D. Pedro para desobedecer às Cortes e ficar no Brasil. Mandaram ainda emissários para São Paulo e Minas Gerais, a fim de obter o apoio das elites dessas províncias. Em virtude da diversidade econômica, as elites, em São Paulo e Minas Gerais, contavam com fazendeiros dedicados à agricultura de exportação, notadamente de açúcar, e outros que se dedicavam à produção de gêneros de subsistência comercializados para outras províncias e, em especial, para o Rio de Janeiro. Faziam parte delas também comerciantes de mulas para transporte, que distribuíam as mulas vindas do Rio Grande do Sul a outras províncias, através da feira de Sorocaba. Profissionais liberais, como advogados, homens de letras, magistrados, além de padres também as integravam. Compartilhavam o ideário liberal e a defesa de um governo autônomo no Rio de Janeiro, de modo a garantir sua participação nas decisões políticas.

Antes mesmo da chegada do emissário do Rio de Janeiro, contudo, a reação em São Paulo já se articulava, sob a liderança de José Bonifácio de Andrada e Silva. A junta local enviou uma carta ao príncipe, ainda em dezembro de 1821, igualmente o incitando a desobedecer às Cortes e permanecer no Brasil.

As articulações de paulistas, fluminenses e mineiros denotavam o esforço de uma ação conjunta em torno da figura de D. Pedro. Este recebeu a carta dos paulistas no dia 1o de janeiro de 1822, e no dia 9, uma deputação do Senado da Câmara do Rio de Janeiro entregou-lhe sua representação com 8 mil assinaturas. Em resposta, o príncipe anunciou que não pretendia deixar o Brasil, no que ficou conhecido como o Dia do Fico. D. Pedro resolvera desafiar as ordens das Cortes lisboetas, provavelmente, porque ele e seu grupo consideravam que essa seria a melhor estratégia para forçar os deputados a aceitarem um governo com certa autonomia no Rio de Janeiro e evitar uma eventual independência. Também deve ter calculado que, no caso de uma separação, a aliança com a elite local lhe permitiria assumir a direção do novo país.

Em 17 de janeiro de 1822, a deputação paulista chegava ao Rio. No mesmo dia, Bonifácio, que dela fazia parte, encontrou-se com D. Pedro e foi por ele convidado para ser ministro do Reino e Estrangeiros. Era a primeira vez que um homem nascido na colônia assumia um cargo de primeiro escalão.

As disputas se intensificam

Estavam lançadas as sementes que resultariam na independência e na forma pela qual ela se realizaria. As elites locais, diante da dificuldade em manter um governo com expressivo grau de autonomia, começavam a expressar a vontade de se separar do reino europeu através de uma aliança com o príncipe herdeiro da Coroa lusitana.

Depois de desobedecer às ordens de retornar a Lisboa, D. Pedro provavelmente se preparava para um inevitável confronto com as Cortes. Sua decisão de convidar Bonifácio para o ministério indica a disposição do príncipe de se aliar à elite local na defesa de um governo autônomo dirigido por ele na América. Bonifácio parecia o nome mais adequado para integrar esse governo. Pertencia à elite nativa e conhecia de perto os meandros da Corte, em função de longa permanência em Portugal. Para lá fora com o propósito de estudar na Universidade de Coimbra, como era comum entre os filhos da elite luso-americana. Mas depois de formado, permaneceu no reino, onde construiu uma sólida carreira científica, especialista que era em mineralogia, ocupando vários cargos na burocracia portuguesa. Só retornou ao Brasil com 59 anos, nas vésperas da Revolução do Porto.

Ao recorrerem ao príncipe, as elites brasileiras esperavam garantir seus interesses e, ao mesmo tempo, minimizar o risco de um abalo maior da ordem interna. Pois se acaso se tornasse inevitável, a separação de Portugal seria então comandada pelo governo instalado no Rio de Janeiro sob as ordens de D. Pedro, buscando-se evitar uma guerra, além da consequente mobilização da sociedade. Era a mudança com ordem que se adequava bem às expectativas da elite luso-americana.

Diante do impasse com os deputados portugueses, começou a ser implementada no Brasil, à sua revelia, a proposta de um governo local autônomo. Bonifácio tomou para si a tarefa de organizar um órgão legislativo para elaborar as leis de interesse específico do Brasil: significava a firme disposição de não perder a capacidade de tomar deliberações nos assuntos locais. Em 17 de fevereiro de 1822, foi convocada a Junta de Procuradores das Províncias.

A convocação expôs, porém, o fato de que, se as elites locais estavam unidas no enfrentamento do projeto defendido por Lisboa, isso não impedia as divergências internas nem as disputas pelo poder. Havia, de um lado, o risco de que as distâncias e as diferenças entre as províncias resultassem na fragmentação da América portuguesa em vários países, uma vez proclamada a independência. De outro, não havia consenso sobre como deveria se organizar o governo na América. Os fluminenses, liderados pelo oficial maior da contadoria do arsenal do exército, Gonçalves Ledo, pelo juiz de fora José Clemente Pereira e pelo padre Januário da Cunha Barbosa, membros da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, defendiam que, a fim de tratar dos assuntos específicos da América portuguesa, deveria ser convocada a “constituinte brasílica”. A convocação da junta de procuradores foi considerada uma alternativa conservadora, o que gerou críticas a Bonifácio. Este temia que a convocação de uma constituinte causasse uma grande mobilização e que, com isso, o governo perdesse o controle dos acontecimentos.

A divergência entre ele e o grupo de Gonçalves Ledo se revelaria uma disputa entre projetos políticos. Enquanto Bonifácio advogava um governo com um Executivo forte, Ledo queria que o Parlamento, no interior do qual os diversos setores da elite estariam representados, concentrasse a maior parcela de poder. A vinda da Corte, o envolvimento na Revolução do Porto e, posteriormente, na independência e no processo de construção do Estado nacional corresponderam ao processo em que se forjou a elite política brasileira. A maioria dos seus membros era proveniente da elite econômica – grandes fazendeiros, comerciantes e traficantes de escravos. Mas havia também padres, militares, profissionais liberais, como jornalistas e advogados, magistrados e homens de letras. Compartilhavam a defesa de um regime liberal e eram, em sua maioria, defensores da ordem escravista, mas havia também divergências. Entre elas, a forma como deveria se organizar o governo na América e, depois da independência, a monarquia. As diferenças econômicas, geográficas, de costumes entre as províncias também geravam demandas que não eram coincidentes entre si. O Parlamento deveria ser, na concepção dos defensores de uma constituinte, a instância na qual diferentes interesses e projetos políticos seriam negociados.

Explicitavam-se, nesse momento, as diferenças entre os diversos membros da elite luso-brasileira que se articulava em torno de D. Pedro para resistir aos portugueses do outro lado do Atlântico. D. Pedro acabou cedendo ao grupo de Gonçalves Ledo, que fazia intensa campanha pela imprensa e havia recolhido no Rio de Janeiro 6 mil assinaturas a favor da convocação da Constituinte. Em abril já se tratava no Brasil de organizar cortes constituintes próprias. Resultado da capacidade de mobilização e pressão daqueles que a defendiam, mas também porque a radicalização dos acontecimentos fizera com que a proposta da constituinte brasílica fosse afinal encampada por D. Pedro.

Apenas em agosto chegou a Lisboa a notícia da convocação da assembleia brasileira. A essa altura, qualquer saída conciliatória parecia inviável. No dia 26, diante da notícia, os deputados paulistas solicitaram formalmente seu afastamento das Cortes lisboetas, por não se considerarem mais representantes de sua província, agora em clara dissidência com Portugal. Compreendiam que o diálogo não era mais possível e a separação mais que provável, não vendo, portanto, sentido em continuar participando das Cortes. A comissão encarregada de examinar o pedido de afastamento, porém, recusou-o.

No final de setembro, sem ainda saberem dos últimos acontecimentos no Brasil, onde a independência havia sido proclamada no dia 7, a nova Constituição elaborada pelas Cortes foi jurada, mas alguns deputados brasileiros, entre eles Antônio Carlos, Diogo Antônio Feijó e Nicolau Pereira de Campos Vergueiro, recusaram-se a fazer o juramento e assinar a Constituição, fugindo então para o Brasil.

A recusa em jurar a Constituição e a fuga de Portugal foram explicadas por Vergueiro em uma carta na qual afirmava explicitamente que o problema estava no desenho institucional da nova monarquia:

Examinei nos próprios indivíduos a vontade geral ainda antes de saber que me havia de ser tão necessário conhecê-la e, observando que no meio do entusiasmo com que o Brasil aderiu ao sistema proclamado no sempre memorável dia 24 de agosto não se meditavam os laços que deviam unir entre si e ao reino irmão povos tão dispersos, notei que as tumultuosas ideias que se produziam rolavam sempre sobre estes princípios fixos: integridade do Brasil e representação de Reino tanto em nome como em fato. Donde era óbvio concluir que o Brasil só ficaria unido a Portugal por federação.

Ruptura

No Brasil, os acontecimentos se precipitavam. O governo trabalhava para garantir a adesão das diversas províncias a D. Pedro. O confronto com as Cortes fora resultado da aliança de D. Pedro com as elites do Centro-Sul (São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro), materializada na decisão do príncipe de permanecer no Brasil. O desafio do governo, porém, não era apenas de se afirmar diante da intransigência dos portugueses, mas também de se impor às demais regiões da América lusitana.

A essa altura se instalara uma disputa entre o governo do Rio de Janeiro e o de Lisboa pela lealdade das diversas províncias da América. Para conquistar a adesão das demais partes do território luso-americano, foram enviados emissários de D. Pedro para intervir na política local.

No Maranhão e no Pará, dadas as relações comerciais com Portugal e a maior facilidade de comunicação com o reino europeu do que com o Rio, a elite tendia a manter-se unida ao primeiro, rechaçando a liderança de D. Pedro. No Pará, os membros dessa elite eram, em geral, grandes proprietários e comerciantes ligados à exportação de produtos extraídos da selva amazônica. No Maranhão eram latifundiários que produziam arroz e algodão, também para exportação, e outros que se dedicavam à pecuária. Magistrados e membros do clero integravam, ainda, a elite das duas províncias. Na Bahia, as tropas portuguesas lideradas pelo general Madeira de Melo, fiel a Lisboa, controlavam a situação. Em favor da independência, mobilizaram-se senhores de engenho, profissionais liberais e homens livres pobres em uma guerra que só terminaria no ano seguinte. Tanto no caso do Maranhão como no da Bahia, a solução foi mandar tropas comandadas por mercenários contratados pelo governo para forçar a adesão ao Rio de Janeiro. Para o Maranhão foi enviado o inglês Thomas Cochrane, que servia na Marinha chilena e foi contratado em setembro de 1822, na qualidade de almirante. Para a Bahia foi mandado, em agosto do mesmo ano, o general francês Pedro Labatut, que havia participado da guerra de independência na América espanhola e lutado ao lado de Simón Bolívar. Também o Pará foi forçado a aderir ao império brasileiro pela força das tropas para lá enviadas.

Na Bahia, a guerra foi prolongada e só em julho de 1823 as tropas de Labatut foram capazes de vencer Madeira de Melo, expulsando os portugueses e declarando sua independência e integração ao império brasileiro. No Piauí havia problemas, porque também lá tropas portuguesas controlavam a situação. Assim, mesmo depois de proclamada a independência, foi preciso uma guerra para expulsar os portugueses. Só em março de 1823, depois de prolongado conflito, os portugueses foram finalmente expulsos do Piauí e a província uniu-se ao Brasil.

A convocação da Constituinte, nesse contexto, era um instrumento poderoso, pois oferecia às elites provinciais a possibilidade de participação nas tomadas de decisão do governo do Rio de Janeiro. Elas ansiavam por um regime que lhes assegurasse a liberdade de governar sua região. A convocação da Assembleia lhes garantia, de um lado, espaço institucional para participar das decisões políticas gerais, através de seus representantes, e de outro, a possibilidade de elaborarem uma constituição que consagrasse a autonomia provincial. Lisboa, ao contrário, acenava com um governo centralizado na distante Europa. Assim, os esforços vindos do ministério de D. Pedro surtiram resultado, de modo que a maior parte das províncias acabou manifestando sua adesão ao Rio de Janeiro.

Independência

Em agosto de 1822, as notícias que chegavam de Portugal não eram nada animadoras. Como reação, a 6 de agosto, D. Pedro tornou público um manifesto dirigido aos governos das nações amigas, cuja autoria é atribuída a Bonifácio. Mais de um mês antes do famoso grito de 7 de setembro, a independência brasileira era então declarada. Depois de afirmá-la, o manifesto apresentava os motivos que levaram ao rompimento com Portugal.

A importância desse documento está no fato de que, para justificar a emancipação política, uma versão da história é nele apresentada, e essa seria durante muito tempo a versão oficial da história brasileira.

Nela, o Brasil era um território ocupado, a partir da colonização, por forças portuguesas que nada mais desejavam do que explorar suas riquezas. Os povoadores das novas terras, apesar da mesma origem lusitana, eram então apresentados como brasileiros oprimidos, subjugados pela “tirania portuguesa”, que, sem gozarem de liberdade, sofriam a “miséria e a escravidão”. O pacto colonial era apontado como um dos instrumentos de opressão e exploração, ao impor o monopólio do comércio colonial pela metrópole:

Privado o Brasil do mercado geral das nações e, por conseguinte, da sua concorrência, que encarecia as compras e abarataria as vendas, nenhum outro recurso lhe restava se não mandá-las [suas mercadorias] aos portos da metrópole e estimular assim, cada vez mais, a sórdida cobiça e prepotência de seus tiranos.

Impostos excessivos, leis injustas e opressoras, administradores ignorantes e cruéis eram outros componentes de uma colonização culpada pela desgraça do Brasil e dos brasileiros.

Curiosa inversão, essa forma de contar a história da América lusitana era assinada pelo príncipe herdeiro da Coroa portuguesa e redigida por um homem que vivera a maior parte da vida em Portugal, integrando a burocracia lusitana e dedicando todos seus esforços para salvar o império português da decadência. Essa visão contrastava fortemente com aquela adotada por ambos até então, quando ainda vislumbravam a possibilidade de um império luso-brasileiro. Defensores veementes da união entre Brasil e Portugal, José Bonifácio, D. Pedro e a elite luso-americana só optaram pela independência em função da intransigente decisão das Cortes lusitanas de organizar a monarquia constitucional com um governo centralizado em Lisboa. Portanto, ao menos até 1821, não era a visão expressa no manifesto que o príncipe e seu ministro tinham da colonização, muito ao contrário. Bonifácio, em especial, demonstrou em seus escritos dos tempos de Lisboa que pensava a América como parte integrante do império português, e que do governo lusitano esperava as medidas que levariam ao seu desenvolvimento.

O documento ainda apresentava as terras luso-americanas como uma unidade, o Brasil, em oposição ao reino opressor, Portugal. No entanto, tal unidade não existia, sendo apenas, naquele momento, um projeto do grupo articulado em torno do governo de D. Pedro. Carecia ainda de se materializar, enfrentando a resistência das elites provinciais, ciosas de sua autonomia e carentes de vínculos que conformassem uma nação.

O manifesto de 6 de agosto de 1822, além de primeiro registro formal da decretação da independência do Brasil, é exemplo de como a história pode ser contada para servir a um projeto político. Nesse caso, buscar legitimidade tanto para a emancipação brasileira, apresentando-a como o resultado da luta de um povo oprimido, quanto para o projeto de unidade da América lusitana sob o governo do Rio de Janeiro, apresentando essa unidade – e esse projeto – como um fato histórico consolidado.

Em 14 de agosto, D. Pedro viajou para São Paulo, onde um grupo adversário de Bonifácio havia iniciado uma revolta. Enquanto estava ausente do Rio de Janeiro, chegaram à capital notícias de que os deputados em Lisboa haviam decidido pela radicalização, no sentido de submeter D. Pedro e seus aliados na América. O príncipe havia sido reduzido a um simples delegado temporário das Cortes, que se tornaram responsáveis por nomear seus secretários.

Na viagem de volta ao Rio de Janeiro, D. Pedro, quando ainda se encontrava às margens do rio Ipiranga, em São Paulo, foi alcançado no dia 7 de setembro por um emissário que trazia cartas da capital, uma de Bonifácio e duas de sua mulher, D. Leopoldina, informando sobre os últimos acontecimentos. As Cortes haviam anulado todas as medidas tomadas pelo ministério de José Bonifácio e ordenado que D. Pedro substituísse seus ministros por outros nomeados por Portugal. Ordenavam, também, que fossem investigados todos os atos dos ministros considerados subversivos. Em sua carta, Bonifácio afirmava: “O dado está lançado e de Portugal não temos a esperar senão escravidão e horrores. Venha V. A. quanto antes e decida-se, porque irresoluções e medidas de água morna, à vista deste contrário que não nos poupa, para nada servem”.

Um acordo com Lisboa que preservasse os poderes do governo de D. Pedro na América não seria agora aceito em Portugal, e a saída era, portanto, a independência. D. Pedro a proclamou, tendo como aliadas partes significativas das elites brasileiras. Em outubro, foi coroado imperador do Brasil. A partir de então, o desafio era construir uma nova nação e um novo Estado. A América lusitana deveria se transformar no Brasil e seus habitantes deixariam de ser portugueses para se tornarem brasileiros.


MIRIAM DOLHNIKOFF é professora do departamento de História da FFLCH-USP e pesquisadora do Cebrap. É mestre e doutora em História Econômica pela USP. Ensina e pesquisa o Brasil Império. Atualmente estuda o governo representativo, sob a forma de monarquia constitucional, no Brasil, com foco no debate político em torno das eleições.