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A História de Rolando Boldrin – Sr. Brasil

Danado esse Téspis. Que caboclo doido! Dizem que um dia ele usou uma máscara e subiu um barranco para ​olhar a multidão e dizer: “Eu sou Dionísio”. Minha nossa, ninguém ousava fazer um negócio desses lá nos ​idos da Grécia antiga, por volta de nove séculos antes de Jesus Cristo. Dionísio era um deus, deus do vinho, ​celebrado a cada colheita de uva. Que festança. Todo mundo ficava mamado. Deve ser por isso que Dionísio ou Baco também era chamado de deus da fertilidade. ​Ao dizer que era Dionísio, Téspis da Icária provocou gargalhadas, mas também causou espanto. Muitos ficaram imaginando o que um ser ​tão poderoso estava fazendo por aquelas bandas. Será que veio conferir de perto os vinhedos que cresciam em sua homenagem? 

Endoidado, encorajado pela fermentação alcoólica, continuava fazendo suas traquinagens e, ao mesmo ​tempo, morria de rir do susto pregado naquela gente humilde, que acreditava em tudo. É claro, nunca tinham ​visto um deus em carne e osso. Deve ter sido como a chegada de um tsunami, observado por banhistas na praia. ​Mal sabia Téspis que, ao vociferar, entraria para a história como o primeiro ator de teatro do mundo ​ocidental. Faria com que os gregos assumissem o teatro como ação cultural, algo tão fundamental quanto ​respirar e um mecanismo de socialização jamais imaginado. Os aglomerados, com objetivos definidos, só existiam até então nas guerras, em homenagem a outros deuses mais violentos, como Hades e Atena.

​As portas dos teatros foram se abrindo em todos os cantos, criando uma gama enorme de profissionais ​ligados a essa área, uma caboclada imensa pronta para entreter, fazer rir e chorar, falar de ódio e paz, ​de amor e traição, de sucesso e tragédia. Por essas bandas, o primeiro a encenar uma peça teatral​ talvez tenha sido o padre José de Anchieta. Isso mesmo, aquele que chegou com a turma do padre Manoel ​da Nóbrega logo após as viagens do descobrimento ou “achamento” do Brasil, como dizem. José de Anchieta fazia encenações, usando gente rústica, do povão, e até os próprios índios, para ​explicar a catequese e, assim, ganhar a confiança dos nativos que estavam aqui sossegados, vivendo ​da floresta, pelados para espantar o calor tropical, observando outros deuses, como Tupã, e que agora ​conheciam a existência de um Deus dos brancos, que eles deveriam seguir.

O teatro tinha a palavra e no princípio era o verbo. O teatro fez parceria com a literatura, outra forma de ​ensinamento, cultura e entretenimento, bem mais antiga. E põe antiga nisso. Os chamados homens das cavernas, há ​milhares de anos, desenhavam nas paredes e faziam símbolos para tentar explicar o que viam durante o dia, quando ​saíam para caçar. Tem muito bicho que aparece na arte rupestre. Com o tempo, a coisa foi se aperfeiçoando. Começaram a escrever em madeira, bambu, ossos e até em placas de barro. E foi melhorando ​com outros tipos de materiais, como tecido, papiro, couro e papel, que permitiram as dobras e os rolos. Os primeiros livros surgiram na Mesopotâmia, região entre dois rios enormes, o Tigre e o Eufrates, onde hoje fica o Iraque. Os sumérios costumavam colocar suas escritas em pequenas lajotas de barro. Os egípcios, ainda mais espertos, passaram a usar folhas de papiro, uma planta, e a emenda dessas folhas formava rolos de até 20 metros de comprimento. Esse povo criou a maior biblioteca da Antiguidade, a Biblioteca de Alexandria, que chegou a ter 700 mil livros. Até então tudo era escrito à mão. Imagine o trabalhão que dava.

O primeiro livro impresso só apareceu no Ocidente no século XV, na Idade Média, quando um alemão de nome Johannes Gutenberg criou a prensa. Seu primeiro trabalho foi imprimir a Bíblia sagrada. Os tipos (letras) eram de metais e foram posicionados um a um para imprimir 642 páginas. Demorou cinco anos. Foram distribuídos cerca de setecentos exemplares. O projeto causou uma verdadeira revolução cultural. Lado a lado, literatura e teatro fizeram o mundo sonhar. Dramaturgos passaram a ter suas obras impressas: de William Shakespeare, Oscar Wilde, Samuel Beckett, a Dario Fo, Agatha Christie, Nelson Rodrigues, Oduvaldo Vianna Filho, Jô Soares, Chico Buarque, destacados de uma lista interminável de gente que tem o domínio da escrita. Eternizar as obras despertou o interesse pela gravação. A memória não era o suficiente, até porque a memória “faia”, como dizem os caboclos mais experientes. Luz e sombras deram inspiração aos amantes da tecnologia que impulsionaram a revolução industrial no século XVIII. Transportar a mecanização para a arte levou muito tempo, mas enfim chegou.

Um cidadão francês, bem apessoado, um tanto obeso, cabelos encaracolados cobrindo as orelhas, bigode grosso, inventou a fotografia, que no começo recebeu o nome de daguerreotipia, em homenagem ao próprio, Louis Jacques Daguerre. Era o pontapé necessário para o surgimento do cinema, após vários experimentos de luz, sombras e imagens que de forma acelerada davam a ideia de movimento. Em 1895, outros dois matutos da França, os irmãos Louis e Auguste Lumiére, conseguiram gravar e transmitir essas imagens usando a mesma máquina. Era a estreia do cinema com um filme de 45 segundos mostrando operários saindo da fábrica ao final do expediente.

Nesse mesmo período, somava-se outra descoberta. O rádio chegava com força para se tornar o eletrodoméstico mais popular no mundo inteiro. Jornalismo, novelas e, claro, música. ​Pois bem, o único ponto negativo nessa trajetória, e o mais importante, é que tiraram de um brasileiro o pioneirismo na transmissão radiofônica, isso quase meio século depois de ingleses e alemães terem dominado o controle das ondas eletromagnéticas, as ondas de rádio. O padre e engenheiro gaúcho Roberto Landell Moura conseguiu falar em 1893 e ser ouvido à distância numa transmissão sem fio. Mas a façanha não foi suficiente. O mundo científico só reconheceu como início da era do rádio o trabalho feito pelo italiano Guglielmo Marconi, que foi ouvido a trinta metros de distância num experimento na casa da família em Bologna. Marconi patenteou a invenção e recebeu o prêmio Nobel de Física em 1909. Dizem que sem o rádio para dar o alerta a outras embarcações, não teria sobrado ninguém no naufrágio do Titanic em 1912.

O rádio se tornou um instrumento poderoso na divulgação da cultura. Reunia as famílias na sala para momentos de deleite e diversão. Na década de 1930, São Paulo e Rio de Janeiro já contavam com emissoras mantidas até hoje, como Record e Bandeirantes. Vencida a etapa do direcionamento do som em ondas AM e FM, a corrida era para saber quem faria a primeira transmissão simultânea de imagem. Válvulas sobre válvulas eram conectadas em um caixote, que seria batizado de aparelho de televisão ou televisor. Japão, Inglaterra e Estados Unidos tomaram à dianteira nos projetos na década de 1920. Era preciso unir som e imagem e transformá-los em pixels, que são pontinhos capazes de criar as figuras quando agrupados.

Os sinais, eletromagnéticos no início, passavam por fios, e na outra ponta, na casa do consumidor, voltavam a ser pixels. Coisa complicada, mas foi feita. A primeira imagem em televisão que se tem notícia é a do Gato Felix, personagem, até então, de histórias em quadrinhos. Aqui no Brasil, a tarefa de divulgar a televisão coube ao empresário Assis Chateaubriand. Ele comprou os equipamentos de transmissão nos Estados Unidos, além de duzentos televisores, que foram espalhados em pontos estratégicos da cidade de São Paulo. No dia 18 de setembro de 1950, Chatô colocou no ar a TV Tupi e deixou a população boquiaberta com a caixa falante e suas imagens.

​Ao lado de Chateaubriand nesse dia glorioso estava uma jovem cantora, Hebe Camargo, que mais tarde seria celebrada como a rainha da televisão. Brasileiro adora títulos de nobreza. Seis anos após a inauguração, o Brasil contava com um milhão e meio de televisores. Gente de extremo talento – como Amácio Mazzaropi e José Mojica Marins, o Zé do Caixão – fez sucesso no cinema, no rádio e na televisão, mostrando que uma mídia não substituía a outra, como se chegou a sugerir no início.

Passadas mais algumas décadas, veio a internet e suas poderosas transmissões por canais exclusivos, abertos e redes sociais. Os artistas, produtores, diretores, fotógrafos, cineastas, e assim por diante, tiveram que se render a esse meio de comunicação abrangente e democrático. Quem não se adapta à web não está, necessariamente, fadado ao fracasso, mas vai encontrar mais dificuldade para conversar com um público conectado a esses aparelhos que informam sobre tudo e todos tão rápido quando a própria notícia e as próprias ideias.

​Essa introdução se faz necessária para dizer que o personagem deste livro tem o privilégio de transitar por boa parte das artes consagradas no tempo. Caboclo bom de São Joaquim da Barra, interiorzão de São Paulo, Rolando Boldrin se considera um ator que canta, modéstia típica dos artistas. No auge de seus 80 anos de sabedoria, Boldrin mostrou que é possível se projetar indo contra a corrente das tendências midiáticas. Podia ter se conformado em ser ator de filmes premiados, ou de novelas acompanhadas no Brasil inteiro e até no exterior. Nada disso. Preferiu seguir os instintos e os sonhos. De coração aberto, queria que os talentos musicais escondidos nesse imenso território tivessem as mesmas oportunidades oferecidas aos artistas nas cidades grandes, que, até bem pouco tempo, se resumiam a São Paulo e Rio de Janeiro. Hoje é difícil até de contar quantos nomes ganharam projeção nacional a partir dos programas comandados por Rolando Boldrin nas diversas emissoras de TV pelas quais passou, culminando com o premiado Sr. Brasil na TV Cultura, emissora da Fundação Padre Anchieta. E qual é o estilo do programa? Simples: tem que ter música brasileira de raiz e de boa qualidade. Isso se faz muito por aí. Danado esse Boldrin!