No século XIX, quando a História nasceu como disciplina dotada de método e objetividade, os historiadores de então acreditavam que o estudo da história era incompatível com o estudo das sociedades contemporâneas. Assim, recomendavam que o historiador só se debruçasse sobre um fato ou processo social que tivesse ocorrido, ao menos, 50 anos antes.
No final daquele século, convencionou-se chamar de “História Contemporânea” o estudo de tudo que ocorresse depois de 1789, ou seja, depois da Revolução Francesa. A partir de então, seguindo as convenções do mundo acadêmico europeu, o estudo da história passou a ser dividido em quatro grandes especializações, segundo a cronologia: Antiga, Medieval, Moderna e Contemporânea. Ainda assim, os historiadores não gostavam de se arriscar pelos tempos vividos, só pelos tempos dos que já tinham morrido havia muitas décadas.
Essas concepções tradicionais de História foram criticadas e superadas ao longo do século XX. Vários dogmas, mitos e tabus relacionados ao trabalho historiográfico caíram por terra, como o mito da “neutralidade” da História, da “verdade absoluta” sobre um fato ocorrido que só admite uma narrativa a seu respeito, da premência do documento escrito sobre outros tipos de documentos. A divisão das especialidades historiográficas conforme grandes cronologias também foi questionada, entre outros motivos, porque os critérios de divisão “quadripartite” da História retratavam processos puramente eurocêntricos. Por exemplo, qual o sentido de enquadrar o estudo do passado de sociedades africanas ou asiáticas do século XII ou XIII nas especialidades de “História Medieval” ou “História Antiga”, inicialmente delimitadas com foco no feudalismo europeu ou no eixo Grécia-Roma? Obviamente, os processos históricos globais podem até se conectar – longe de mim defender uma História autocentrada –, mas é preciso tomar cuidado para não enquadrá-los todos em cronologias e conceitos inadequados, que não se aplicam à sociedade que se quer conhecer.
Apesar de todas essas discussões, as grandes divisões da História ainda permanecem no currículo do ensino básico e superior, nos livros didáticos, na classificação das áreas de conhecimento das agências que financiam a pesquisa. Dentro dessa realidade, portanto, o que significa pensarmos hoje a “História Contemporânea”?
A expressão “História Contemporânea” traz em si uma ambiguidade: como um tema pode ser “histórico” e “contemporâneo” ao mesmo tempo? Como o historiador pode ter distanciamento suficiente para conhecer processos temporais que sinalizam para onde vamos, como sociedades nacionais conectadas internacionalmente? É possível ao historiador compreender como estamos utilizando nosso passado comum, como legado e memória? Até onde pode ir o conhecimento do “contemporâneo” em uma área de pesquisa que necessita de fontes primárias organizadas em arquivos acessíveis ao público, algo que precisa de algum tempo para ocorrer? Qual a diferença entre a análise do historiador e a dos sociólogos e cientistas políticos dedicados a analisar conjunturas recentes? Quando se é um historiador especializado em História Contemporânea, todas essas questões devem ser levadas em conta.
A partir dos anos 1970, a própria cronologia de “História Contemporânea” foi fracionada, passando a incluir a “História do Tempo Presente” e a “História Imediata”. O primeiro termo indica o estudo de processos nos quais os personagens ainda estão vivos, e as memórias dos acontecimentos ainda em disputa acirrada, interferindo no debate social e político. A “História Imediata”, por sua vez, remete ao processo de construção do fato histórico em meio à crônica e a fatos jornalísticos ainda mais recentes.
Neste livro, o leitor encontrará essas três dimensões da História Contemporânea.
Iniciamos com os processos e eventos ocorridos a partir dos anos 1920; alguns com interpretações historiográficas consagradas, arquivos estabelecidos, debates consolidados, outros com questões ainda em aberto. Após a Segunda Guerra Mundial, a humanidade presenciou a destruição moral e material de um mundo e o nascimento de outro, pleno de promessas de paz e felicidade geral para os povos.
Seguimos com a “História do Tempo Presente”, que ocupa boa parte do livro, focando os processos vividos a partir dos anos 1960 e 1970, estudados pelos historiadores só mais recentemente.
Finalmente, nas “Considerações finais”, o leitor poderá tomar contato com um ensaio pessoal do autor sobre a “História Imediata”, analisando os processos ainda abertos deste início de século XXI, pensados até agora, sobretudo, por outras áreas do conhecimento, como a Sociologia, a Geografia, a Antropologia e a Economia. A cronologia deste livro, portanto, vai dos anos 1920 ao fim da segunda década do século XXI.
O objetivo principal é apresentar ao leitor não apenas a “era dos extremos”, como o historiador Eric Hobsbawm chamou o século XX, mas também a “era das incertezas”, como este início do século XXI está sendo chamado. Os “extremos” do século XX são conhecidos pela historiografia: crise econômica dos anos 1930, guerras mundiais, genocídios, miséria, terror nuclear, por um lado. Avanço tecnológico sem precedentes, conquistas democráticas em várias localidades do mundo, maior igualdade de gênero e racial, melhoria do padrão de vida geral, por outro. As “incertezas” da era atual não são apenas resultado das dificuldades de conhecer historicamente o tempo em que estamos vivendo. Mas, sobretudo, das quebras de consensos, valores e paradigmas de organização das políticas nacionais e internacionais que foram construídas após a Segunda Guerra Mundial, mesmo no interior dos países mais ricos e influentes do mundo. O recrudescimento de nacionalismos, xenofobias, racismos, fundamentalismos religiosos é um exemplo dessas rupturas.
Uma das marcas centrais da História Contemporânea é analisar processos nacionais sempre conectados a processos globais, de maneira progressivamente mais rápida, intensa e complexa. Nesse sentido, aqui ela se ocupa também em refletir sobre o Brasil em todos esses processos históricos, considerando essa reflexão algo fundamental para conhecer e superar nossos impasses atuais. Somos um país que busca ansiosamente um futuro de prosperidade, quase sempre calcado em modelos de sociedade importados, mas ao mesmo tempo preso a arcaísmos e conservadorismos locais, herdados de um passado nem sempre glorioso, marcado, por exemplo, pela escravidão e por autoritarismos de diversos matizes. Tanto em uma, como em outra direção, estamos conectados aos processos da História Contemporânea global. Tivemos nosso liberalismo peculiar, nosso republicanismo tardio, nossos fascismos, sofremos os efeitos das crises econômicas internacionais, nos envolvemos nas guerras mundiais, sonhamos com “a revolução” e “a afirmação da identidade nacional”, amargamos ditaduras, lutamos por democracia, flertamos com a globalização. Neste início do século XXI, estamos igualmente mergulhados em incertezas políticas e conflitos ideológicos que marcam a conjuntura mundial. Assim, conhecer a História Contemporânea é também conhecer a História do Brasil, seus projetos, conquistas e fracassos em meio aos conflitos sociais e políticos que caracterizam outras sociedades do mundo.
Marcos Napolitano é doutor em História Social e professor titular de História do Brasil no Departamento de História da USP. Pela Contexto, é autor dos livros Como usar o cinema na sala de aula, Como usar a televisão na sala de aula, Cultura brasileira: utopia e massificação, 1964: História do Regime Militar brasileiro e História do Brasil República, além de ser coautor de História na sala de aula, Fontes históricas e Novos temas nas aulas de História.