Gramática, fala e escrita
As palavras da nossa língua podem ter mais de um significado, isto é, podem querer dizer mais de uma coisa. Vamos considerar, por exemplo, a palavra manga, que pode significar a fruta ou parte de uma camisa. A palavra gramática também é assim.
Gramática pode, então, significar o livro cheio de regras sobre o português, mas pode também ter outros significados. Vamos usar a expressão Gramática Mental para um desses significados.
Para explicar o que é Gramática Mental, vamos prestar atenção no que acontece com uma criança que aprende uma língua materna, que, no nosso caso, é o português tal qual ele é falado nas várias regiões do Brasil. Até no máximo 4 anos de idade, qualquer criança, seja ela pobre ou rica, tenha a mãe que trabalhe fora ou fique em casa e, importante, não tenha nenhum problema cerebral, aprende a falar – e isso com tanta desenvoltura que, muitas vezes, surpreende os adultos que estão à sua volta. Mesmo que ela não fale da maneira como os livros de gramática recomendam, podemos dizer que ela sabe, sem se dar conta disso, como formar uma oração do português. Ora, tanto isso é verdade que ela consegue dizer coisas como:
(1) Eu quero passear agora.
ou ainda,
(2) Me dá os brinquedo(s) ou Me dá o brinquedo.
No exemplo (1), a criança soube colocar o que chamaremos de sujeito, isto é, Eu, antes do verbo quero, e, além disso, o sujeito e os verbos concordam um com o outro. Ela usou ainda um verbo no infinitivo, isto é, passear. Nos exemplos em (2), ela conseguiu, entre outras coisas, empregar o pronome me antes do verbo dá e também utilizar o plural, os brinquedo(s), e o singular, o brinquedo.
Assim, embora não saiba o que quer dizer sujeito, verbo, etc., uma criança usa adequadamente a língua que aprendeu na convivência com sua família. É essa habilidade de usar a língua na FALA que chamamos de Gramática Mental.
Quando chega à escola, a criança domina então a língua falada, que tem uma gramática que se localiza, de alguma forma, na sua mente. Porém, nas aulas de Português, ela vai aprender, primeiro, como representar, por meio de letras, os sons de sua fala e, depois, como escrever textos usando palavras e orações. Num primeiro momento, os alunos vão escrever seus textos, maiores ou menores, de acordo com a Gramática Mental de que já dispõem, ou seja, é também a Gramática Mental que vai servir de referência também para o uso da língua na ESCRITA.
Os problemas começam aí: o aluno percebe que o (a)professor(a) quer que ele aprenda a falar e a escrever de um determinado jeito que é considerado mais certo e mais bonito. E, para isso, ele precisa aprender uma grande quantidade de normas que estão no livro de português, que é também, como dissemos, uma gramática. Essas normas dizem para nós como devemos falar e escrever de acordo com o que a escola e o(a) professor(a) acham correto. Mesmo sem perceber, os alunos vivem um conflito com essa situação: ora, eles sabem falar e se comunicar com as pessoas, mas vão ter dificuldades, alguns mais outros menos, de se comunicar quando estiverem escrevendo.
Notamos, então, que há dois modos de usar a língua: na fala ou na escrita e que, para utilizá-los, fazemos uso de uma Gramática Mental; e que a escola exige que utilizemos a língua, na fala e na escrita, de acordo com um conjunto de normas que estão contidas num livro, que é também chamado de gramática.
Vamos comentar alguns exemplos para deixar essas ideias mais claras. Considerem a seguinte oração, que é típica da fala:
(3) Carlinhos viu ele na festa.
A pessoa que falou a oração (3), mesmo que nunca tenha ido à escola, seguiu, sem perceber, algumas regras da Gramática Mental: ela pronunciou primeiro o sujeito Carlinhos; depois o verbo viu; em seguida, o objeto ele; e, por fim, a expressão na festa, que indica lugar. Mas, nas aulas de português, o(a) professor(a) vai ensinar que, ao escrever um texto, o aluno deve utilizar, em vez de (3), a oração seguinte:
(4) Carlinhos o viu na festa.
No exemplo (4), seguimos quase todas as regras que utilizamos para falar (3). Porém, embora (3) e (4) expressem a mesma coisa, existe uma diferença: no caso de (3) o objeto é ele, que aparece depois do verbo; enquanto no caso de (4), o objeto é o, que aparece antes do verbo. Essa maneira de utilizar o objeto em (4) é considerada, por razões que estudaremos adiante, a mais correta e é mais exigida na escrita. É claro que podemos utilizar (4) também na fala, mas, nessa hora, estaremos reproduzindo na fala um recurso que é típico ou mais esperado na escrita.
O jeito considerado mais certo de usar a língua é chamado de português padrão (e também de norma culta) e é ele que o livro de gramática quer ensinar. A escola quer que o aluno escreva sempre de acordo com as normas do português padrão e, se possível, que fale também obedecendo a essas normas. É bem mais fácil controlar, no entanto, a maneira como escrevemos do que a maneira como falamos. Quando estamos com os amigos, namorando ou convivendo com a nossa família, não há como a escola nos corrigir. Isso explica, em parte, porque a escola vigia mais o uso do português padrão quando estamos escrevendo.
A escola tem ou não razão em agir assim? Parece que sim. Vejamos por quê.
O português padrão e a fala
O Brasil tem uma língua oficial, que é o português, e essa língua precisa ser usada da maneira mais homogênea possível nos vários estados e regiões. Imaginem se, em cada estado brasileiro, os falantes escrevessem da maneira como falam. Aos poucos, os falares regionais poderiam se tornar línguas diferentes do português padrão. Isso não é desejável politicamente, pois os brasileiros perderiam a noção de que são, ainda que com muitas diferenças, um povo só, com interesses em comum e com um futuro comum a ser construído. Para resumir, poderíamos perder a nossa unidade nacional. O português padrão ajuda, portanto, a nos mantermos unidos enquanto país. De que maneira?
Ora, é o português padrão que é utilizado, por exemplo, (1) na redação da Constituição Federal e das leis que regem nossa vida; (2) nos artigos de jornais, virtuais ou não, por meio dos quais temos acesso a informações; (3) nos contratos comerciais entre as pessoas, empresas ou estados brasileiros, etc. A escola tem um papel, portanto, na manutenção da nossa unidade enquanto país, já que cabe a ela ensinar o português padrão. Mas, além disso, como estudaremos mais adiante, dominar esse uso da língua tem importância para cada um de nós como pessoa e como cidadão.
A defesa do português padrão que fizemos não quer dizer que podemos desprezar a língua tal qual é falada pelos vários grupos sociais e regiões brasileiras. Pelo contrário! Como também veremos neste livro, é importante valorizar as inovações, criadas principalmente pelos jovens, e também as palavras e as pronúncias usadas nas várias regiões brasileiras. Mostraremos adiante que as inovações da fala têm um papel importante na mudança e na evolução da língua. Sim, a língua muda! Também veremos como isso acontece.
Apesar de sua importância social e política, o português padrão e suas normas podem também ser entendidos como uma tentativa de “frear” a mudança da língua. Podemos dizer, assim, que o uso da língua gera uma “briga” entre a tentativa de conservar a língua “parada” ou imutável, que é exercida, sobretudo, pela escrita na qual é mais exigida a obediência às normas do português padrão, e a tentativa de mudar ou “avançar” a língua, que fica a cargo da fala e da convivência entre os falantes.
A escola deve encontrar um equilíbrio nesse confronto. Ela deve ensinar e cobrar o uso do português padrão, mas, ao mesmo tempo, deve compreender e valorizar o papel e a liberdade da língua falada. Cabe à escola, portanto, tomando como base a sua fala, levar o aluno a se exprimir também por meio do português padrão.
Não se trata, assim, de excluir da escola o jeito que falamos, mas de incluir a escrita e as normas do português padrão.
Como você já percebeu, os usos diferentes do que recomenda o português padrão são considerados errados pela sociedade e pela escola. Discutir esse assunto, em nosso país, ou em qualquer outro, é sempre muito difícil: as pessoas reagem com muita emoção e pensam que, ao trazer ideias como as que estou comentando aqui, estamos defendendo que os alunos estão autorizados a falar ou escrever “errado”.
Mas não é nada disso! Há, na verdade, muita confusão e desinformação nesse debate. Ninguém defende que os alunos possam falar “errado”. O objetivo da escola continua sendo, como dissemos, levar os alunos a dominar os recursos do português padrão. São a postura e os métodos para alcançar esse objetivo que evoluíram.
Há pelo menos duas razões para aceitar, de início, o que é considerado errado: a primeira razão é que a fala, trazida para a escola pelo aluno, é a sua fala natural, materna e regional, e servirá de base para ele aprender os recursos do português padrão; a segunda razão é que o acesso ao português padrão será facilitado se o aluno for levado a comparar um recurso considerado “errado” com um recurso considerado “certo”. Vejamos como isso pode ser feito.
Podemos pedir ao aluno que compare o modo como ele normalmente fala com o modo como se espera que ele escreva de acordo com o português padrão. Preste atenção nos seguintes exemplos:
TEXTO FALADO ↓ (5) Sabe… o cara que eu conversei com ele falou pra mim pra não viajar pra Porto Seguro porque a estrada tá muito ruim, né? TEXTO ESCRITO |
Apesar de (5) e (6) dizerem a mesma coisa, fazem isso de maneiras diferentes, isto é, os recursos da língua utilizados em (5) são diferentes dos recursos empregados em (6). O que a escola deve fazer então é que os alunos, além de se expressarem como em (5), aprendam também a usar a nossa língua do jeito que aparece em (6). E uma maneira de fazer isso é pensar que recursos do texto falado correspondem aos recursos do texto escrito. Por exemplo, no texto falado aparece “falou pra mim” que corresponde a “foi-me aconselhado” no texto escrito.
Capacitar os alunos a usar a língua que está em (6), tendo em vista o que foi utilizado em (5), é, portanto, o objetivo deste livro. Mas para realizá-lo, vamos explicar como pensamos que isso deve ser feito.
Gramática inteligente
Aprender a usar a língua de acordo com o português padrão, como está em (6), não é uma tarefa fácil por várias razões. Uma delas é porque, como vimos, precisamos incluir recursos da língua que aparecem, principalmente, nos textos escritos sem abandonar a maneira natural como falamos. Uma ideia que surge, então, é a seguinte: se os alunos lerem muitos textos, e textos de vários gêneros, isto é, de jornal, história, romances, etc., eles verão como se escreve o português padrão e, aos poucos, passarão também a escrever da maneira como a escola recomenda. Essa conclusão é bastante válida e é, aliás, o que acontece em boa parte das aulas de Português hoje em dia: pede-se aos alunos, por exemplo, que leiam cada vez mais, que discutam as ideias e opiniões dos autores e, no final, que respondam às perguntas que examinam se os textos foram bem compreendidos. Nas respostas que os alunos produzem, o professor verifica também se eles estão reproduzindo os recursos do português padrão e os estimula a isso.
Quando bem utilizadas, estratégias de ensino como essa são bastante proveitosas e acreditamos que ela pode ter um papel central nas aulas de Português.
Pensamos, porém, que, além disso, o acesso aos recursos do português padrão pode ser facilitado caso o aluno entenda e saiba os nomes, as regras e as normas que explicam como funciona a gramática da nossa língua. Veremos isso com calma. Observe os seguintes exemplos:
(7) A criança do bairro.
(8) As criança do bairro.
(9) As crianças do bairro.
Muitas vezes, sem perceber, falamos como está em (8), mas, de acordo com o português padrão, devemos usar a língua como aparece em (9). Qual é a diferença? É que, em (9) (mas não em (8)), o -s, que aparece junto do A, deve aparecer também junto de criança, já que se trata de mais de uma criança. O que acabo de dizer tem nome. Assim, o fato de se referir a mais de uma criança é chamado de plural; quando se tratar de uma só criança, como em (7), temos o singular. Já o fato de -s aparecer em dois lugares em (9) é chamado de concordância. Dizemos, assim, que As concorda com crianças, assim como, em (7), A concorda com criança.
Por que é importante saber o que quer dizer nomes como plural, singular, concordância e tantos outros? É porque são esses nomes que também nos permitem descrever, em primeiro lugar, como a Gramática Mental está organizada e a partir daí compreender, em segundo lugar, como utilizar os recursos do português padrão. Nós acreditamos, então, que entender a estrutura e o funcionamento da Gramática Mental facilita e acelera o aprendizado dos recursos do português padrão.
Por outro lado, a aprendizagem dos recursos do português padrão não pode ser realizada decorando os nomes que descrevem as propriedades gramaticais. A “decoreba” não ajuda porque nós sabemos que quem decora alguma coisa, com o tempo, acaba esquecendo. O que devemos fazer, então?
Em primeiro lugar, devemos pensar sobre a gramática. Isso quer dizer que a melhor maneira de aprender gramática é refletir e compreender seu funcionamento e estrutura. Se nós agirmos assim, os nomes que explicam os fatos da língua entrarão em nossa cabeça de maneira natural. Vamos ilustrar o que acabo de dizer com um exemplo.
Observe a seguinte lista de palavras: no, pegue, a, pregos, coloque, martelo, com, tábua, chão, o, pregue. Numa leitura rápida, é difícil memorizar essa lista de palavras. Mas quando organizamos essas palavras e entendemos o que elas querem dizer, a memorização fica mais fácil: “Coloque a tábua no chão, pegue os pregos e, com um martelo, pregue os pés na tábua”. Entendemos, portanto, que se trata do que temos de fazer para montar uma mesa.
Com a gramática também é assim: temos de entender as relações que as palavras como concordância, plural, sujeito, objeto, verbo e muitas outras mantêm entre si.
Chamaremos essa maneira de estudar gramática de abordagem reflexiva da gramática. Como é isso? É estudar gramática tentando descobrir a “lógica” que está por trás dela. A esperança é que, quando entendemos como ocorrem os fatos da língua e aprendemos a dar nomes a esses fatos, conseguiremos extrair dela as regras que explicam como ela funciona.
Estamos agora em condições de explicar o título do nosso livro. Gramática inteligente quer dizer, então, que o estudo gramatical proposto aqui é realizado por meio de uma abordagem reflexiva. Portanto, o significado da palavra inteligente do título não quer dizer que o aluno tem que ser muito inteligente ou que essa nossa gramática é mais inteligente que as outras.
Mas será que tudo que a gramática contém pode ser aprendido dessa maneira? Ou seja, todos os fatos da gramática do português são organizados, ou lógicos, a ponto de poderem ser estudados dessa maneira?
A resposta é não! Vamos falar mais disso.
Regras e exceções
Vamos propor agora que a gramática possui duas partes: uma parte sistematizada, isto é, os fatos que ocorrem sempre, de onde podemos extrair regras que servem para grande parte dos casos. É essa parte que permite o que chamamos de abordagem reflexiva da gramática. Chamamos essa primeira parte de regras principais. Já a segunda parte é feita de exceções ou particularidades da língua, ou seja, são os casos que não ocorrem sempre, de onde também podemos extrair regras, mas são regras válidas para um menor número de casos. Chamamos essa segunda parte de regras secundárias.
Para entender essa divisão, vamos analisar os seguintes exemplos:
(A) Para a maior parte das palavras, o plural é formado com o acréscimo de -s:
(10) cadeira/cadeiras, ponte/pontes; inteligência/inteligências, etc.
(B) Para palavras terminadas em “x”, o plural não é formado pelo acréscimo de -s, que só aparece no determinante:
(11) o tórax/os tórax; o ônix/os ônix
Para as palavras como as que estão no caso (A), podemos propor a seguinte regra de formação do plural:
Regra de Formação do Plural: acrescentar o -s. |
Essa regra vai valer para a grande maioria das palavras do português e faz parte das regras principais.
Mas para casos como os que estão em (B), que são minoritários, essa regra não vale. É um caso que compõe as regras secundárias. Muitos desses casos são exceções que entraram na língua devido a mudanças que ela sofreu com o tempo, ou são resíduos que sobreviveram na língua, originados de épocas antigas do português ou do latim. No caso em (B), por exemplo, a palavra portuguesa tórax era thorax no latim que, por sua vez, veio do grego thórax. A palavra tórax, então, não forma o plural com -s por essa razão.
Exceções como essa ocorrem em grande quantidade e estão espalhadas pela língua.
Nós privilegiamos, neste livro, o estudo das regras principais, que são mais apropriadas para o estudo por meio da abordagem reflexiva. Para alguns poucos fenômenos, mencionamos também as regras secundárias, mas não nos preocupamos em listar todas as regras secundárias para todos os casos. As razões dessa escolha são as seguintes: as regras secundárias são muito numerosas e listá-las todas tornaria nosso livro uma espécie de enciclopédia que desfavorece o que chamamos de abordagem reflexiva; nossa prioridade é dar base teórica para que os alunos comecem a tomar a linguagem como objeto de reflexão e a partir daí possam melhorar seu desempenho nas modalidades falada e escrita.
Nossa gramática é então de natureza incompleta, o que, sob esse ponto de vista, é natural porque, em primeiro lugar, novas palavras, novos usos e recursos inovadores da língua estão sempre sendo criados, e isso, ao longo dos séculos, gerou um volume de recursos e construções consideráveis. Tudo isso torna impossível descrever todos os produtos que podemos gerar com a língua, que são, na realidade, infinitos.
O livro não tem a pretensão, portanto, de conter todas as informações sobre a língua portuguesa tal qual a utilizamos no Brasil. Porém, essas características desta gramática funcionam também como um convite para o leitor, a partir daqui, buscar outras informações em outros livros, gramáticas e dicionários, e para que continuem a pensar e a se conscientizar, cada vez mais, dos recursos da língua portuguesa do Brasil.
Algumas palavras finais sobre os exercícios deste livro: os exercícios vão explorar os temas de gramática levando os alunos a encontrá-los e a ver o funcionamento deles em textos de vários tipos e gêneros, isto é, textos de literatura, de jornal, de e-mails e outros. Já que o objetivo, no fim das contas, é ensinar o leitor a escrever e a interpretar textos, nada melhor do que pensar a gramática no interior das orações que compõem os textos da língua.