Algumas histórias precisam ser contadas. Se acontecer o pecado da omissão, esses fatos acabam por se levantar, com vida própria, e sair por aí pedindo tempo e atenção para que se apresentem.
O espaço falava alto sobre belezas naturais e muito relaxamento. Acredito que assim deveria ser também para os funcionários, e mais ainda para os hóspedes, pessoas que têm poder aquisitivo capaz de comprar alguns dias num hotel fazenda. O lugar foi construído numa antiga fazenda agrícola, preservando todos os aspectos históricos do local. Daquele clima bucólico, tudo o que se poderia esperar seriam experiências inesquecíveis de alegria e paz, embaladas numa aura de tranquilidade budista.
As acomodações eram sofisticadas, com todo aparato necessário para garantir uma climatização perfeita, com uma decoração fiel à proposta de manter a linha rústica que convém ao lugar. Nos quartos havia camas enormes. Um deles estava ocupado por Antonella, uma dentista solitária. A profissional sabia como manter de boca aberta os clientes que se dispunham a pagar pelos melhores serviços, mas pouco afeita a perceber o que sua língua podia produzir no trato com algumas pessoas, o que explica seu isolamento quase permanente.
Antonella estava encantada com tudo aquilo, inclusive com a quadra de tênis, que para ela havia se transformado na melhor do planeta – foi lá que conheceu Emilio, um veterinário de chapéu Panamá, que tirava só para tomar banho e dormir, e sandálias, quando não estava descalço. Nas horas vagas, ele gerenciava o hotel com mãos de ferro. No entanto, sabia manter o cuidado de ter a suavidade de uma pétala quando isso lhe interessava e ponto final. Há quem diga que foram vistos bebericando, na noite anterior, no bar que fica ao lado da piscina. Mas eu não digo nada.
Era o mês de abril. As chuvas de março já haviam fechado o verão. Não sem motivo, agora o sol se sentia dono do pedaço, de todos os pedaços onde conseguia penetrar – não vou chamá-lo de “Astro-Rei”, que isso é clichê, mas é verdade que ele reinava sem concorrência.
Naquele dia, Antonella acordou disposta a explorar mais ainda todas aquelas possibilidades de lazer. Para começar, foi ver de perto como se ordenha uma vaca e entender de onde vem o leite que tomava com chocolate natural e aveia em flocos no café da manhã, sempre acompanhado de pão caseiro quentinho, bolo de fubá cremoso, queijo e geleia de todos os sabores. Seus passeios eram monitorados por um transtorno: evitar passar em certos lugares para que não acontecessem desgraças depois.
Em seguida, Antonella fez uma caminhada e teria feito um passeio a cavalo, não fosse pela cor do animal, preto, que evitava a todo custo, sem contar uma considerável parcela de medo, que não confessaria a ninguém. Mas prometeu, de pés juntos, que mais tarde faria um passeio pilotando uma carroça, que pelo menos tinha quatro rodas, embora não confiasse no cavalo que substituía o motor. Na cachoeira a que teve acesso, se deixou vencer pelo convite a uma sessão de relaxamento e foi abraçada pela água que fazia um carinho rude e desejado por todo o corpo. Por pouco não ficou sem o chapéu e o costumeiro lenço no pescoço, que decidiram voar e foram barrados por uma árvore que passava por lá.
Depois do aperitivo no mesmo bar, embriagada pelo azul do céu, tomou o caminho do restaurante. Novamente experimentaria o sabor de uma comida caseira autêntica, sem gosto de Faria Lima, e preparada em fogão de lenha, com respeito aos sabores típicos da região – pratos nacionais identificados por nomes brasileiros, todos com sotaque pra lá de caipira.
Antonella chamou Celso, o garçom de cabelo afro, corpo pequeno e rosto redondo. Ele a atendeu de pronto.
– O que é esse Arroz Vermelho?
– É um prato feito com arroz vermelho, cozido com suã de porco e servido com torresmo de pururuca, tutu de feijão e couve. Pode acompanhar carne cozida com batata ou linguiça – respondeu Celso.
– Credo, quer que eu fique gorda como você, garoto? Arghhhhhh!
– E o Azul Marinho, o que é isso moço?
– É um prato feito com um peixe suculento, cozido com banana nanica verde e servido com pirão. É muito saboroso, os clientes pedem muito…
– Não. Banana nanica verde… Só se fosse banana prata madura. Essas coisas assim, “meio escurinhas”, isso tem muito a ver com vocês, não tem não?
– Como assim, minha senhora, não entendi – disse Celso, visivelmente intrigado.
– Entendeu sim, entendeu sim, claro que entendeu… Bom, me traga essa Paçoca de Carne Tropeira. Com pouca gordura de porco e só um pouquinho de farinha de milho. E traz também uma porção de Bolinho de Frango. E pode comer a minha parte da melancia. Eu deixo.
– Tudo bem, vou providenciar, com licença – disse o garçom, retirando-se e tomando todos os cuidados para não perder a calma de que precisaria muito.
– Senhor Emilio, preciso falar com o senhor – disse Celso, transtornado.
– Fale rápido – respondeu Emilio, sentado na cadeira antiga do escritório.
– É sobre a hóspede do 14. Bom, ela me ofendeu, me chamou de gordo e foi preconceituosa comigo porque sou negro.
– Bom, e o que você quer que eu faça? Quer que eu dispense a mulher? Sabe quanto ela rende? E sabe de onde sai o seu salário, Celso?
– Não sei se o senhor vai dispensar a mulher, mas queria que tomasse alguma providência. Preconceito, racismo…, acho que o meu salário não paga nada disso, né?
– E tem gente que ganha menos que você, rapaz. Vou te mostrar a pilha de currículos que tenho aqui. Mas eu vou ver o que eu faço. Pode ir. Obrigado.
O prato pedido por Antonella já estava pronto para ser servido. Celso pegou as vasilhas de cobre e levou-as. Educadamente, colocou cada item sobre a mesa, pediu licença e saiu. Não queria abrir espaços para novos comentários perfeitamente dispensáveis.
– O que aconteceu com o Celso, aquele garçom negro? – Emilio perguntou à Antonella.
– Não acredito! Eu só disse que ele é gordo e é preto. E ele não é?!
– Bem, ele foi reclamar de você pra mim – disse Emilio. – Complicado, isso.
– E você não caiu na conversa dele, né, “Emi” – posso te chamar assim? “Emi”?
– Claro, você pode. Mas olha, esse rapaz é sensível, se ofende com qualquer coisa. Tá envolvido com um grupo desses “negros conscientes”. Acho que seria melhor você ficar fora uns dias, a gente vê um hotel, até a poeira baixar, você entende – disse Emilio.
– Ficar fora? Num hotel? Mas eu estou num hotel! – disse Antonella.
– Até a poeira baixar. Senão vamos ter problemas – disse Emilio.
– Tudo bem, eu vou. Mas sob protesto. Queria ficar perto de você, Emi.
Descuidada, ao sair para o endereço temporário, Antonella deixou cair um documento. De posse dele, Celso aproveitou uma brecha e foi até a delegacia da cidade, onde registrou queixa por preconceito e racismo. Em seguida, voltou para o hotel e retomou seu trabalho rotineiro, certo de ter agido da maneira mais indicada para o caso. Não se sabe como, alguns minutos depois Celso foi convocado pelo gerente com o temido “Entra e fecha a porta”.
Uma hora depois, Emilio foi se encontrar com Antonella, num hotel perto dali, e a trouxe para o hotel fazenda, com a promessa de que nada lhe aconteceria – o funcionário sensível e consciente havia sido demitido para evitar problemas que atrapalhariam a vida daquela cliente VIP.
Dessa vez, Celso registrou nova queixa, na mesma delegacia, agora contra o gerente.
Antonella e Emilio foram intimados a depor, com hora marcada, que foi descumprida.
Celso foi procurar emprego. O aluguel da sua casa estava atrasado.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao