Inicialmente pensei em escrever um conto, como sempre faço. Mas estava com uma questão entalada na garganta e ela bem pedia a redação de um artigo. Para não fugir da proposta editorial que escolhi livremente, de produzir ficção, decidi que o assunto poderia ser tratado numa conversa entre dois personagens.
Tudo bem. O conto, assim como o romance etc., sempre tem ao menos dois personagens, cada um em busca de algo, ainda que seja um copo d’água, e um conflito – é isso que dá samba, porque sem ele não há história.
Aqui, o diálogo acontece entre um jornalista e uma professora de Língua Portuguesa, os dois muito envolvidos com questões de comunicação – inclusive para não condenar inocentes ou absolver culpados, justiça seja feita.
Conflito? Zero conflito. No happy hour, o propósito dos velhos amigos era relaxar tomando um chopinho preguiçoso enquanto falavam de coisas em que os dois estavam de acordo para não haver debate: um ataca isso, outro defende aquilo, aí tem a réplica, depois a tréplica e, quem sabe, o “climão”, por causa da polarização, tudo grandão. Isso não.

O que os personagens buscam numa empreitada que pode gerar conflitos entre eles, às vezes graças à ideia de “eu ganho, você perde”? Nesse caso, nada. Dentre outras coisas, eles pretendem apenas contribuir para que a desinformação ou a informação mentirosa nas redes sociais percam espaço todos os dias, até que a morte nos separe e por mais 8 mil anos, já descontado o Imposto de Renda e em 3x no cartão. O que é uma informação estapafúrdia da minha parte e só pode ser vista como brincadeira de quem acha que o mundo já tem desgraceira de sobra.
O shopping estava movimentado naquela semana, a alguns dias do Natal. Era previsível: uma parcela de pessoas comprando o que não precisa, com o dinheiro que não tem, para resolver problemas que não existem. A data entraria em coma irreversível se fosse transferida para o meio do ano, por exemplo, longe do primeiro dia de janeiro, abertura do Ano Novo. O Natal é uma festa religiosa; onde estão as manifestações religiosas? O Natal celebra o nascimento de Jesus; onde estão as festas com esse tema, em casa e na rua? [Rubens, deixa de ser chato!]
Por sorte, apesar de todo o movimento, pessoas descuidadas não viram as duas últimas cadeiras em frente à choperia – com braços grandes, Franco puxou-as e sentaram-se. Aí só faltava o jornalista e a professora pedirem dois copos bem tirados.
– Você está diferente, o que foi? – disse Franco.
– É, dessa vez a maquiagem ficou um pouquinho carregada. Acontece.
Sem se dar conta, Franco começou a assoviar, baixinho e como se cantarolasse automaticamente alguma canção inexistente até aquele momento. Era sempre assim.
– Mas olha, a gente fala de fake news, essa excrescência publicada por gente mal-intencionada… – disse Franco, sugerindo a retomada de uma conversa que teria começado em outro momento, quem sabe.
– Sim, essa gente consegue até mudar o resultado de uma eleição – disse Jacqueline. – Preocupante, não é mesmo?
– …Mas a questão não está só aí, o problema não são apenas as pessoas mal-intencionadas – disse Franco.
– Quem mais?
– Quem mais? Bem, pessoas que não sabem escrever; é óbvio, meu caro Watson.
– Se é o que estou pensando, faz sentido, faz todo sentido. Mas continua.
– Nas mídias sociais, todo mundo tem opinião sobre tudo. E isso vai desde a fabricação de um alfinete até a produção da próxima nave espacial, da plantação e cultivo do coentro em solo arenoso até a escolha política do papa e a pena de morte. Sem contar que o espaço é livre, basta clicar e escrever.
– Claro, todos têm liberdade de expressão – disse Jacqueline. – É do jogo.
– Liberdade de expressão questionável, aliás.
– Mas pense em alguém que não sabe escrever e tem iniciativa. Isso é devastador.
– Sim, o que acontece? – disse Franco
– Meu amigo, basta um errinho de Português para deturpar a mensagem mais bem-intencionada do mundo.
– Acho que vou escrever um artigo sobre isso. Me fale mais.
– Enquanto a pessoa publica um texto dizendo coisas como “Vende-se meias de seda para senhoras de boa qualidade”, alguns acham engraçado e a vida continua, sem maiores danos – disse Jacqueline.
– O problema é quando não são apenas as palavras que estão fora do lugar, mas alguns sinais de pontuação.
– Lembra de algum exemplo? – perguntou Franco.
– Sim, lembro. Pense numa simples vírgula fora do lugar. Outro dia não tive como não rir quando, durante a missa, o leitor deslocou a vírgula numa passagem da Bíblia e, sem se dar conta, afirmou que Jesus devia ser condenado, veja só.
– Gostei do exemplo. Mais algum?
– Tem esse caso: “Não é culpado” – absolvido, portanto. Mas, se entrar uma vírgula entre as palavras, o jogo muda. Ela pode condenar alguém injustamente: “Não, é culpado”. Por causa de uma simples (simples?) vírgula, veja só o tamanho da encrenca.
Imagine o prezado leitor, a querida leitora, quanta gente está sendo inocentada ou culpada nas redes sociais, fruto da falta de habilidade para escrever. Imagina quantas decisões equivocadas são tomadas por causa dessa dificuldade de se comunicar por escrito, ainda que exista sempre a melhor intenção de informar e orientar os amigos e familiares. Quem nunca ouviu falar no Tio do WhatsApp, que ganhou credibilidade e é distribuidor de desinformação a todos quantos puderem conhecer.
Franco escreveu um artigo sobre o tema e o publicou na sua coluna semanal, que teve alguma repercussão, inclusive algumas mensagens acusando-o de preconceito. Jacqueline continuou dando aulas, com ênfase na forma correta de usar a pontuação e na importância de se buscar a palavra com sentido exato, não apenas aproximado, na produção de um texto. Isso, além de tornar ainda mais apertado o critério de correção de trabalhos e provas. Ela não queria criar uma nova geração de produtores de fake news embrulhadas em textos mal construídos do ponto de vista da estrutura e da gramática.
– Franco, sextou!
– Sextou, Jac!
– E, se sextou, isso quer dizer que hoje é dia de um chopinho calmo. Vamos voltar àquela choperia perto do shopping?
– No horário de sempre? – perguntou Franco.
– No horário de sempre.
– Quem chegar antes escolhe a mesa.
– Prometo não perguntar se você está fazendo exercício físico.
– Ah, assim fica melhor, meu corpo já é bem feito – disse Franco, dando risada.
Preferiram sentar do lado de fora, sob uma pérgola coberta por uma parreira de uvas rosadas, que podia proteger suas frutas graças a um sistema automático de toldos antichuva inesperada ou garoa chatinha e insistente. A estátua de um búfalo, sobre o qual havia um passarinho, ao lado de outra de uma ovelha, entre as quais ficava a entrada da choperia, estavam pedindo um pouco de amor – em termos de manutenção, elas já tiveram dias melhores. Dentro, próxima à parede ao fundo, do lado direito, uma armadura segurava uma garrafa de cerveja e outra de vinho, objetos apenas cenográficos.
O pequeno saleiro sobre a mesa estava com a tampa solta, fruto do poder insuperável de fazer gracinhas de algum cliente, e pronto para ser jogado no chão ou estragar irremediavelmente o melhor prato. Ninguém se deu conta, e deu-se a tragédia. Um garçom resolveu o problema da mesa coberta de branco.
Pediram uma cerveja especial, geniosa como nunca se viu.
– Um brinde à memória do Walter, colega de redação e de bar, que se foi há um mês! Um grande profissional, bom de texto e de copo, o safado! E isso não é fake news…
– Um brinde, Walter, “O Safado”! – disse Jacqueline, numa gargalhada solta.
Sabe-se Deus sobre o que mais iriam falar. Talvez falassem de flores. Talvez falassem sobre inseminação artificial, a crise na Educação, a Inteligência Artificial. Talvez analisassem a guerra na Ucrânia e depois falassem sobre as crianças que vendem doces e salgados em geral no semáforo. E, por fim, para exercitar a criatividade e capacidade de argumentação, quem sabe não resolvessem montar uma relação com 13 itens que poderiam ser usados se tivessem de escrever um texto vendendo o Viaduto do Chá, com entrega em uma semana, frete grátis, já com o sistema de cobrança de pedágio devidamente instalado e a esperada garantia de assistência técnica vitalícia. [Não dá ideia…!] Tudo, menos fake news. [ENTER]
Rubens Marchioni é escritor e artista plástico. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto, pela Editora Contexto. [email protected].