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Escrever pode ser muito difícil. Impossível, talvez | Rubens Marchioni

Circulando entre amantes da palavra, ouço relatos dando conta de que escrever é um trabalho difícil, além das possibilidades de simples mortais. Se é verdade que existe o amor que conduz para o texto, nesses casos não parece menos real o fato de que o convívio se dá na base do conflito. Da briga. Do divórcio antes do casamento. Vale a pena pensar um pouco mais sobre esse assunto. Vem comigo.

Não é o ato de escrever, de produzir um texto criativo e adequado que oferece a maior dificuldade. Simplesmente porque não posso afirmar que as ideias, palavras e frases se negam a cooperar comigo, como numa prática neurótica de perseguição sistemática a esse candidato a escritor.

As ideias, palavras e frases, todas estão lá, disponíveis. Prontas para trabalhar. E por que diabos não trabalham quando estão em minhas mãos? Estariam elas de má vontade comigo? Teriam, por acaso, e sem motivo aparente, tomado a decisão de me boicotar? Não. Claro que não. Boicotar é algo que somente seres humanos conseguem fazer. Inclusive consigo mesmos.

E então? Por que motivo, quando chega a minha vez de ter uma ideia e escrever o meu texto, não acontece? Bem, criar e escrever é fácil. O que dificulta as coisas é a maneira como me comporto diante do processo. É o que faço comigo mesmo quando chega a hora de produzir uma mensagem por meio de palavras.

Não adianta acusar a escrita de uma dificuldade que ela não tem. Na maioria dos casos, o problema sou eu, que insisto em enxergar obstáculos onde eles não existem. Por exemplo: sei elaborar uma frase quando quero dizer alguma coisa a alguém. Então sei escrever. Para falar, uso a língua, a voz. Para escrever, uso a caneta ou um teclado de computador. Difícil?

Se sei dizer “Sou incapaz de agir assim”, então sei escrever “Sou incapaz de agir assim.” Pronto. Continuando: eu sei escrever uma palavra? Sei. Sei escrever duas palavras, uma ao lado da outra, de maneira que digam algo que tenha sentido? Então sei escrever uma frase. Sei repetir esse processo, produzindo várias frases que formam um sentido completo? Então sei escrever um parágrafo. Sei escrever vários parágrafos? Isso prova que sei escrever um artigo ou um capítulo. Ora, se consigo escrever um capítulo, então estou apto para escrever um livro, reunião orgânica de uma série de capítulos em torno de um assunto. A ideia de escrever um livro me assusta? Então, não devo pensar em escrever um livro. Melhor eu dizer que estou escrevendo frases, parágrafos. Comer o boi aos bifes. Sem me deixar impressionar. No final, vou descobrir que escrevi um livro. Difícil?

E então? Ainda posso dizer que não sei escrever? Posso dizer que o escritor português José Saramago estava errado ao afirmar que todos são escritores, só que alguns escrevem e outros não? Posso, igualmente, garantir que o poeta chileno Pablo Neruda se enganou redondamente ao afirmar que escrever é fácil, eu começo com uma maiúscula, termino com um ponto final e, no meio, coloco ideias? Sim, posso, porque sou livre. Mas não estarei sendo verdadeiro. E é feio fazer isso. Além do que, essa postura impede meu crescimento.

Por que não escrevo? Porque aceitei a ideia segundo a qual para escrever é preciso ter dom, estar inspirado etc. Tudo bem, não seja por isso. É ridiculamente fácil ter inspiração. Para provar, lembro que um dia perguntaram ao escritor russo, Anton Tchekhov, qual era seu processo criativo. Tchekhov esticou o braço e apanhou um cinzeiro que estava sobre a mesa. Mostrando-o, disse: “Meu processo criativo é esse: amanhã vou escrever um conto que vai se chamar ‘O cinzeiro’”.

Será que não consigo pegar um objeto sobre a mesa, ou pensar em qualquer coisa, material ou abstrata, que eu possa ver, tocar, ouvir, sentir, e ficar igualmente inspirado? Algo mais prático: o escritor Luís Fernando Veríssimo sugere: “Minha musa inspiradora é meu prazo de entrega”. Como sabia que sem entregar o texto semanal para a mídia ele ficaria sem o respectivo salário no fim do mês, não lhe restava muito tempo para pensar em inspiração. E se empenhava em escrever sua coluna de fato.

Não é escrever que dificulta as coisas. É minha luta para provar que não posso escrever como falo, com a minha voz. Segundo minha crença, falo como Rubens Marchioni, mas na hora de escrever decido que preciso ser Shakespeare. Acontece que não sou Shakespeare. Não sou Virgínia Woolf. Nem Machado de Assis ou Clarice Lispector. Então vou ficar eternamente sem escrever. Esperando que a reencarnação, se existir, resolva esse impasse e me traga de volta como Shakespeare ou…     

Não é escrever que dificulta as coisas. É morrer de medo de começar. Ora, eu sempre começo tanta coisa mais difícil e continuo vivo! Não entendi. É o medo de que a primeira versão do meu texto não fique ótima e isso esfregue na minha cara que sou um fracassado, sem qualquer talento – é mais fácil aceitar uma derrota e poder fugir. O que dizer, então, do escritor americano Ernest Hemingway, jornalista e Prêmio Nobel de Literatura, que reescreveu 39 vezes o último capítulo de Adeus às armas? Também para ele a primeira versão do capítulo não ficou ótima. Nem a vigésima. Nem a trigésima. O que há de diferente entre nós? É que ao invés de sofrer devido à qualidade inadequada da primeira versão do seu trabalho e desistir, Hemingway teve um alto padrão de exigência para consigo mesmo e aceitou o desafio de escrever mais 38 possibilidades para o mesmo texto. Virou referência. Difícil?

Se ao menos eu escrevesse um grosso volume, com 480 páginas, muito bem fundamentado, provando cientificamente que escrever é algo impossível, talvez prestasse um serviço significativo a uma parcela da humanidade, livrando do sofrimento aqueles que ainda insistem na arte de falar por escrito. Mas isso não vai acontecer. Não enquanto insistir na prática da autossabotagem. De negar que sou capaz, colaborando para que meu cérebro comece a produzir todas as provas de que preciso para sustentar a minha tese, tanto para mim quanto para o mundo. Ter razão é gostoso, confortável. Mas, sempre?

Ao invés da lamúria pela falta de talento e de inspiração, talvez eu pudesse ler aqueles autores que escrevem muito bem. Desmontar alguns textos de sua autoria, até descobrir como são construídos. Ficar indignado por não ter o mesmo padrão de qualidade. Sentir-me provocado e prometer que não paro, enquanto não chegar perto do patamar que atingiram. Não para ser aquele escritor ou escritora, que não sou, mas para ser eu mesmo, com a minha vivência única, escrevendo muito bem e me sentindo feliz por essa conquista deliciosa. 

Não é escrever que dificulta as coisas. O problema está em acreditar que posso escrever sem antes dispor de um bom repertório de conteúdo e de estilos, obtidos por meio da leitura intensa, além de um vocabulário, cuja riqueza me permita muitas possibilidades de usos e combinações. Se esta palavra não é ideal para esse momento, conheço uma série de outras e busco a melhor entre todas. Na crônica “Bom dia para nascer”, publicada no jornal Folha de S.Paulo, que bem poderia ter sido uma “redação escolar sobre o Dia do Trabalho”, Otto Lara Resende mostra o que é um texto enriquecido por um vasto repertório. Isso apesar de se tratar de um tema corriqueiro, quase banal.  

Não é escrever que dificulta as coisas. A dificuldade está em não sentir a necessidade de dizer alguma coisa a alguém, por algum motivo muito claro. Tão claro que me leve a trabalhar ao máximo para produzir um texto adequado e inquestionável, ainda que isso me custe algumas horas de trabalho e pequenas renúncias.

Não é escrever que dificulta as coisas. Difícil é ter a disciplina necessária para respeitar o processo, composto por três etapas que não podem se atropelar. Primeiro, ter uma ideia, um caminho criativo para tratar de um assunto. Depois, escrever a primeira versão, ainda grosseira. Por fim, e só agora, só agora, reler, reescrever, editar, até atingir o ponto máximo de qualidade. Como Hemingway, em Adeus às armas. Editar uma versão que sequer pôde nascer, porque eu escrevia e corrigia ao mesmo tempo? Esse é o primeiro passo para se chegar a lugar nenhum. É como matricular na escola uma criança que nem chegou a nascer, filho de uma mulher que nem pôde engravidar. Ter ideia é engravidar. Escrever a primeira versão é aceitar receber em minhas nas mãos um recém-nascido, antes mesmo do primeiríssimo banho da sua vida. Detalhe: um bebê não vem ao mundo somente porque um homem e uma mulher ficaram se olhando, a distância, quem sabe enquanto discutiam as dificuldades de gerar e criar um filho, e concluindo que são incapazes de realizar tamanha empreitada. É indispensável fazer sexo com as palavras. Elas são projetadas para procriar todos os dias, se quisermos. Na escrita não existe inseminação artificial.   

Por fim, não é escrever que dificulta as coisas. O problema é a ausência de disciplina e determinação necessárias para treinar, treinar, treinar, treinar, treinar e treinar muito mais, consciente de que é da repetição que vem a perfeição. Com Ayrton Senna foi assim. Ele não nasceu Ayrton Senna. Ele se tornou “Ayrton Senna do Brasil”, com direito a trilha sonora na maior emissora de televisão do país, habituada às vitórias do piloto. Ele foi mais longe porque sempre buscou o virtuosismo no seu ofício de correr e ser premiado. Virou símbolo, referência imitada no mundo inteiro. Ele, sim, é um mito.

Portanto, não é escrever que dificulta as coisas. O que impede a conquista da vitória é não começar agora, ocupado demais com a tarefa insana de provar que é impossível.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo, blogueiro e escritor. Eleito Professor do Ano no curso de pós-graduação em Propaganda da Faap. Pela Contexto é autor de Escrita criativa: da ideia ao texto.  https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao / e-mail: [email protected]