“Sargento Getúlio, personagem do escritor baiano João Ubaldo Ribeiro, é um homem mau. Cruel. Matador profissional. Um dia, conta João Ubaldo no livro Sargento Getúlio, o policial é escalado para levar um prisioneiro da Bahia até Aracaju. Durante o percurso, toma-se de tal ódio pelo cabra que, quando todos os palavrões do mundo parecem insuficientes para ofendê-lo, cria vocabulário próprio. E desanda a xingar o prisioneiro numa língua particular, sem sentido, como animal enraivecido uivando para a lua. Quem nunca se sentiu como sargento Getúlio um dia? De mal com as palavras, brigado com a gramática, incapaz de domar o próprio idioma? Quem nunca inventou uma língua, como ele, e acabou uivando para a lua?
Quer ver? A frase a seguir foi retirada de tese de doutorado sobre obesidade apresentada à Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP):
‘Segundo dados recentes da Organização Mundial de Saúde (OMS), estima-se que 60% da população mundial não é fisicamente ativa o suficiente a fim de garantir os benefícios advindos dos exercícios físicos.’
Eis exemplo típico de uivo para a lua. As palavras estão ali. Aparecem uma depois da outra. Como num trenzinho, formam período. Mas não fazem sentido juntas. Ou, pelo menos, não reproduzem com clareza o pensamento do autor. O que o estudante quis dizer foi:
‘Segundo a Organização Mundial de Saúde, 60% da população é sedentária.’
Percebeu a diferença? O uso de um adjetivo (sedentária) fez toda a diferença. Ele informa de forma mais direta e abrangente possível que a maior parte da população não se exercita e, portanto, não desfruta dos benefícios da atividade física. Desnecessário usar mais palavras (não fisicamente ativo) para dizer a mesma coisa.
Para alcançar o nível de versão-frase, a versão-uivo passou por processo de edição. Perdeu tamanho, mas ganhou conteúdo. Ficou mais elegante, mais fácil de ler. A edição de texto consiste em reescrever o original para lhe dar três características básicas do trabalho de qualidade – clareza, concisão e objetividade.
Não estamos falando de produções literárias, mas de textos profissionais. Com eles, o autor se comunica com o receptor e dá o recado. É o caso das petições jurídicas, das teses de doutorado, relatórios de vendas e das apresentações corporativas. Os autores não são candidatos ao Prêmio Nobel de Literatura, mas, com certeza, não querem ser um Sargento Getúlio. Eles precisam ser claros para dizer exatamente o que precisam dizer. Precisam ser concisos para não sobrecarregar o leitor com informações desnecessárias. E precisam ser objetivos para ater-se às informações relevantes.
Editar, pois, é fundamental. Vale deixar claro: editar não é procurar erros gramaticais (embora devam ser corrigidos se aparecerem). Também não é incluir palavras difíceis porque vocabulário inacessível compromete a naturalidade da escrita. A edição pode ser resumida em dois verbos – cortar e trocar. Cortar o quê? Trocar o quê? Tudo o que houver para ser cortado e trocado – às vezes até para aumentar o tamanho da frase e clarificá-la.
A técnica de passar a limpo utiliza dois instrumentos de trabalho, o facão e o pé-de-cabra. Com o facão, o autor ceifa palavras e frases longas, inúteis, vagas e desconjuntadas. Com o pé-de-cabra, à semelhança dos ladrões, abre espaço para a pontuação e para vocábulos, frases e estruturas claras e descomplicadas.
Passar a limpo equivale a mandar o texto para o SPA. Sujeito a dieta pobre em adjetivos e rica em substantivos, ele sairá de lá magrinho, esbelto, sem pneuzinhos e gorduras localizadas. Andará faceiro, leve e solto, com tudo no lugar, cheio de curvas e atrativos. Se necessário, com retoque de botox aqui e ali.
E tudo isso para quê? Para que o autor não seja um Sargento Getúlio na vida real. Para comunicar uma idéia. Para despertar o interesse do leitor e entretê-lo até o último parágrafo. Para encantar o mundo.”
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Esse é um trecho do primeiro capítulo do livro Escrever Melhor, de Arlete Salvador e Dad Squarisi. Outros livros relacionados também estão disponíveis em nosso site. Confira alguns: