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Erwin Rommel – a raposa do deserto

Um funeral

“Não tenho sentimentos de culpa. Não me envolvi em crime algum. Durante toda a vida, apenas servi à minha pátria.”
Erwin Rommel

rommel_raposa-do-desertoNo noticiário das 20h de 15 de outubro de 1944, a rádio Berlim anunciou: “O marechal de campo Erwin Rommel faleceu

ontem em consequência dos sérios ferimentos que sofreu num acidente de automóvel, durante uma viagem à frente de batalha, como comandante em chefe de um grupo de exércitos na Frente Ocidental. O Führer ordenou que lhe sejam prestadas solenes honras a
fúnebres nacionais”.

Milhões de alemães sustiveram momentaneamente a respiração e expressaram profunda emoção. O marechal mais popular da Alemanha, o soldado em quem muitos depositavam as últimas esperanças de um fim vitorioso para a guerra que se arrastava desde 1939, não mais existia. O luto e a incerteza quanto ao futuro apoderaram-se de seus corações.

O funeral deu-se com honras de Estado, a 28 de outubro, na praça do Conselho da cidade de Ulm, diante de uma multidão calada e comovida. O marechal de campo Gerd von Rundstedt, o decano dos oficiais do Reich em serviço ativo e ex-comandante de Rommel na França, pronunciou a oração fúnebre.

Com sua morte, perdemos um dos nossos melhores comandantes de exército. Na luta fatídica que a Alemanha enfrenta atualmente, seu nome tornou-se um símbolo de bravura notável e de coragem indômita.

Os dois anos de luta do Afrikakorps alemão sob seu comando hábil e imaginativo, contra um inimigo muito mais forte, deram-lhe as Folhas de Carvalho com Espadas e Diamantes para a Cruz de Cavaleiro da Cruz de Ferro, sendo o primeiro oficial do exército a alcançar tal honraria.

Como comandante em chefe de um grupo de exércitos, ele continuou, até receber os ferimentos que o vitimaram, a servir de modo decisivo no fortalecimento de nossas defesas no Oeste. O exército desce a bandeira do Reich sobre o corpo desse grande soldado, com orgulho e tristeza. Seu nome passará à História do povo alemão.

Findo o discurso, von Rundstedt depositou sobre o féretro a coroa de louros que Hitler pessoalmente enviara ao marechal tombado. Sobre uma carreta de artilharia seguiu o esquife, ao som da “Canção do bom camarada”, música de marcha do exército alemão, e sob o ribombar dos canhões que lhe prestavam as honras póstumas, rumo ao crematório.

Suas cinzas foram, posteriormente, depositadas no singelo cemitério de Herrlingen, aldeia próxima a Ulm, onde o marechal tivera sua residência.

Essa foi a versão oficial da morte do grande soldado, o espetáculo a ser visto e sentido pelo povo alemão, e principalmente para servir como exemplo a ser seguido.

Tudo não passou de uma grande farsa, encenada pelo regime nacional-socialista para reforçar a férrea determinação do povo alemão de obter a vitória a qualquer preço, sob a liderança inspirada de seu Führer, Adolf Hitler. A defesa da pátria, até a última trincheira, estava assegurada, mesmo que redundasse num fim digno do Götterdammerung.1 Nas palavras de Joseph Goebbels, ministro do Povo e da Propaganda do Reich: “É melhor um fim no terror do que um terror sem fim”.

A verdade foi bem outra.

Rommel desiludiu-se paulatinamente com o regime nacional-socialista, apesar de ter sido um de seus generais mais aclamados, em razão de seu desempenho na campanha da França em 1940 e das vitórias alcançadas no norte da África em 1941-1942. Desiludiu-se, sobretudo, com as concepções estratégicas e as soluções táticas ordenadas por Hitler. Sem nunca ter pertencido ao partido nacional-socialista, gozava de grande popularidade na Alemanha, exclusivamente pelas suas qualidades marciais. Passou a testemunhar com frequência os rompantes frenéticos e irracionais de Hitler, sempre que alguém punha em dúvida a capacidade da Alemanha em vencer a guerra, ou mesmo criticasse sua condução. Em consequência, foi se convencendo de que a férrea determinação de Hitler de impor a “resistência a qualquer preço” rumo à vitória final redundaria na destruição total da Alemanha e no aniquilamento de seu povo.

Passou, pouco a pouco, a compartilhar a opinião corrente entre os aristocráticos generais alemães, oriundos em sua esmagadora maioria do antigo Estado-Maior Imperial e que podiam ostentar um “von” antes de seus sobrenomes, inequívoco sinal não só de nobreza, mas de dedicação por gerações à carreira das armas. Para eles, Hitler não passava de um “amador inspirado”, sem quaisquer conhecimentos teóricos e mesmo práticos sobre a arte da guerra. O general von Rundstedt, o oficial que melhor representava essa velha Alemanha – refletida em sua tradição militar, noção de cumprimento do dever, seu estrito profissionalismo e profundo desprezo pelos estrategistas amadores –, referia-se a Hitler em particular como “o cabo da Boêmia”,2 alcunha que se popularizou entre seus pares.

Profissionalismo e patriotismo eram as vigas mestras do exército alemão. Na insuspeita opinião do analista estratégico inglês sir Basil Liddell Hart, “o capitão que os generais ouvem”, os dois melhores exércitos do mundo foram “o Alemão, na Primeira Guerra Mundial, e o Alemão, na Segunda Guerra Mundial”.

Sem pertencer à nobreza e sem ter servido no estado-maior, Rommel, um oficial que galgou as fileiras por seus méritos próprios, começou a discernir que o amadorismo de Hitler em questões táticas e sua ignorância completa em considerações estratégicas só poderiam levaria a Alemanha à ruína absoluta.

Seu filho Manfred narra uma conversa de dezembro de 1943, quando o marechal reproduziu uma declaração de Hitler que o deixara perplexo: “Se o povo alemão for incapaz de ganhar a guerra, então é melhor que apodreça”. Manfred continua a narrar as confidências de seu pai: “Hitler sabia que perdera a guerra. No entanto, quanto mais desastres se davam e mais críticas lhe dirigiam tanto mais desesperadamente ele se agarrava a todas as esperanças e tentava persuadir-se
da vitória. Por vezes, sinto que ele já não se encontra em seu juízo perfeito”.

Educado rigidamente na secular tradição marcial europeia, o marechal encontrava-se bastante imbuído do princípio da obediência incondicional. Acrescente-se a isso o peso do solene juramento que cada soldado e oficial alemão foi obrigado a prestar individualmente, diante do estandarte de seu regimento, a partir de 1934: “Juro, em nome de Deus, prestar obediência incondicional a Adolf Hitler, líder da nação alemã e comandante supremo de suas Forças Armadas, e dar minha vida, se preciso for, para cumprir
este juramento”.

Rommel passou a concordar com a máxima que Napoleão havia exigido de seus generais – que em momentos decisivos da história, a ideia política deve prevalecer sobre a militar. Ele não era um “general de obediência submissa”, nem um “general de missões especiais” para ser enviado à frente por Hitler para sanar situações críticas. Ele se voltou para o Código de Honra do Exército Imperial, elaborado pelo marechal Helmuth von Moltke, que colocava o sentimento humano acima do dever militar, o homem acima do princípio.

E mais do que tudo, buscou inspiração nas próprias palavras de Hitler, impressas em sua obra Mein Kampf: “É dever da diplomacia preservar a existência de uma nação, e não, conduzi-la, heroicamente, à destruição. Todos os meios são justos para a consecução deste objetivo, e qualquer negligência deve ser considerada crime irreparável”. O contraste entre essas palavras e os atos do Führer não poderia ser mais flagrante. Impunha-se agir pela sobrevivência da Alemanha.

Assim, em que pese o solene juramento prestado, a sobrevivência da Alemanha e de seu povo impunham uma solução radical. O marechal chegou à inevitável conclusão de que era preciso remover Hitler da chefia do governo.

Tentaria ainda persuadi-lo a por fim à guerra, através de representações pessoais e escritas. Contudo, se todos os recursos estivessem esgotados, pelo bem do povo alemão, ele aceitaria o pesado ônus da responsabilidade, e sentir-se-ia liberado de seu juramento de lealdade.

Curiosamente, Rommel passou a defender com vigor a ideia de que era dever de todos os patriotas, em especial dos oficiais que combatiam em defesa da pátria, rapidamente pôr um fim à guerra no Ocidente.

O irônico, nesse caso, é a identificação que o marechal fazia com a concepção nacional-socialista de uma “ampla cruzada europeia contra o bolchevismo”. Em princípios de 1943, Finlândia, Eslováquia, Hungria e Romênia estavam lutando ombro a ombro com a Alemanha contra os russos; a Itália enviara uma grande formação (8º Exército); a Espanha disponibilizara uma forte unidade (Divisão Azul); e havia massivos recrutamentos por toda Europa ocupada, por parte das ss, de unidades de voluntários para combater na Frente Leste.

Possivelmente, a concepção política do dever de “salvar a Europa do bolchevismo” era um ideal muito arraigado no exército alemão.

Rommel acalentava a ideia de que os Aliados (norte-americanos e britânicos) fossem preferir celebrar um armistício com uma Alemanha sem Hitler e operar a junção de suas forças num combate contra o comunismo, a ver a União Soviética apoderar-se de toda Europa Oriental e mesmo partes da Ocidental. Um armistício com o Ocidente, a custa de grandes concessões, deixaria a Alemanha com as mãos livres no Leste, para empenhar-se na guerra contra a União Soviética, até conseguir a derrota definitiva do regime comunista, o que deveria ser, em última análise, do interesse dos demais países capitalistas.

Tratava-se de uma concepção pueril, até mesmo ingênua, supor que os Aliados concordassem com tais ideias, uma vez que na Conferência de Casablanca, no norte da África, em janeiro de 1943, eles haviam passado a exigir a “capitulação incondicional” da Alemanha para pôr um fim à guerra. O presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt declarara:

Capitulação incondicional não significa o aniquilamento do povo alemão, mas a destruição de uma ideologia baseada na conquista e dominação de outros povos. Não haverá nenhuma paz negociada, nenhuma contemporização com o nazismo, nenhuma escapatória que possibilite o aparecimento de um novo Hitler.

Na verdade, a Fórmula de Casablanca, como a declaração ficou sendo conhecida, revelou-se inadequada e contraproducente para um final rápido da guerra, dado dois pontos básicos.

Primeiro, fez com que se fortalecesse a concepção nacional-socialista de guerra total, com a mobilização integral dos recursos econômicos, científicos e demográficos alemães, com toda a nação cerrando fileiras em torno de sua defesa, empenhando-se, ao custo de quaisquer sacrifícios, a assegurar a vitória final. Isso fez com que os opositores do regime temessem ser identificados, aos olhos da maioria dos compatriotas, como traidores tentando solapar a estrutura do Estado numa hora em que todos deveriam unir-se em prol de sua defesa. Temiam, mais que tudo, ser identificados com os políticos de 1918, que, solicitando um armistício aos Aliados, obrigaram a Alemanha à rendição.

Segundo, também fragilizou essa oposição, que só poderia obter sucesso através de um golpe de Estado. Tal golpe só teria sucesso duradouro se depois não lhe fosse negada, e a uma Alemanha transformada, o direito a uma paz razoável; pois do contrário o governo criado pelo levante não poderia insistir no prosseguimento da guerra, mesmo contra os russos. Não estaria seguro contra uma reação armada por parte das ss, e mesmo popular, que inevitavelmente viria. O espectro de uma guerra civil desenhava-se com nitidez no horizonte.

Mesmo levando em conta tais implicações, a oposição ao nacional-socialismo, que existia em caráter embrionário desde 1934, agrupando alguns militares de alta patente e líderes civis, tornara-se a cada dia mais atuante e abrangente com o desenrolar da guerra, mormente após os seguidos reveses sofridos pelo exército alemão.

No período 1942-1943, não se pôde contabilizar nenhuma vitória estratégica alemã. No Leste, a derrota de Stalingrado custara mais de 250 mil soldados alemães, entre mortos e prisioneiros; e o fracasso da ofensiva de Kursk pôs em perigo toda a Frente Oriental, que só pôde se estabilizar ao longo do rio Dnieper,
após longa retirada, próximo do ponto de partida da ofensiva alemã em 1941, à custa de outros 250 mil homens. No Mediterrâneo, os Aliados expulsaram as forças do Eixo do norte da África, com a captura de 130 mil soldados alemães; a ilha da Sicília fora ocupada; e a própria Itália invadida com sucesso, o que acarretou a capitulação do exército italiano e obrigou a Alemanha a enviar um novo grupo de exércitos para assegurar a defesa da península.

Os conspiradores usaram os argumentos óbvios de uma derrota militar que se poderia postergar, mas não adiar, para procurar, com sucesso, atrair o maior número de oficiais graduados para sua órbita. Curiosamente, os oficiais contatados serviam na Administração Geral do Exército e no Exército de Reserva, que se sediavam na Alemanha ou exerciam comandos na Frente Ocidental. No Leste, onde a luta contra os russos era mais acirrada, relativamente poucos contatos foram feitos.

De qualquer forma, esposavam a firme crença de que deveriam livrar-se de Hitler para assegurar a sobrevivência da Alemanha.

No entanto, para obter o indispensável apoio popular, era essencial envolver aqueles que gozavam de prestígio junto ao povo. O marechal de campo Erwin Rommel era indubitavelmente o general mais popular e mais respeitado em toda Alemanha, em razão das grandes qualidades pessoais e militares que detinha.

Assim, um Rommel cada vez mais desiludido com a postura irracional de Hitler, e mais preocupado com o futuro de sua pátria, foi abordado pelos conspiradores pela primeira vez em fevereiro de 1944.

Em uma reunião em sua casa, em Herrlingen, o dr. Karl Strölin, prefeito de Stuttgart, seu velho companheiro de armas durante a Primeira Guerra Mundial e também, como Rommel, originário do estado de Württemberg, pôs o marechal a par da conspiração que se tramava. Foi enfático ao afirmar que enquanto Hitler estivesse à frente da Alemanha, os Aliados jamais chegariam a qualquer acordo político. Até que se operasse sua destituição não se poderia esperar qualquer política nova com relação à Alemanha.

A questão do afastamento de Hitler do poder foi longamente debatida. Inteirando-se dos planos e complôs anteriores para o assassinato do ditador, Rommel não se deixou empolgar. Não concordava com a ideia de uma execução sumária, dada a tendência de transformar a vítima em mártir. Preferia que o Führer fosse deposto, com o apoio de um regimento Panzer de confiança, e submetido a um julgamento, em que se mostraria ao povo alemão a destruição inútil causada pelo seu líder. Mesmo confrontado pela ponderação de que o maior perigo na remoção de Hitler era a sublevação popular quase inevitável, a que se acrescentaria a reação armada das ss, o marechal não vacilou em sua convicção.

Finalmente, diante da afirmação de Strölin: “Você é nosso general mais respeitado e, no exterior, você é mais respeitado do que qualquer um de nossos comandantes. Você é o único que pode impedir a guerra civil na Alemanha. Você tem que emprestar seu nome ao movimento”, Rommel, após meditar por alguns momentos, declarou: “Creio ser meu dever sair em socorro
da Alemanha”.

As palavras de Rommel foram entendidas como sendo um acordo tácito. Ficou subentendido entre os conspiradores que ele aceitaria o encargo de ser o comandante em chefe do exército, e mesmo assumiria o posto de chefe interino do novo governo, que se instalaria na Alemanha pós-Hitler.

Nem uma palavra lhe foi revelada acerca do novo complô que se tramava contra a vida do Führer, que redundaria no atentado de 20 de julho de 1944.

Em decorrência da entrevista, Rommel, com a aquiescência e apoio de seu subordinado de maior confiança, general Hans Speidel, chefe do estado-maior do Grupo de Exércitos B, que compartilhava das suas concepções, passou a contatar vários oficiais comandantes, a fim de discutir o futuro da Alemanha. Entre eles, os generais Alexander von Falkenhausen e Karl Heinrich von Stülpnagel, respectivamente governadores militares da Bélgica e da França, seus velhos companheiros da Escola de Infantaria de Dresden.

Suas ideias podem ser assim resumidas:

1. Até a invasão da França pelos Aliados, a única frente ativa da Alemanha era no Leste. Um golpe de estado poderia motivar o colapso dessa frente, e permitir que os russos se apoderassem da Europa Central sem que os Aliados se encontrassem em condições de detê-los.

2. Na primavera de 1944, não existiam ainda condições psicológicas para uma revolta militar em larga escala, pois as tropas e a maior parte dos oficiais que se encontravam na França estavam convencidas de que os Aliados poderiam ser repelidos, enquanto os que se encontravam a leste acreditavam que os russos seriam detidos pelas novas armas (caças a jato, tanques pesados e armas secretas), que a propaganda não cessava de anunciar.

3. Se a Alemanha conseguisse de fato repelir a invasão, os Aliados recuariam na Fórmula de Casablanca, com medo de que a Rússia ocupasse toda a Europa ou que a Alemanha lançasse nova ofensiva contra os russos. Essa era a última oportunidade de impor uma paz com condições ao inimigo, e uma oportunidade que a Alemanha não poderia perder em hipótese alguma.

Portanto, a invasão aliada da França deveria ser decididamente repelida, para que o Ocidente, diante do fato consumado de sua derrota, aceitasse a ideia de combater o comunismo ao lado de uma Alemanha renovada.

“Sonho de uma noite de verão”, mas sonho que Rommel procurou transformar em realidade.

E a esse objetivo aferrou-se o marechal com todas as suas forças. Sua determinação em assegurar a defesa da França, com o fortalecimento contínuo da “Muralha do Atlântico”, até então uma mera peça de propaganda; a execução das medidas destinadas a impedir o sucesso de um desembarque aeroterrestre, com a distribuição de numerosos postes altos munidos de granadas interligadas, nas zonas de retaguarda; a crescente instalação de campos minados, com mais de 5 milhões de minas posicionadas, junto com a colocação de cerca de 517 mil obstáculos diretamente nas praias; e seu empenho em colocar as divisões Panzer o mais próximo possível das zonas de desembarque a fim de impedir a consolidação das cabeças de ponte aliadas mediante um contra-ataque maciço, não vacilou um minuto.

A despeito da frequência com que chegavam ordens, contraordens e diretrizes operacionais irracionais, despejadas pelo sistema de comunicação de Berlim, ele entregou-se com lealdade e profundo empenho à tarefa imediata de repelir a invasão.

Seu plano para se opor à invasão visava reduzir o êxito inicial do adversário, que contava com grande superioridade aereonaval e com a vantagem de poder concentrar suas forças terrestres em um ponto focal. “A invasão deverá ser detida nas praias. As primeiras 24 horas serão cruciais. Este será o mais longo dos dias”, eram as palavras que traduziam a concepção estratégica de Rommel.

Uma vez vencida a batalha contra os Aliados, com a invasão repelida, o marechal buscaria uma paz negociada com o Ocidente e ordenaria a prisão de Hitler para conduzi-lo perante um tribunal alemão.

Daí em diante, e até que se alcançasse o fim almejado, Rommel teve que palmilhar um duplo caminho, comportamento completamente avesso à sua formação. Obrigado a combater em dois planos diametralmente opostos, procurou desempenhar-se a contento em ambos. Tudo fez para retardar o máximo possível a derrota inevitável, quando encarnou o chefe militar que procura com todas as suas forças deter o inimigo; e concedeu tempo para que se tirassem as lógicas conclusões políticas e agissem, quando encarnou um homem que, sentindo-se responsável pelo seu povo, aguarda o momento em que precisará salvá-lo.

Rommel, em conversas com os generais Speidel e von Stülpnagel, chegou mesmo a aprovar um rascunho do que seria um memorando de armistício a ser apresentado aos Aliados. Ao mesmo tempo, o fortalecimento da Frente Francesa prosseguia com o máximo empenho.

Fatidicamente, todos os acontecimentos escaparam ao planejado.

Os Aliados desembarcaram nas praias da Normandia em 6 de junho, bem cedo, com a maré baixa. A reação alemã foi lenta. O próprio Rommel encontrava-se em sua casa de Herrlingen para comemorar o aniversário de sua esposa. Ausentara-se na véspera, confiando em informações meteorológicas adversas. Lê-se em seu diário: “5-8 de junho de 1944. O receio de uma invasão durante este período diminuiu pelo fato de as marés não serem favoráveis e sobretudo por não ter havido muitos reconhecimentos aéreos”.

A partir de 9 de junho, firmemente instalados no continente numa cabeça de ponte contínua que alcançava 10 km de profundidade, os Aliados tomaram a iniciativa do combate. Os alemães já não mais atacavam em direção da costa para repeli-los, passaram a lutar para defender-se. Havia soado a hora decisiva da passagem para a defensiva.

Enquanto a situação na França deteriorava-se rapidamente, as ordens de Berlim eram sempre as mesmas: “Manter o terreno a qualquer custo. Não ceder um palmo. Nenhum recuo”. Convencido da inutilidade de continuar a luta, Rommel chegou a indagar a Hitler numa conferência de comando em 28 de junho, de que modo ele pensava ainda vencer a guerra, ao que obteve a ríspida resposta que se ocupasse com seus próprios problemas.

Finalmente, a 15 de julho enviou um relatório final a Hitler, através da cadeia hierárquica de comando, em que expunha sem meias palavras a situação:

Nessas circunstâncias, temos que esperar que, num futuro próximo, o inimigo conseguirá penetrar nossa tênue frente, […] e adentrar profundamente a França. Os soldados, por toda parte, estão lutando heroicamente, mas a luta, por muito desigual, aproxima-se do fim. É urgentemente necessário que se tirem as conclusões adequadas desta situação. Como Comandante em Chefe do Grupo de Exércitos, sinto-me obrigado, por questão de dever, a falar claramente sobre este ponto.

Confidenciou ao general Speidel que dera a Hitler a última chance de agir. Se não o fizesse, então ele, Rommel, concluiria um armistício. Mas era tarde demais.

O drama que se desenrolava a Oeste atingiu seu auge.

Em 17 de julho, quando retornava de uma visita de inspeção ao grupo Panzer Oeste, aviões de caça britânicos metralharam seu carro de comando, fazendo-o capotar. Por uma ironia do destino, o acidente ocorreu nas vizinhanças da aldeia de Sainte-Foy-de-Montgomery.3 Os ferimentos de Rommel foram tão sérios que se chegou a pensar que ele não sobreviveria. Com fratura dupla de crânio, um maxilar fraturado e ferimentos generalizados, foi levado para um hospital de campanha, nos arredores de Paris.

Enquanto estava hospitalizado, sem que ele soubesse, os conspiradores tentaram assassinar Hitler. Partiram da premissa básica de que o êxito do atentado contra sua vida era a única forma de desvincular todos os militares do juramento pessoal de fidelidade.

O coronel conde Claus von Stauffenberg, chefe do estado-maior do exército de reserva, transportou uma bomba-relógio em sua pasta para uma conferência no Q-G do Führer, em Rastenburg. Posicionou-a debaixo da grande mesa de conferências, para que explodisse em poucos minutos, enquanto se ausentava, chamado por um pretenso telefonema.

A força da explosão foi absorvida pelo grosso caibro que servia de suporte para a mesa, tornando-a menos mortífera. Também as frágeis tábuas de madeira da construção, improvisada para que os ocupantes pudessem suportar o sufocante calor do verão, cederam ao primeiro impacto e fizeram voar o telhado, amortecendo as ondas de choque. Quatro pessoas haviam morrido, mas Hitler recebera apenas ferimentos leves. O atentado de 20 de julho fracassara.

Como fracassou também a tentativa dos conspiradores em tomar as rédeas do governo. Na chamada Operação Valquíria, que se seguiria à morte de Hitler, o exército deveria assumir o poder executivo na Alemanha, procedendo à nomeação emergencial de autoridades militares e à ocupação de todas as posições-chave do governo. Com boatos contraditórios sobre a morte do Führer, o movimento golpista sofreu uma súbita paralisação, com os oficiais comandantes recusando-se a agir sem uma clara confirmação do ocorrido. No Ministério do Exército, onde os conspiradores se reuniam, acumulavam-se interpelações, boatos desencontrados, críticas e, sobretudo, a incapacidade de agir prontamente em uma emergência. O momentum do golpe passara.

Seguiu-se a sede de vingança por parte de Hitler. A onda de prisões atingiu sete mil pessoas; e a execução por enforcamento de numerosos oficiais superiores, inclusive generais alemães, por traição ao juramento de fidelidade prestado, tornou-se constante.

O general von Stülpnagel, interrogado em seu leito de morte, pronunciou o nome de Rommel. A conclusão inevitável seria tirada.

Contrariando as expectativas médicas, Rommel recuperou-se, embora lentamente, dos ferimentos sofridos. No dia 3 de agosto, a rádio informou de modo conciso que ele fora vítima de um acidente de automóvel na França. Foi transferido para sua casa em Herrlingen, a 8 de agosto, para completar a recuperação.

Havia um silêncio opressivo no Q-G de Berlim, e ele logo percebeu que sua casa estava sob severa vigilância policial.

Em conversa com seu filho Manfred, desabafou:

Stauffenberg estragara tudo, um soldado de primeira linha teria acabado com Hitler […]. O atentado contra Hitler foi estúpido. O que devíamos recear neste homem não eram seus atos, mas a aura que o cercava aos olhos do povo alemão. A revolta não devia ter início em Berlim, mas no Ocidente. Que podíamos nós esperar alcançar com ela? A esperada ocupação americana e britânica da Alemanha transformar-se-ia numa marcha sem oposição, os ataques aéreos cessariam e os americanos e os ingleses manteriam os russos fora da Alemanha. Quanto a Hitler, o melhor que se poderia ter feito era apresentar-lhe um fato consumado.

Em 7 de outubro, Rommel recebeu uma ordem para apresentar-se ao Q-G de Berlim, aparentemente para discutir uma nova nomeação para a Frente Leste, a única em que não havia atuado. Recusou-se, alegando seu precário estado de saúde para empreender uma viagem tão longa.

“Jamais chegaria lá vivo”, confidenciou a seu ajudante de ordens.

Numa visita a seu velho amigo e companheiro de regimento, tenente-coronel Oskar Farny, a 12 de outubro, falou claramente: “Estou correndo um sério perigo. Hitler deseja livrar-se de mim. Seus motivos são o ultimato que lhe enviei no dia 15 de julho, as opiniões sinceras e honestas que sempre apresentei, os acontecimentos de 20 de julho e os relatórios do Partido e da Polícia Secreta. Se algo ocorrer comigo, peço-lhe que se encarregue do meu filho”.

Fora premonitório.

Em 14 de outubro, recebeu em Herrlingen os generais Wilhelm Burgdorf e Ernst Maisel, encarregados das apurações militares do atentado, que em uma reunião particular lhe comunicaram os termos de Hitler. Acusado de alta traição por seu comprometimento no atentado de 20 de julho, bem como por ser o indicado para futuro chefe de estado, se o complô obtivesse sucesso, Rommel teria uma escolha. Ou iria a Berlim para se submeter a um Tribunal Popular ou se suicidaria.

Se escolhesse a primeira alternativa, seria obviamente condenado à morte como traidor e sua família iria para um campo de concentração. Se a escolha fosse a segunda, os generais asseguraram-lhe que o Führer autorizaria um funeral com honras de Estado e que sua família estaria a salvo. Ele tomou sua decisão.

Imediatamente após a entrevista, o marechal comunicou à esposa e ao filho: “Vim despedir-me. Dentro de 15 minutos estarei morto”.

Envergando seu uniforme do Afrikakorps e empunhando seu bastão de marechal de campo, embarcou no carro com os generais. À pequena distância de casa, ingeriu a cápsula de veneno que lhe fora entregue. Chegou morto ao hospital de Ulm, onde um atestado de óbito manipulado apontou a causa de sua morte como “um ataque de embolia”.

Completara-se a grande farsa. O marechal de campo mais popular da Alemanha morrera no cumprimento do dever, em defesa da pátria.

Rommel não poderia mais impedir o Götterdammerung.

*

(Primeiro capítulo do livro “Rommel – a raposa do deserto”)

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