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Elizabeth Bishop e os intermináveis anos 1960 | Ronai Rocha

“Pergunte à Hannah Arendt!”

Elisabeth Bishop escreveu, no dia 14 de abril de 1964, que Raymond Aron foi a única pessoa que entendeu as coisas que se passavam no Brasil, naquela época. Na mesma carta ela sugere ao interlocutor, Robert Lowell, “pergunte à Hannah Arendt!”, ela dirá que sim, “se ela sabe alguma coisa sobre o Brasil”, acrescenta Bishop.

Vamos por partes.  Raymond Aron teve presença regular nos meios intelectuais brasileiros naqueles anos. Ele publicava crônicas na imprensa brasileira e seu livro, O ópio dos intelectuais, foi publicado aqui em 1959 sob o título de Mitos e Homens. Sua ligação era com alguns participantes do ISEB, o Instituto Superior de Estudos Brasileiros. Aron veio ao Brasil em 1962 e deu uma palestra no Rio de Janeiro, na Faculdade Nacional de Filosofia. A Folha de São Paulo registrou um trecho da fala dele:

A luta de morte entre esquerda e direita só ocorre nos países ainda não desenvolvidos, onde o desenvolvimento se confunde com problemas políticos e sociais e o grau de intensidade das lutas ideológicas aumenta em consequência de suas próprias divergências. [1]

Parece que Aron, um conhecido crítico do marxismo, entende de Brasil até hoje. Muitos intelectuais naquele período não se filiavam ao marxismo: Álvaro Vieira Pinto, Guerreiro Ramos, Djacir Menezes, Hélio Jaguaribe, Paulo Freire e muitos mais. Álvaro Vieira Pinto não apenas não se alinhava com as esquerdas como era francamente hostilizado por elas, pois defendia ideias nacionalistas e desenvolvimentistas e recusava o enfoque marxista. Não sou eu quem diz isso, pois o atestado de pureza idealista que o livro recebeu foi passado por um legítimo filósofo francês, Gerard Lebrun, em um artigo na Revista Brasiliense, em 1962. Guerreiro Ramos nunca poupou críticas aos marxistas e comunistas, a quem gostava de chamar de “sectários”, prisioneiros da “servidão intelectual” do “marxismo-leninismo’. Paulo Freire, em seus dois primeiros escritos, Educação e Atualidade Brasileira, de 1959, e Educação como Prática de Liberdade, de 1965, cita com aprovação autores que eram identificados como críticos do marxismo, como Karl Popper, Zevedei Barbu, Tristão de Athayde, Guerreiro Ramos e Vieira Pinto.

A partir de 1964 a coisa toda muda. Como sugere Zuenir Ventura, os anos 1960 não terminam nunca de terminar. Como lembra Miguel Arão, nos anos 1960 havia setores dedicados à causa da democracia, havia também segmentos que não eram “apaixonados pela democracia”, que levantavam bandeiras que iam além da derrubada da ditadura. Quanto às relações de Bishop com Hannah Arendt, trocaram bilhetes e, aparentemente, Bishop apreciava as opiniões dela sobre política, como revela nas cartas.

“Pode haver uma guerra civil”?

Bishop morou muitos anos no Brasil e escreveu cartas nas quais faz uma descrição do ambiente anterior ao golpe que impressionou muita gente, incluindo Caetano Veloso, que disse ter sido assombrado pela a diferença de perspectivas, pois, em um país no qual se pensava que todos os intelectuais eram de esquerda, Bishop exultava com as passeatas da direita e com o golpe de Estado. A sensação descrita por Bishop é de que “pode haver uma guerra civil”, como dirá mais tarde Robert Schwarz. A descrição que ela faz do golpe em uma carta é essa:

O presidente Goulart foi longe demais. Um punhado de generais corajosos e os governadores dos três estados mais importantes juntaram forças, e depois de 48 horas de tensão tudo terminou. (…) As reações foram realmente populares, graças a Deus. A passeata anticomunista que já estava planejada acabou sendo a comemoração da vitória – mais de 1 milhão de pessoas debaixo de um aguaceiro. Foi tudo espontâneo, e não é possível que fossem todos reacionários direitistas ricos! (…).

Essa percepção da poetisa foi uma lição para Caetano, pois ele achava, em 1964, que “a esquerda parecia se compor de todos os brasileiros que merecessem sê-lo”, e os estudantes “ou eram de esquerda ou se calavam”. (Veloso, 1997: 15) Caetano lembra que Otto Maria Carpeaux, que veio para o Brasil fugindo de Hitler, dizia que aqui no Brasil “quase todo mundo era de esquerda”. O exagero disso foi notado por Roberto Schwarz, no ensaio “Cultura e Política, 1964-1969”, onde ele escreveu que a hegemonia da esquerda ficava restrita aos “santuários da cultura burguesa”. Essa afirmação era uma das premissas de seu famoso ensaio. Transcrevo o parágrafo inicial:

Em 1964 instalou-se no Brasil o regime militar, a fim de garantir o capital e o continente contra o socialismo. O governo populista de Goulart, apesar da vasta mobilização esquerdizante a que procedera, temia a luta de classes e recuou diante da possível guerra civil. (Schwarz, 2008, 71)

O ensaio de Schwarz começa com algumas qualificações do governo de Goulart que são lugares comuns em descrições à esquerda e à direita: o governo era “populista”, era autor de “mobilização esquerdizante”, receava a “luta de classes” e uma “possível guerra civil”. O parágrafo segue descrevendo a “vitória da direita”, diante da “passividade do povo”. Depois de fazer a lista das medidas de exceção tomadas pelo regime militar, como a intervenção em sindicatos, os expurgos nas fileiras do Exército e nas universidades, a dissolução de organizações de estudantes, o começo da censura na imprensa, o fim do habeas corpus e outras ainda, segue-se a conclusão:

Entretanto, para surpresa de todos, a presença cultural da esquerda não foi liquidada naquela data, e mais, de lá para cá não parou de crescer. A sua produção é de qualidade notável nalguns campos, e é dominante. Apesar da ditatura da direita, há relativa hegemonia cultural da esquerda no país. Pode ser vista nas livrarias de São Paulo e Rio, cheias de marxismo, nas estreias teatrais, incrivelmente festivas e febris, às vezes ameaçadas de invasão policial, na movimentação estudantil ou nas proclamações do clero avançado. Em suma, nos santuários da cultura burguesa a esquerda dá o tom. (Schwarz, 2008: 71)

O “marxismo desdentado”

Schwarz foi um crítico do Partido Comunista (PC), que, segundo ele, se alinhava com uma “espécie desdentada e parlamentar de marxismo patriótico”.

Se o PC teve o grande mérito de difundir a ligação entre imperialismo e reação interna, a sua maneira de especificá-la foi seu ponto fraco, a razão do desastre futuro de 1964. (Schwarz, 2008: 75)

Ao completar essa crítica do Partido Comunista – que era mais anti-imperialista do que anticapitalista – Schwarz faz uma frase notável: o PC “chegou despreparado à beira da guerra civil”. Havia mesmo chance de uma guerra civil, então?

O ensaio de Schwarz tornou-se uma referência incontornável nos debates sobre a vida cultural do período, em especial, devido aos exemplos de hegemonia cultural e dos movimentos que ele qualificou como ambíguos ou como extravios de nossa vida cultural no período. O ensaio de Schwarz não terminou até hoje de ter consequências, como se vê na polêmica dele com Caetano Veloso, que começou em 1970 e dura até hoje. Essa polêmica, que dura até hoje, pode ser vista como um exemplo das dificuldades de relato sobre o que aconteceu nos anos 1960-1970, sobre as dificuldades que temos com a descrição de alguns fatos e figuras importantes daquele período, como ocorre agora, em novembro de 2019, com Elizabeth Bishop. Isso inclui também figuras como Paulo Freire, citado como modelo tanto por Caetano quanto por Schwarz, por razões diferentes.

Já adiantei um ponto importante no ensaio de Schwarz, o diagnóstico sobre a falta de dentes no marxismo brasileiro. A “intelectualidade socialista”, em 1964, “grosso modo, foi poupada” da prisão e da tortura. “Torturados e longamente presos foram somente aqueles que haviam organizado o contato com operários, camponeses, marinheiros e soldados”. Entre 1964 e 1968, lembra ele,

o governo Castello Branco não impediu a circulação teórica ou artística do ideário esquerdista, que embora em área restrita floresceu extraordinariamente. (Schwarz, 200: 72)

A “liga das pudibundas”

O marxismo brasileiro pouco mudou nesse período. Em um extremo estavam “os simulacros cristãos do marxismo”, cuja expressão maior havia sido o Movimento de Cultura Popular (MCP) no Recife. Desde 1959, Miguel Arraes  havia sido líder de uma mobilização em torno da alfabetização de massas, pois isso, entre outras vantagens, poderia fazer com que elas votassem nele. Na época, o analfabeto não votava e eles eram metade da população. O MCP era “de inspiração cristã e reformista” e sua grande expressão foi Paulo Freire. Foi, como escreve Schwarz, “a fase mais interessante e alegre da história brasileira recente(…)”. Essa fase, interrompida pelo golpe de 1964, deu lugar a outra “camada geológica do país”, caracterizada pelos “sentimentos arcaicos da pequena burguesia”, pelos “tesouros de bestice rural e urbana”, pela “revanche da província, dos pequenos proprietários, dos ratos de missa, das pudibundas, dos bacharéis em leis, etc”. Houve uma “regressão”, uma “falta de contato com o que se passa no mundo”, pois, para esse Brasil arcaico, a célula da nação é a família, o Brasil é altivo, e nossas tradições, cristãs”. A “liga dos vencidos”, no entanto, não conseguiu se impor naquela época, pois havia, de um lado, a hegemonia da esquerda, e, de outro, o modernismo possível para os militares no poder. Foi nessa cena de arcaísmos provincianos e planejamentos modernos, de “anacronismo social, de cotidiana fantasmagoria”, que surgiu o movimento tropicalista:

Arriscando um pouco, talvez se possa dizer que o efeito básico do Tropicalismo está justamente na submissão de anacronismos desse tipo, grotescos à primeira vista, inevitáveis à segunda, à luz branca do ultramoderno, transformando-se o resultado em alegoria do Brasil. (Schwarz, 2008: 87)

O tropicalismo, resume o autor, foi um movimento ambíguo porque nele ficava “incerta a divisa entre sensibilidade e oportunismo, entre crítica e integração”, na medida em que ele conjugava “crítica social violenta e comercialismo atirado”. O lugar social do Tropicalismo não era fácil de ser caracterizado. De um lado trazia um “alento desmistificador e esquerdista”, de outro esgotava-se em um “esnobismo de massas” e indicava uma posição de classe. Ou, dizendo de outra forma, indicava um descompromisso com alguma inspiração ao menos cristã e reformista. Nessa altura do ensaio, Schwarz retornou ao elogio de Paulo Freire, cristão e reformista, comparando-o ao Tropicalismo:

(….) o efeito tropicalista tem um fundamento histórico profundo e interessante: mas é também indicativo de uma posição de classe, como veremos agora. Voltando: por exemplo, no método Paulo Freire estão presentes o arcaísmo da consciência rural e a reflexão especializada de um alfabetizador; entretanto, a despeito desta conjunção, nada menos tropicalista do que o dito método. Por quê? Porque a oposição entre os seus termos não é insolúvel: pode haver alfabetização. Para a imagem tropicalista, pelo contrário, é essencial que a justaposição de antigo e novo – seja entre conteúdo e técnica, seja no interior do conteúdo – componha um absurdo (…). (Schwarz, 2008: 87)

Caetano escreveu que o texto de Schwarz era “uma versão complexa e aprofundada da reação desconfiada que a esquerda exibia contra nós” e deixou claro que os tropicalistas foram rejeitados por nomes representativos na esquerda como Augusto Boal. Caetano ficou impressionado com comparação feita por Schwarz entre os tropicalistas e Paulo Freire e mais ainda com a redução do sentido do tropicalismo a um choque entre o arcaico e o moderno. Isso é empobrecedor, queixou-se.

Os desencantos de Caetano

Foi nessa época que Caetano ouviu, com boa vontade, o conselho de ler “os autores de direita”, “os pensadores de direita – os grandes”, pois, diferentemente dos autores de esquerda, estão mais abertos para o desencanto e para a dimensão trágica da vida.[2] A esquerda, ao contrário, erguia um “ideário socializante” e se fechava sobre suas certezas, que incluía a convicção que do outro lado dela, no lado de lá, a ser revolucionado, estavam os arcaísmos, os tesouros da bestice rural e urbana, os provincianos, os ratos de missa e as pudibundas. Em suma, a liga dos vencidos, a liga a ser reformada. A motivação que levava jovens, padres e intelectuais a apoiar as reformas de base era, nas palavras de Caetano, a horrenda desigualdade da sociedade brasileira, e isso era uma condição mais do que suficiente para o engajamento político e partidário contra os arcaísmos. Mas uma coisa é a motivação para lutar contra as desigualdades no varejo da vida, outra é a impaciência dos conceitos. O encurtamento da distância entre uma coisa e outra, junto às promessas de construção do “homem novo” e do futuro radiante para a humanidade por meio de revoluções culturais desencantou Caetano.

Dizendo de forma direta: a esquerda brasileira não gostava dos tropicalistas e desprezava a direita; lê-la, nem pensar. A rigor, a esquerda não gostava da política.[3] O caso de Paulo Freire foi diferente, pois ele era um cristão reformista que relutava em aceitar o ideário comunista. Aos poucos, ele foi cooptado e distanciou-se do nacionalismo isebiano em direção a um marxismo aguado e depois ao maoísmo.

O Paulo Freire que despertou alegria em Caetano Veloso é aquele anterior ao golpe de 1964. Poucas horas antes do golpe, Caetano candidatara-se a uma vaga de instrutor voluntário nos cursos de alfabetização anunciados no Rio de Janeiro. Na percepção de Caetano, a campanha de alfabetização tinha uma clareza de propósitos, visava “preparar a população para grandes transformações sociais”, as “reformas de base” e por mais que enfatizasse a “conscientização social e política dos educandos” não parecia estar ligada à “propaganda política camuflada”. Não foi essa a percepção da direita, ele acrescenta, pois a resposta dela a “essa combinação de ameaça de alfabetização acelerada e conscientização política das tradicionalmente marginalizadas classes pobres brasileiras” foi o golpe militar.  (Veloso, 1997: 309) Caetano chegou a participar de uma reunião de instrutores do método Paulo Freire no dia 31 de Março de 1964, que foi interrompida pela notícia do golpe.

Paulo Freire ou tropicalismo?

As queixas de Caetano sobre a forma como o Tropicalismo foi comparado com Paulo Freire foram respondidas por Roberto Schwarz muitos anos depois. Volto agora ao debate entre Caetano Veloso e Roberto Schwarz. Tudo começou com a surpresa de Caetano ao ver Schwarz contrapor o método de alfabetização de Paulo Freire ao tropicalismo. Longe de ser uma comparação de alhos com bugalhos, Schwarz via na proposta de Paulo Freire uma solução para o conflito entre o arcaísmo rural e o mundo moderno, por meio da possibilidade da alfabetização. Já os tropicalistas, por assim dizer, apenas faziam uma colagem, uma “conjunção esdrúxula de arcaico e moderno”.

Caetano reagiu de forma moderada a esses comentários sete anos depois, em 1997, em Verdade Tropical. A reação de Schwarz veio quinze anos depois, em 2012, na forma de uma longa e sofisticada revisão do livro de Caetano, na qual a ferradura saiu mais machucada do que o prego. Entre os elogios as muitas realizações e capacidades de Caetano, a sentença de Schwarz sobre o livro não dava margens para dúvidas. O livro continha “descaídas regressivas”, “superstições baratas”, “autoindulgência desmedida”, “desejo acrítico de conciliação”, desconversas, abdicações, generalizações descabidas. Caetano, nas palavras de seu crítico paulista, rebaixou o horizonte das expectativas, rendeu-se sutilmente ao capital e à direita, pois em algumas linhas e em muitas entrelinhas Caetano insinuou que a pessoas de direita eram menos más do que se dizia.

Alguns meses depois, em outubro de 2012, Ruy Fausto escreveu sobre o livro de Caetano e as críticas do crítico paulista.  Fausto voltou aos anos 1960, alinhou-se delicadamente ao cantor-escritor e  revisou uma agenda que a esquerda tem dificuldade em aviar: o beija-mão dos cubanos, o culto dos livros santos, a tolerância terceiro-mundista, a complacência em relação aos totalitarismos de esquerda, as ilusões sobre seu lugar de análise. Temos dificuldade, disse ele, de pensar sobre o tamanho das ilusões que tivemos no período anterior ao golpe de 1964, e até hoje – 2013 – as análises que fazemos são ortodoxas e insuficientemente críticas. Ele falou, por certo, do texto de Schwarz, mas em um tom que permite essa extensão que faço. “É verdade, sim, – ele acrescenta – que parte importante dos que lutavam contra os inimigos da democracia não tinham, no longo prazo, um projeto democrático”. Seria conveniente, ele sugere, o abandono da esfarrapada camiseta de bom-moço que a esquerda insiste em vestir: é preciso diminuir as ambiguidades, distinguir as coisas em nome das coisas, como ele disse em outro lugar.

Caetano respondeu a Schwarz alguns anos depois, no prefácio da nova edição de Verdade Tropical. Em “Carmem Miranda não sabia sambar”, Caetano expressou sua decepção com a análise de Schwarz, que sugeriu que ele era um “esquerdista tradicional que degenerou em colaboracionista regressivo”. Schwarz foi considerado por Caetano como um prisioneiro da “grande religião marxista”, membro da “ultrapassada onda esquerdista”.  Não vou entrar aqui nos detalhes da resposta de Caetano, na qual ele descreve alguns passos do que chama de seu “aprendizado liberal”. Lembro apenas um episódio. Em uma estação de televisão na França, onde ele dava uma entrevista, depois de comentar que “tudo é política”, ouviu a seguinte observação de uma pianista que por ali estava: “Dizer que tudo é política é invadir minha intimidade. Há coisas que não são políticas e não devem ser tomadas como tal”. “Era uma observação sensata, que aprendi a respeitar”, ele acrescentou.

O custo da complacência

Ao contrário do que se costuma pensar, os anos 1960 estão longe de bem caracterizados e compreendidos, algumas das situações ali vividas são feridas abertas. Precisamos voltar a esse período para compreender melhor certos aspectos da situação política brasileira atual, em especial, nossas dificuldades em relação aos valores da democracia. O ponto foi bem resumido por José Murilo de Carvalho:

(…) em 1964 a convicção democrática era tênue tanto na esquerda como no centro e na direita. Nossos liberais não hesitavam em recorrer às Forças Armadas para derrubar o governo. Nossa esquerda não valorizava os métodos democráticos de promover a reforma social. A democracia política era vista com desconfiança pelos reformistas sociais, assim como a democracia social não era tida pelos liberais como condição de sustentação da própria liberdade. (Carvalho, 2019: 182)

Há hoje, por assim dizer, um retorno do reprimido, uma luta por reconhecimentos, que exige pensar sobre coisas que tem ficado fora de discussão. A benevolência, a tolerância, a complacência, o silêncio e uma etiqueta autoindulgente abriram o flanco por onde passaram sem dificuldade as tropas conservadoras de todo corte e feitio que Bishop, Schwarz e Caetano, cada um a seu modo, viram muito claramente.

Há quem diga que a História tem lata de lixo, há quem pense que a História não tem inconsciente. Sei não. Tudo isso, Bishop incluída, ainda não está bem passado, nem sujo nem limpo. Mais do que uma homenagem, a escolha da Flip pode ser uma contribuição importante para uma conversa que está longe de terminar, sobre quem colabora com o quê com o recorrente lema, “sobre isso não se deve falar”.


Ronai Rocha é doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), onde foi pró-reitor de graduação. Desde o início de sua vida profissional pesquisou temas ligados à educação. Pela Contexto é autor do livro Quando ninguém educa.


Notas: 

[1] Folha de S. Paulo, dia 15.09.1962, p. 19.

[2] A sugestão lhe foi feita por Zé Almino, filho de Miguel Arraes: “Mas o que me marcou mais fundo foi ouvi-lo dizer, numa conversa animada sobre o brilho das entrevistas de Borges e Nelson Rodrigues, que era preciso ler os autores de direita – e que o dever da razão era alcançar e acolher o irracional, e não bani-lo”. Veloso, 1977, p. 450. Vale registrar aqui que esse tema, a abertura da esquerda para o trágico, foi muitos anos depois desenvolvido por Timothy Clark em um ensaio, Por uma esquerda sem futuro, especialmente dedicado ao público brasileiro. Ver Clark, 2013.

[3] Isso é um segredo da carochinha. Não apenas a democracia não era muito valorizada na literatura da esquerda da época (apresentei esse ponto em Rocha, 2017), mas também o trabalho miúdo da política. Como diz Clark, “os intelectuais de esquerda, como a maioria dos intelectuais, não são bons políticos; especialmente se entendermos por política (…) os detalhes comezinhos, o trabalho sem lustro e sem o brilho da performance”. Ver Clark, 2013, p. 1. No horizonte da esquerda, sugere Clark, deveriam estar o abandono das previsões arrogantes e irrealistas sobre o fim próximo do capitalismo e a própria questão do capitalismo deveria ser “deixada temporariamente de lado”. Caetano foi um corpo estranho na esquerda brasileira porque fez parte de uma geração que começou a desconfiar desse jargão. Era, como se dizia na época, um “alienado”. Veja, por exemplo, Verdade Tropical, p. 114: “Minha atitude reticente em face das certezas políticas de meus amigos suscitava neles uma irônica desconfiança. Eu era um desses temperamentos artísticos a que os mais responsáveis gostam de chamar de ‘alienados’”.


Bibliografia:

  1. Bishop, Elizabeth. Uma arte: as cartas de Elisabeth Bishop. Tradução de Paulo Henrique Britto. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.
  2. Carvalho, José Murilo. Forças Armadas e política no Brasil. São Paulo. Todavia, 2019.
  3. Cavalcanti, Pedro Celso Uchoa & Ramos, Jovelino, Org. Memórias do Exílio. Brasil, 1964-19??. São Paulo: Editora Livramento, 1978;
  4. Chauí, Marilena. Cultura e Democracia, Ed. Moderna, 1980.
  5. Clark, T. J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo, Editora 34, 2013.
  6. Coelho, Germano. História do Movimento de Cultura Popular. Recife. Ed. Do Autor, 2012.
  7. Corção, Gustavo. O Século do Nada. Rio de Janeiro. Editora Record, 1973.
  8. Paiva, Vanilda. Paulo Freire e o nacionalismo-desenvolvimentista. Rio de Janeiro. Ed. Civilização Brasileira-Edições UFC, 1980.
  9. Rocha, Ronai. Quando ninguém educa. Questionando Paulo Freire. São Paulo: Editora Contexto, 2017.
  10. Schwarz, Roberto. Martinha versus Lucrécia. Ensaios e entrevistas. São Paulo. Companhia das Letras, 2012.
  11. Schwarz, Roberto. O pai de família e outros estudos. São Paulo. Companhia das Letras, 2008.
  12. Tavares, Flávio. As três mortes de Che Guevara. Porto Alegre. L&PM, 2017.
  13. Veloso, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo. Companhia das Letras, 1997.
  14. Veloso, Caetano. Verdade Tropical. São Paulo. Companhia das Letras, 2017.
    Ventura, Zuenir. 1968. O ano que não terminou. Rio de Janeiro, Editora Nova Fronteira, 1988.