“Meu filho não gosta de ler.” A frase é dita com dor nos lares. Na sala de aula, o drama se repete. Você leva um texto que o seduz há anos para a turma, fala dele e… nada. Os alunos continuam indiferentes e o tédio é entrecortado por suspiros lânguidos e consultas ao celular. Só quem deu aulas para adolescentes sabe da cara de natureza-morta que alguns conseguem mostrar. Como fazer alguém tornar-se um bom leitor?
Vou começar com uma aparente heresia: ler não é fundamental para ser feliz. Duvida? Recomendo uma terapia de choque: frequente uma reunião de departamento de qualquer centro de Humanas. Lá encontrarão pessoas que fazem da leitura seu dia a dia, seu ganha-pão e sua vocação. Examinem o ambiente e as frases por meia hora e retornem aos lares: eis uma vacina poderosa e permanente para evitar a associação entre livros e alegria existencial. Ler não nos torna mais felizes. É interessante notar que o estereótipo da bibliotecária em todos os filmes e romances é de uma mulher amarga, de óculos, imersa na obsessão do silêncio. Vivendo em meio a livros, ela não deveria ser feliz?
Conhecimento é poder, reza a máxima atribuída a Francis Bacon, o afamado Chico Toicinho. A base de todo processo é a curiosidade. A leitura é o efeito, não a causa da curiosidade.
Uma parte da elite brasileira fixou-se no saber formal de textos clássicos. Homero e Dante são impactantes e transformaram a minha vida. Por isso me sinto livre para dizer: eles são um caminho, não o caminho. Insisto: o cerne do sucesso e da inteligência é a curiosidade, a inquietação, a busca e a insatisfação. A Ilíada me transformou, no entanto o importante está no caminho que me levou até ela. Como entendê-lo?
O primeiro passo para pais e professores é superar a ansiedade. Querer empurrar legumes e falar que premiará com doces é o caminho seguro para ressaltar que o doce é bom e o vegetal, ruim. Conselhos são medidos pela minha identificação com quem os fornece e pelo resultado que observo no conselheiro. Uma pessoa interessante, ao dizer que livros são fundamentais, terá maior chance de ser ouvida do que outra à beira da histeria: “Você precisa ler!”.
Posso apoiar a leitura de Harry Potter ou de Paulo Coelho? Estou convencido que sim. Podemos dar adaptações de clássicos facilitados para jovens leitores ou as boas histórias em quadrinhos sobre Shakespeare? Nada impede. O filme sobre o livro pode ajudar? É claro! Apenas não pode substituir.
A personalidade do leitor fala antes dele e funciona como um outdoor. É como o corpo de quem nos dá pistas sobre dieta ou suplementos alimentares: olhamos para o físico de quem fala mais do que ouvimos. A primeira pergunta honesta a fazer a todo autor de textos do estilo “você pode ficar rico” é saber se o autor possui o capital que imagina ensinar outros a adquirir.
Aqui uma observação complexa. Muitos pais intelectuais geram filhos com aversão à leitura. Santo Freud! Os tomos eram, para a criança, as entidades que subtraíam seu pai e sua mãe do convívio. Livros eram inimigos! A biblioteca ou o escritório eram espaços vampirescos que drenavam a atenção de meus pais. Como amar um concorrente desleal?
Como valorizar conhecimento se ele foi usado para constranger? Correções gramaticais ríspidas, humilhações diante de uma ignorância tópica ou impaciência com lentidão de aprendizado vão dirigir a dor do jovem para o saber e seus usuários. Como adquirir o desejo de aprender se o resultado é virar uma pessoa chata? Conhecimento deve libertar, ampliar horizontes, ajudar na felicidade, clarear angústias e emocionar. Se a intenção for agredir, é mais ecológico um tapa na cara do que derrubar árvores para o papel. A propósito, isso é uma ironia e não um conselho.
Curiosidade pode ser estimulada com boas perguntas. Elas devem ser dosadas e nunca podem parecer um artificialismo didático. Phármakon (remédio e veneno): a diferença está na dose. O conceito vem da medicina antiga e de uma ideia de Jacques Derrida sobre o poder da palavra. Empurre um romance árido e com questões existenciais acima da faixa etária de uma criança e estará lançada uma fértil semente de rejeição à leitura. O lúdico sempre tem um papel central. Machado de Assis é um gênio. Imaginar que alguém de 13 anos esteja preocupadíssimo com fidelidade conjugal como estava o taciturno Bentinho é ignorar regra básica sobre jovens. A leitura não deve ser apenas o reforço do meu mundo e dos meus valores. Porém, para que ela possa alçar voo, a caminhada deve ser coerente. Haverá um dia em que o leitor já experiente vai gostar exatamente do mundo que desconhece ou que o desafia. No início, o gancho é feito pela proximidade. A um jovem que resiste à autoridade e ao conhecimento, é mais fácil indicar a identidade com Holden Caulfield, o rebelde do romance de J. D. Salinger, O apanhador no campo de centeio, do que com tísicos nos Alpes de A montanha mágica, de Thomas Mann.
Posso apoiar a leitura de Harry Potter ou de Paulo Coelho? Estou convencido que sim. Podemos dar adaptações de clássicos facilitados para jovens leitores ou as boas histórias em quadrinhos sobre Shakespeare? Nada impede. O filme sobre o livro pode ajudar? É claro! Apenas não pode substituir.
Sempre e acima de tudo: que você mostre que os livros são bons e não um fardo. Até nas faculdades damos a bibliografia e chamamos de “carga” de leitura, indicando, metaforicamente, peso e dor. Livros às mancheias porque são muito bons, jamais um peso. Ler é parte do bem viver!
Leandro Karnal é professor, historiador, graduado em História pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e doutor pela Universidade de São Paulo (USP). Leciona há 30 anos, tendo passado por ensino fundamental, médio, escolas públicas e privadas, cursinhos pré-vestibulares, universidades variadas e hoje leciona na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Trabalha há muitos anos com capacitações para professores da rede pública e publicação de material didático e de apoio para os professores. Pela Contexto publicou como autor, coautor ou organizador Estados Unidos, História da cidadania, As religiões que o mundo esqueceu, O historiador e suas fontes, História na sala de aula, História dos Estados Unidos, Conversas com um jovem professor, O Brasil no Contexto: 1987-2017 e Diálogo de culturas. Viaja bastante e observa professores e alunos em meios como comunidades indígenas no México, escolas da França, aulas no Norte da Índia, Vietnã e China. Sua meta de vida é ser lembrado como alguém que tentou ser um bom professor.