Após meu livro História da Ásia ter sido anunciado pela Editora Contexto, integrando a Coleção História na Universidade, venho tendo conversas com muitos colegas, amigos e futuros leitores. Uma mesma pergunta acaba surgindo nesses diálogos: afinal, por que estudar a História da Ásia? Creio que nunca a respondi tanto quanto nos últimos dias e achei que cabia tornar a reflexão um pouco mais pública – e espero que ela ajude a demonstrar também a importância deste livro.
Eu poderia elencar alguns argumentos de ordem mais economicista: a China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2000 e constitui, hoje, a maior economia industrial do planeta, o que traz imensas implicações em termos geopolíticos; em 2022, a Índia superou o PIB da sua antiga metrópole, a Inglaterra, tornando-se a quinta maior economia do mundo; Japão e Coreia do Sul fazem parte de um eixo econômico no Extremo Oriente no qual se concentram alguns dos maiores PIB per capita do planeta (sem contar que suas indústrias culturais já são amplamente consumidas no mundo, em especial no Brasil). Um leitor mais versado em geopolítica ainda poderia lembrar o crescimento assombroso de países como Bangladesh, Indonésia, Cingapura, Malásia e Vietnã na última década. Não é de hoje que se entende que o eixo do capital passou a girar mais rapidamente na Ásia, como acentua o geógrafo David Harvey.
Mas esse argumento talvez não seja suficiente, afinal, a História não é uma área afeita a lógicas utilitaristas.
A Ásia é o maior continente do planeta, tanto em área geográfica como em população. A imensidade demográfica é contemplada por uma pluralidade quase inesgotável de culturas, etnias, línguas e religiões distribuídas em mais de 50 países (sem contarmos as nacionalidades sem Estado). O desempenho econômico de certos países no século XXI não está homogeneamente dividido e, claro, está marcado por uma série de condicionantes históricos que retomam a era dos Impérios, de quando as grandes nações europeias disputaram o domínio não só da Ásia, mas também da África (para não falarmos também da América Latina). O livro que os leitores terão em mãos teve de passar por algumas difíceis escolhas para que pudesse ser uma leitura palatável e não apenas uma enciclopédia de fatos e datas.
A preocupação que emergiu era de que esse livro fosse dialógico. Introdutório, sim, mas sem perder densidade. Que indicasse possibilidades de pesquisas futuras e que, acima de tudo, centrasse as experiências asiáticas, para que não se fechasse nas visões que os próprios ocidentais estabeleceram sobre esse outro não ocidental. A ideia de fazer parte da Coleção História na Universidade, de ter uma linguagem acessível, de tentar auxiliar leitores não especialistas, tudo isso indica que havia um caminho a ser percorrido que não contava somente com uma questão editorial, mas também com uma questão pedagógica.
Afirmo isso com base na própria “história da História da Ásia”, que emergiu no Ocidente como um campo de especialistas. Durante o século XIX, enquanto a História tornava-se disciplina científica, o campo dos “estudos orientais”, ou do “orientalismo” afirmava a imobilidade e a homogeneidade dessa pluralidade de povos e culturas. Enquanto Jules Michelet escrevia sobre a Revolução Francesa, os ingleses afirmavam que uma prateleira de uma biblioteca europeia valia mais do que toda a literatura árabe e hindu. Enquanto Leopold von Ranke escrevia sobre a civilização europeia, James Mill evidenciava seu desprezo pelos indianos em sua História da Índia. Nesses termos, o recorte cronológico do meu livro retoma justamente o momento em que, pela força do imperialismo e pela força do discurso científico, a Ásia foi vista como objeto de dominação do Ocidente.
Nos dizeres de Edward Said, esse mundo “oriental”, fruto de uma geografia imaginária europeia, passou a povoar um imaginário ocidental contemplado na literatura, nas artes, nos filmes, nos seriados… Dessas perspectivas “orientalistas”, os historiadores podem ainda remeter ao fato de que, à medida que os temas da História da Ásia são tratados de forma episódica, muitas vezes nossos alunos se veem cercados de concepções estereotipadas sobre os diversos povos asiáticos. Desaprender essas caricaturas e desaprender nossas visões mais eurocentradas sobre a História é fundamental – e é uma árdua tarefa, que talvez este livro possa amparar nos mais diferentes níveis da educação.
Nesse ponto, tentar construir uma postura dialógica para tratar da História da Ásia não é apenas a preocupação de um docente com seu didatismo, ou de um escritor com a recepção de seu público. É também um projeto político: a complexidade das muitas histórias asiáticas é, por nós, conhecida apenas muito superficialmente. Por que não então enfrentar esse desafio para que possamos construir pontes? Trocar ideias sobre diferentes experiências históricas? Conhecer tradições historiográficas menos eurocêntricas e menos limitantes? Por que não aprendermos sobre as recepções de ideias ocidentais na Ásia, suas transformações, suas ressignificações? Se esse livro começa a partir da dominação do Ocidente sobre a Ásia, ele termina com uma série de interrogações sobre a reconstrução de vários países no século XX e XXI.
A proposta que fica ao leitor desse livro é, em certo sentido, que endosse essa preocupação dialógica, pois, para este autor, estudar História da Ásia é também estabelecer trocas, conhecer e reconhecer as muitas experiências humanas, manter nossa capacidade de nos horrorizarmos com as dominações que se impõem e de nos assombrarmos com as múltiplas formas de resistências. E que, a partir disso, outras Histórias da Ásia cheguem aqui no Brasil, no nosso mercado editorial, nas nossas salas de aula, nas nossas bibliotecas, nas nossas salas de cinema… “Que cem flores desabrochem”!
Fernando Pureza é doutor em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professor adjunto do Departamento de História da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), onde tem ministrado a disciplina de História do Oriente Contemporâneo. É membro do Grupo de Pesquisa e Estudos em História do Trabalho (GEPEHTO) e professor do Programa de Pós-Graduação em História (PPGH) e do Programa de Pós-Graduação em Ensino de História (PROF-História), também na UFPB.