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Diogo Schelp: repórteres de guerra, cronistas da frente de batalha

Por Humberto Trezzi para o jornal Zero Hora

O que move jornalistas, os sujeitos que escolhem ingressar naquela região de desespero, a terra de ninguém característica das guerras civis, de onde todos querem fugir? Para tentar responder a essa pergunta, dois experientes repórteres brasileiros, André Liohn e Diogo Schelp, reviraram suas anotações, pesquisaram suas melhores fotos e mergulharam nos relatos dos pioneiros da cobertura jornalística de conflitos – como o irlandês William Howard Russell, “o pai infeliz de uma tribo sem sorte”, que cobriu a Guerra da Crimeia (1853-1856), considerado o patrono dos enviados especiais aos campos de batalha na era dos jornais impressos. Para completar, os dois entrevistaram colegas que se dedicam ao ofício. O resultado é uma obra visceral, Correspondente de guerra: os perigos da profissão que se tornou alvo de terroristas e exércitos (Editora Contexto, 240 páginas).

guerra-3dOs autores são experientes. Schelp, gaúcho de Santa Maria, hoje editor-executivo da revista Veja, já fez reportagens em quase duas dezenas de países, dedicando-se a temas como o narcotráfico no México, a criminalidade na Venezuela, o genocídio em Darfur, no Sudão, o radicalismo islâmico na Tunísia e o conflito árabe-israelense. André Liohn fotografou guerras e situações de violência na Somália, na Etiópia, no Congo e em diversos outros países. Trabalhou para Der Spiegel (da Alemanha), Le Monde (da França), Time, Newsweek (dos Estados Unidos) e para a Veja, entre outras publicações. Em 2012, tornou-se o primeiro fotojornalista latino-americano a receber o prêmio Robert Capa Gold Medal pelo Overseas Press Club, por sua cobertura da guerra civil na Líbia. O livro inclui um caderno de 32 páginas com as melhores fotos feitas por Liohn na Somália, na Etiópia, no Haiti, no Egito, na Tunísia, na Líbia e na Síria.

As pesquisas e entrevistas feitas para o livro deixam evidente que já foi mais fácil e glamouroso ser correspondente de guerra. De românticos e respeitados cronistas de batalhas, os enviados especiais têm se transformado, ao longo das últimas décadas, em alvo. Jornalista virou sinônimo de cofre e sequestro. O fenômeno começou nos Bálcãs nos anos 1990, quando os sérvios começaram a mirar em repórteres ocidentais, que julgavam alinhados a seus inimigos muçulmanos bósnios. No início da década de 2000, o mundo tomou conhecimento, em horrendas imagens de vídeo, da imolação do repórter norte-americano Daniel Pearl por terroristas paquistaneses simpatizantes da Al-Qaeda. A tortura e o assassinato de correspondentes de guerra se tornaram frequentes quando outra organização extremista, o Estado Islâmico (EI), ocupou partes substanciais dos territórios da Síria e Iraque. James Foley, o primeiro jornalista decapitado pelo EI, era amigo de André Liohn.

Foto de André Liohn acompanha a movimentação de guerrilheiros rebeldes na Síria em 2011 Foto: André Liohn / .
Foto de André Liohn acompanha a movimentação de guerrilheiros rebeldes na Síria em 2011
Foto: André Liohn / .

Na entrevista a seguir, um dos autores do livro, Diogo Schelp, fala das mudanças – nem todas para melhor – na profissão.

 

Quando foi que o jornalista, antes visto como sinônimo de isenção e até glamour pelas facções em guerra, se tornou alvo?
Os correspondentes de guerra sempre foram vistos com desconfiança pelos grupos armados envolvidos em um conflito. Na Guerra da Crimeia, por exemplo, que marcou o início deste ofício, os generais britânicos logo perceberam que as notícias publicadas pelo jornal londrino The Times estavam expondo seus erros como estrategistas e passaram a hostilizar jornalistas como o pioneiro William Howard Russell. Mas, de fato, a profissão ganhou uma aura de glamour junto ao público, especialmente por seu caráter aventureiro. Depois da II Guerra, começou-se a aceitar a ideia de que os correspondentes de guerra tinham o direito de serem considerados neutros em uma cobertura de guerra. Os combatentes viam, então, os jornalistas como um mal necessário. Já que não podiam calá-los, tentavam controlá-los ou influenciar a maneira como eles retratavam os conflitos. Isso começou a mudar em dois momentos diferentes. Primeiro, na década de 1980, na época da Guerra Civil Libanesa, quando o grupo xiita Hezbollah começou a sequestrar jornalistas para usá-los para exigir concessões políticas ou trocá-los por prisioneiros. Depois, na década de 1990, nas guerras dos Bálcãs, quando a cobertura televisiva ao vivo tornou-se mais forte, com grande impacto político junto à opinião pública e com capacidade para afetar os rumos dos combates. Como não podiam ser controlados, os jornalistas passaram a ser alvos das forças locais. Nos últimos 15 anos, desde os atentados de 11 de setembro de 2001, isso se acentuou com a popularização da internet e dos aparelhos de celular, de áudio e de vídeo. Hoje, qualquer combatente pode fazer seu próprio registro da guerra, seja em vídeo, foto ou texto, e difundir nas redes sociais para milhares de pessoas sem precisar da intermediação dos jornalistas. Com isso, ao menos do ponto de vista dos grupos armados, os correspondentes passaram a ser dispensáveis – e alvos preferenciais.

William Howard Russell, o patrono dos jornalistas de guerra, na Crimeia, em 1854. Foto: Biblioteca do Congresso Americano / Domínio Público
William Howard Russell, o patrono dos jornalistas de guerra, na Crimeia, em 1854.
Foto: Biblioteca do Congresso Americano / Domínio Público

É impressão ou grande parte dos veículos de mídia tem deixado de enviar repórteres aos campos de batalha e apelado para os freelances?
Isso acontece, sim. Os freelancers ou stringers são profissionais que muitas vezes já estão no local, colaborando para diferentes veículos. Com todas as facilidades de transporte e de comunicação que existem atualmente, ficou mais fácil para eles chegarem aos locais de conflito e de lá enviar fotos, vídeos e artigos sobre o que está acontecendo. Até poucas décadas atrás, era preciso ter uma grande infraestrutura para isso. Os fotógrafos tinham que enviar rolos de filme por avião, por exemplo. O acesso a telefone ou a fax era precário nos rincões do mundo. Para contornar essas dificuldades, os jornalistas precisavam ter o respaldo de grandes empresas, com recursos financeiros e estrutura. Hoje tudo isso pode ser resolvido com um simples toque na tela do celular. Eu acredito, no entanto, que é mais fácil garantir a qualidade de uma reportagem sobre um conflito quando se envia jornalistas próprios, treinados dentro da cultura de cada veículo de comunicação. É o que tenho procurado fazer nos últimos anos.

Você acredita que o jornalista-cidadão, aquele sujeito que não tem formação jornalística, mas registra impressões e o cenário, pode substituir o jornalista?
Trata-se de um complemento importante, porque quanto mais imagens e registros houver de um conflito, mais informado o público estará. Lembro de um caso interessante, durante protestos no Irã, em que uma mulher foi morta a tiros e outros manifestantes filmaram sua agonia com o celular. Aquelas imagens rodaram o mundo e comprovaram que o regime iraniano estava reprimindo violentamente protestos pacíficos. Mas os jornalistas são insubstituíveis porque alguém tem que fazer o trabalho de confrontar as informações com diferentes fontes e de usar sua experiência e compreensão do contexto histórico e político de um conflito para fazer uma abordagem isenta, comprometida com a verdade, do que está acontecendo.

Cena da execução de James Foley pelo Estado Islâmico, em agosto de 2014 Foto: Reprodução
Cena da execução de James Foley pelo Estado Islâmico, em agosto de 2014
Foto: Reprodução

Por que muitos rebeldes hoje preferem tomar jornalistas como reféns a usá-los para divulgar sua mensagem?
Geralmente, há mais jornalistas estrangeiros disponíveis para sequestrar em áreas de conflitos do que, digamos, advogados estrangeiros. Outros profissionais que se arriscam em guerras alheias, como médicos e trabalhadores de organizações humanitárias, também são alvo. São todos muito vulneráveis. Quase nunca andam armados e, pela própria natureza de suas atividades, são obrigados a se aproximar do centro dos acontecimentos. Mas há também outra razão. Pegar jornalistas como reféns costuma render uma grande repercussão internacional porque, afinal, quem divulga as notícias dos sequestros são… jornalistas. Há um componente de corporativismo aí. Se bem que, ao menos durante um período em que muitos jornalistas foram sequestrados no Afeganistão, houve um acordo tácito entre os correspondentes de não divulgar o sequestro de colegas para não entrar no jogo esperado pelos terroristas.

Mesmo com os riscos, há disputa nas redações pela vaga de correspondente de guerra, essa é minha impressão. Estou correto? Por quê?
Acredito que isso deve variar de redação para redação. O que eu percebo, pela minha experiência, é que é raro um jornalista recusar a missão de cobrir algum conflito. Algo, aliás, que, quando acontece, deve ser respeitado por seus chefes. Muitos, é claro, pedem para ser enviados. Afinal, jornalista se alimenta de notícia, e o que não costuma faltar, em zonas de conflito, é exatamente isso: notícia. Há também uma percepção, que é muito mais presente entre pessoas que estão fora do dia a dia das redações, de que a cobertura de guerra traz glória e reconhecimento para o jornalista. Enfim, de que se trata de uma atividade glamourosa. O livro mostra que não é bem assim. O ideal é que alguém que pretende escrever sobre, fotografar ou filmar um conflito o faça não motivado pela glória que acredita que isso lhe trará, mas pela necessidade de informar.

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