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De Pearl Harbor ao papel dos Soviéticos na Segunda Guerra: Por que reescrevemos a História?

Afinal, se uma coisa aconteceu, já faz algum tempo, e se já foi devidamente registrada e ‘contada’, qual o sentido de ser retomada por uma nova narrativa?

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Tropas alemãs marchando para Praga durante a invasão da Tchecoslováquia – Getty Images

As pessoas costumam perguntar qual o sentido de os historiadores, vez por outra, recontarem a História. A dúvida faz sentido. Afinal, se uma coisa aconteceu, já faz algum tempo, e se já foi devidamente registrada e “contada”, qual o sentido de ser retomada por uma nova narrativa?

O historiador deve explicar que vários fatores nos permitem e até determinam uma nova visão. Pode ocorrer que novos registros sobre os acontecimentos tenham sido encontrados (documentos escritos ou sítios arqueológicos, por exemplo). Se novas escavações provarem que houve uma civilização em uma região até agora inexplorada, temos que recontar a história da região. Se um novo documento comprova a atuação de um papa com relação ao nazismo, a história precisa ser recontada.

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Conflito durante a Segunda Guerra Mundial, em 11 de janeiro de 1942 / Crédito: Getty Images

Além disso, é importante ressaltar que História não é simplesmente aquilo que aconteceu, mas a maneira pela qual nós incorporamos e registramos o acontecido. Esse registro varia também em função de nossas preocupações atuais. Por exemplo, o processo de empoderamento das mulheres faz com que passemos a olhar o acontecido também sob uma ótica feminista e isto muda nossa perspectiva sobre o mesmo fato — antes narrado sem considerar essa ótica.

É importante notar que não estamos falando de mudar o passado a partir de nossa vontade atual. O nazismo, por exemplo, não teve vergonha alguma de inventar uma inexistente raça ariana para justificar sua política racista. Esse olhar presentista é uma deturpação da História, pois implica em reinventá-la, o que é puro exercício de ficção. Já ter uma perspectiva atual, ser perspectivista, é outra coisa. É ler o acontecido a partir de preocupações atuais, sem distorcê-lo.

Há questões na História francamente favoráveis a um olhar mitificado. Guerras, por exemplo. Não por acaso costuma-se dizer que a primeira vítima das guerras é a verdade. Às vezes o mito é criado na mesma hora em que o acontecimento se deu. Outras vezes isso vai se dar bem depois.

Um bom exemplo é o papel desempenhado pela União Soviética ao longo da Segunda Guerra Mundial. Nas narrativas ocidentais a enorme importância da Rússia na derrota dos nazistas acabou sendo flagrantemente subestimada. A Guerra Fria já havia começado e não convinha exaltar o novo inimigo das democracias ocidentais. Mitos servem para isso.

Um ótimos exemplos de como os mitos são construídos e utilizados podem ser vistos no livro Os mitos da Segunda Guerra Mundial, que foi publicado recentemente pela Editora Contexto.

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Na verdade, são vários livros em um só, além de ser uma excelente aula sobre temas da guerra que remodelou o mundo, a partir de informações e documentos, muito bem pesquisados, a obra é ainda uma lição sobre os chamados “usos da História” (como nações e grupos tentam moldar a narrativa histórica de acordo com seus interesses) e o papel do historiador (como alguém que busca desconstruir mitos e tem um duplo compromisso, com o fato/o acontecido e com as questões do tempo presente).

Os episódios narrados trabalham com História Política, Econômica, Militar, Social, das Representações. Utilizam documentos variados, como jornais, revistas, sites, filmes, relatórios militares, diários, memórias, memorandos secretos, depoimentos, julgamentos de criminosos de guerra, material diplomático, propagandas, estatísticas, dados técnicos a respeito de armas, táticas e estratégias. Investigam o peso dos indivíduos e das determinações do meio e da época no desenrolar do processo histórico.

Por 14 capítulos, a obra desvelam mitos, mas também mostram como e quando eles foram construídos e por que se perpetuaram. Assim, ficamos sabendo que a ideia de que Hitler teria se antecipado a um ataque de Stalin ao invadir a União Soviética é apenas uma tese revisionista alimentada bem depois do Julgamento de Nuremberg, já em meados dos anos 1980. Essa tese, embora tenha sido usada por Hitler, não havia recebido nenhum crédito na época. Depois ela foi ressuscitada para criticar os soviéticos em tempos de Guerra Fria. 

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Retrato de Adolf Hitler / Crédito: Getty Images

Pearl Harbor, uma vitória japonesa é uma falácia perpetuada pelos americanos, por conta da percepção dos contemporâneos surpreendidos pelo ataque e como justificativa para a exigência de “rendição incondicional” e a exorbitante e um tanto racista resposta atômica dada pelos EUA. Alimentada também pelos japoneses, para justificar a continuidade de uma luta que desde cedo seus governantes sabiam perdida. 

A WAFFEN-SS, soldados de elite são uma grande ilusão, primeiramente criada pela propaganda nazista ligada à ideologia de superioridade racial (se são “os melhores exemplares de uma raça superior”, são automaticamente “os melhores soldados”) e, depois, pelos resistentes franceses, que se davam mais importância por terem inimigos supostamente tão poderosos.

Na época da Guerra Fria, o militar da SS foi pintado por inimigos da URSS como o protótipo do soldado capaz de enfrentar os bolcheviques. Na verdade, no campo de batalha, eles nem sempre foram eficientes, sendo que, por vezes, seu fanatismo prejudicou seu desempenho militar.

O que relatamos são apenas alguns dos exemplos da vasta gama de assuntos tratados no livro, que vão de bombardeios aéreos ao papel das mulheres, dos camicases aos carismáticos discursos de Churchill.

Por fim, é um ótimo exemplo de livro com muitos autores – um time de especialistas: historiadores, jornalistas, estrategistas, consultores, professores –, bem orquestrado pelos organizadores Jean Lopez e Oliver Wieviorka. A linguagem é acessível e os argumentos são desfiados diante do leitor com clareza e honestidade intelectual, como nos bons livros de História.

Fonte: Aventuras na História


Os mitos da Segunda Guerra Mundial. Organização de Jean Lopez e Olivier Wieviorka. São Paulo. Editora Contexto. 2020.


Carla B. Pinsky é licenciada em História pela Unicamp, mestre pela USP e doutora pela Unicamp. É autora de vários livros, como Pássaros da Liberdade e As mulheres dos anos dourados e co-autora de outros como História das mulheres no Brasil, Nova História das mulheres no Brasil, Fontes Históricas e História da Cidadania.

Jaime Pinsky é historiador e editor,  foi professor da UNESP, USP e UNICAMP. É doutor e livre docente pela USP e professor titular da Unicamp, historiador, produz artigos para vários orgãos de imprensa, é colaborador do Jornal da Cultura e autor ou co-autor de muitos livros como Por que gostamos de História, As primeiras civilizações, Escravidão no Brasil, Origens do Nacionalismo Judaico e Brasil – o futuro que queremos.