Fronteira sino-indiana é mais uma vez palco de choques entre soldados, desta vez com ao menos 20 mortos. Disputa geopolítica de décadas entre as potências asiáticas tem motivos complexos e tende a se agravar.
Pela terceira vez desde o começo de maio, ocorreram no último dia 15/06 choques físicos entre soldados de ambos os lados na controversa fronteira entre Índia e China (Line of Actual Control, LAC). Além de punhos, foram empregados também pedras e barras de ferro. Ao contrário dos incidentes anteriores, em que “só” houve feridos, desta vez registraram-se mortes do lado indiano.
Segundo dados do Exército da Índia, nesse conflito no Vale Galwan, no setor oeste da fronteira, 20 de seus soldados morreram, e delegados dos dois países estariam investigando o caso in loco, a fim de obter uma distensão da situação.
O primeiro dos três choques ocorreu em 5 de maio, à margem do lago Pangong Tso, na região de Ladakh; o segundo em 9 de maio, cerca de 1.200 quilômetros mais ao leste, no passo de montanha Nathu La, no estado indiano de Sikkim.
Após o episódio mais recente, a China logo acusou a Índia de ter “violado gravemente o consenso [bilateral] e ultrapassado duas vezes a linha de fronteira, além de provocado e atacado forças de combate chinesas”.
Também em maio, Pequim acusara os indianos de invasão de fronteiras. Estes, por sua vez, acusaram o outro lado de impedir as patrulhas de rotina dos soldados indianos. Apesar de se esforçarem por minimizar os incidentes, ambas as potências reforçaram suas tropas e equipamento pesado nas áreas em questão.
Segundo analistas, as crescentes tensões na fronteira poderiam se atribuir à ampliação da infraestrutura nas proximidades, realizadas pela Índia, que há alguns anos investe em estradas e pistas de aterrissagem nas regiões distantes do Himalaia, perto da LAC.
A China se sentiu especialmente provocada pela construção de mais uma estrada à margem do Pangong Tso, situado entre os dois países. O projeto melhora o acesso a uma pista de aterrissagem no Vale Galwan, a de localização mais elevada, em todo o mundo. Assim, a Índia tenciona competir com a moderna rede rodoviária construída há vários anos do lado chinês da fronteira.
“Os chineses não gostam dessa infraestrutura que a Índia está construindo do lado dela, embora tenham feito o mesmo do seu”, comenta Srikanth Kondapalli, professor de estudos chineses na Universidade Jawaharlal Nehru, em Nova Déli. “Em última análise, estão dizendo: ‘Nós podemos melhorar a nossa infraestrutura, mas vocês, não.'”
Dean Cheng, da americana Heritage Foundation, confirma que os projetos de infraestrutura indianos na região de Ladakh deixaram os chineses desconfiados. “Isso é parte do problema: a China se vê sempre na posição do que sofre a injustiça.”
Em contrapartida, as atividades militares da China na fronteira despertaram medo nos indianos. “O Exército de Libertação Popular voa de tempos em tempos com seus caças sobre o planalto de Qinghai, num comportamento bastante provocador. Assim, Pequim não inspeciona simplesmente seu espaço aéreo, mas emite ao mundo o sinal: aqui estão aviões armados, prontos para combate.”
Em maio, Long Xingchun, da Universidade de Estudos Estrangeiros de Pequim, expôs a posição chinesa no jornal Global Times, ligado ao Partido Comunista: “Nos últimos dias, a Índia ergueu instalações de defesa ilegais no território chinês na região do Vale Galwan. Assim, ela não deixou às tropas de proteção de fronteiras chinesas outra opção, senão reagir com as medidas necessárias, aumentando assim o risco de uma escalada e novas confrontações entre ambos os lados.”
Décadas de disputa
Os atuais choques na fronteira sino-indiana são os mais graves desde 2017, quando centenas de soldados dos dois países se confrontaram durante 73 dias no planalto de Doklam, disputado entre a China e o Butão, aliado de Nova Déli. O estopim foram obras de construção de estradas chinesas, que alarmaram os indianos. O conflito acabou sendo resolvido por vias diplomáticas.
Choques militares de motivação relativamente banal não são novidade nos 3.500 quilômetros da fronteira sino-indiana, em grande parte controvertida e não fixada vinculativamente pelo direito internacional. Em 1962, as duas potências asiáticas travaram uma breve guerra pelos territórios disputados a leste e oeste da fronteira, com um saldo de 2 mil mortos.
No trecho oriental, a China segue reivindicando um território de cerca de 90 mil quilômetros quadrados –a superfície aproximada de Portugal – no estado indiano de Arunachal Pradesh. Na China, a área é também informalmente denominada “Tibete do Sul”. No oeste da fronteira, a Índia exige, por sua vez, 38 mil quilômetros quadrados no planalto de Aksai Chin, região de Ladakh.
Mais de uma dezena de rodadas bilaterais de conversação, até agora, não proporcionaram uma aproximação na disputa. Pelo menos, desde a década de 1970 não houve mais troca de disparos nesse conflito. Por outro lado, aumentou a desconfiança recíproca, também devido à crescente rivalidade geopolítica entre os Estados de bilhões de habitantes.
Fatores importantes são também o elevado status conferido ao Dalai Lama e seu governo de exílio na Índia; assim como as relações estreitas de Pequim com o Paquistão, arquirrival da Índia, fortalecidas nos últimos anos pela Iniciativa do Cinturão e Rota, a nova Rota da Seda, do presidente chinês, Xi Jinping.
Segundo conhecedores da região, a reorganização estatal da parte indiana de Caxemira pelo governo do primeiro-ministro Narendra Modi teria igualmente contribuído para as tensões recentes. “A mudança unilateral do status de Jammu e Caxemira por Modi em 2019 foi registrada com perplexidade por Pequim. Parece que a China tenta defender suas reivindicações territoriais, dentro desse panorama modificado ao longo da Line of Actual Control.”
Por sua vez, Jayadeva Ranade, diretor do Centro de Análise e Estratégia da China, em Nova Déli, aponta razões de política doméstica para o comportamento da China: Xi Jinping estaria “atualmente sob forte pressão devido a seus erros durante a eclosão do coronavírus e nas medidas de contenção”.
Além disso, o país “previsivelmente não alcançará” as duas metas do século anunciadas por seu presidente. Trata-se de, por um lado, transformar a China num país de prosperidade moderada até 2021, 100º aniversário da criação do Partido Comunista nacional. A outra meta é, até 2049, quando a República Popular celebra seu centenário, tê-la elevado a potência global e moderno Estado industrial socialista.
Portanto, segundo a análise dos especialistas em assuntos chineses, a liderança da China se vê obrigada a melhorar sua imagem diante do povo, e para esse fim recorre intencionalmente à agressão contra a Índia.
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Fonte: Matéria publicada no DWBrasil