Quando em 1947, a ONU, em Assembleia Geral presidida pelo brasileiro Oswaldo Aranha, votou pela partilha de uma pequena faixa de terra habitada por judeus e árabes, criou a possibilidade do surgimento de dois Estados vizinhos e independentes. Não é verdade, portanto, que a organização internacional tenha criado apenas um Estado como sugerem discursos enganadores que afirmam que a ONU pensou em um Estado judeu em 1947, mas não pensou em um Estado palestino. Pensou, sim. E, apenas como um detalhe, o trecho que caberia aos palestinos seria maior e mais fértil do que aquele destinado aos judeus.
A distorção dos fatos tem como objetivo culpar o Ocidente pelo fato de um país árabe não ter sido constituído nessa ocasião. O “Ocidente”, neste caso, seriam os EUA. Os norte-americanos haviam emergido da Segunda Guerra Mundial (terminada em 1945) como os principais vencedores do conflito, deixando para trás tanto a Inglaterra e a França, democracias formais, quanto a União Soviética, comunista, que tinha sacrificado bens e muita gente para derrotar a Alemanha nazista. Os EUA podem ser responsabilizados por muita coisa que aconteceu no Século XX, mas não por impor um Estado judeu no Oriente Médio que, por sinal, recebeu mais apoio da União Soviética do que dos americanos. Os estudos sobre as origens do nacionalismo judaico estabelecem uma estreita ligação entre Israel e o judaísmo praticado na Rússia e países adjacentes. Como ocorria com outros povos não russos, os judeus sofriam perseguições terríveis, coroadas por massacres constantes. Já existe bibliografia estabelecida a respeito do tema, e não há dúvidas de que a ideia nacional judaica deve ser buscada nas difíceis condições de existência desse povo judaico na periferia do Império Russo. Não em Londres ou Nova York.
Assim, desde fins do século XIX, grupos de jovens judeus, sentindo-se discriminados no Império Czarista e sensíveis aos ideias socialistas, criaram a ideia coletivista do kibutz. A Palestina, onde tinha existido o último estado judeu independente, era o lugar para onde acorriam. Essa foi a base do Estado de Israel, não qualquer complô supostamente organizado por ocidentais contra os árabes. Não por acaso, os primeiros dirigentes do país (como Ben Gurion e Golda Meir) eram oriundos de um kibutz. Lá aprenderam a viver de forma modesta, sem paletó ou gravata, sem exércitos de guarda costas e sem jantares com comidas e vinhos franceses. O desprendimento dos dirigentes, vivendo modestamente, calçando sandálias, vestindo roupas baratas e padronizadas, dispensando salamaleques, sendo tratados por “companheiro” e não por “excelência”, recebendo remuneração modesta, são expressões culturais de suas crenças, de seus sentimentos mais profundos. É a mesma diferença que percebemos, agora, entre o comportamento de um líder político escandinavo, com o de um dos nossos. Nosso pretexto, é claro, é “o ritual do cargo”.
No caso dos moradores do kibutz e dos senhores de terra árabes também ocorria uma distância difícil de ser superada. Os valores da sociedade estamental em voga (senhores versus camponeses) chocavam-se com o igualitarismo dos moradores do kibutz. A distância existente entre o senhor e o camponês, entre o dono e o empregado, ficava flagrante quando comparada à simplicidade e ao igualitarismo entre os membros do kibutz, incluindo aí as mulheres, com os mesmos direitos e obrigações do que os homens, algo espantoso para o local e época. Era algo subversivo. Claro que o bom foi mostrado como ruim pelos donos do poder locais, como coisa de não árabes, de não islâmicos. Pois uma sociedade moderna e justa não interessava aos donos do poder, aqueles que não queriam mudanças em uma sociedade injusta, sustentada por uma ordem supostamente estabelecida por Alá.
Nesses mais do que 70 anos depois de sua independência Israel ganhou fôlego, é um país moderno, criativo, que tem mais a ver, em sua dinâmica empresarial, com países do Golfo Pérsico do que com sociedades onde as mulheres são cidadãs de segunda classe, homossexuais são perseguidos, denunciados e executados, não há liberdade de imprensa, o poder político depende do amém dos aiatolás ou de outros mandatários religiosos.
Alguém tem dúvida de que o ataque assassino do Hamas, privilegiando mulheres, crianças, idosos e até cadeirantes, tem a ver com a aproximação de Israel com os países mais modernos do Oriente Médio? Estrategicamente, o Hamas atuou para deixar as coisas como estão nos grupos sociais em que mandam, pois assim posam de coitadinhos, não de inoperantes, incapazes e corruptos.
A forma como foram tratadas as mulheres israelenses demonstra a repulsa e o temor que mulheres livres provocam nos os fundamentalistas do Hamas. Ao grupo político interessa manter a sociedade como se vivêssemos há 15 séculos. E pior, dependendo da esmola dada pelo mundo todo, como se a culpa do atraso e da miséria não fosse deles mesmos. É isto que o mundo quer que continue do jeito que está?
Jaime Pinsky é historiador e editor. Completou sua pós-graduação na USP, onde também obteve os títulos de doutor e livre-docente. Foi professor na Unesp, na própria USP e na Unicamp, onde foi efetivado como professor adjunto e professor titular. Participa de congressos, profere palestras e desenvolve cursos. Atuou nos EUA, no México, em Porto Rico, em Cuba, na França, em Israel, e nas principais instituições universitárias brasileiras, do Acre ao Rio Grande do Sul. Criou e dirigiu as revistas de Ciências Sociais, Debate & Crítica e Contexto. Escreve regularmente no Correio Braziliense e, eventualmente, em outros jornais e revistas.