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Como a política pode provocar retrocessos sociais



Jaime Pinsky

Transformada em tema de campanha presidencial, a questão do aborto tem sido objeto das explorações mais vis. Segundo a argumentação de alguns, parece que existem duas correntes antagônicas, os antiabortos e os pró-abortos. Duvido que haja realmente pessoas pró-aborto, principalmente mulheres. Afinal, são elas e não os homens que sofrem esse procedimento invasivo e arriscado; são elas que podem ficar com sequelas físicas e psicológicas, principalmente se o aborto for feito clandestinamente, como se fosse um crime e, muitas vezes, por curiosos, não qualificados para uma ação tão delicada. É sabido que mulheres mais ricas podem conseguir clínicas razoáveis, enquanto que outras mais pobres têm que recorrer aos métodos mais perigosos e abjetos, o que acaba provocando a morte de milhares e deixando graves sequelas em muitas outras.

Não se pode, pois, afirmar que alguém seja pró-aborto. O que não podemos mais é: 1 — deixar as mulheres, notadamente as mais pobres, abandonadas; 2 — criminalizar um procedimento que cabe ao Estado controlar e assistir; e 3 — fingir que o problema não é do âmbito da saúde pública e tentar desviá-lo para o campo das práticas religiosas. Ora, em um país como o nosso, em que a separação entre Estado e Igreja (não só a católica) já é coisa antiga, em que as mulheres têm direito a votar e ser votadas para todos os cargos, é inaceitável que argumentos de cunho religioso se apresentem como éticos e interfiram na política, esfera da cidadania e não da fé. Antiético mesmo é não se colocar contra o atual massacre a que as mulheres estão submetidas. Mesmo em Portugal e na Itália, países importantes na formação cultural do Brasil, já existe hoje legislação mais moderna com relação ao aborto.

É provável que, por todos esses motivos, o PT tenha aprovado em 2007 resolução partidária favorável à “defesa da autodeterminação das mulheres, da descriminalização do aborto e da regulamentação do atendimento a todos os casos no serviço público, evitando assim a gravidez não desejada e a morte de centenas de mulheres, na sua maioria pobres e negras, em decorrência do aborto clandestino e da falta de responsabilidade do Estado no atendimento adequado às mulheres que assim optarem”. Essa não é a “opinião de algumas feministas”, como afirmam agora certos líderes do PT, provavelmente de olho no voto de determinada parcela de eleitores.

O período destinado à campanha política é uma oportunidade de esclarecer a população e de defender avanços de caráter social. A descriminalização do aborto de pessoas que precisam (ou desejam) submeter-se a ele é um desses avanços. Se a cada campanha política, em nome do pragmatismo eleitoreiro, os políticos fizerem a sociedade retroceder em conquistas importantes, daqui a pouco estaremos apedrejando supostas esposas infiéis, proibindo a pílula anticoncepcional, fazendo campanhas na televisão contra o uso da camisinha, extinguindo o voto feminino (assim como o homossexual, é claro). Daí para proibir biquínis na praia, shorts na prática esportiva e adotar o véu e a burca é um passo.

É elementar na democracia: se alguém quer praticar uma religião, deve ter o direito de fazê-lo, desde que não interfira na vida do seu concidadão. Se, por motivos rituais, uma pessoa quiser fazer jejum no Ramadã, adquirir apenas alimentos aprovados por um rabino, não comer carne na sexta-feira Santa, guardar o domingo, o sábado ou a sexta-feira, tudo bem, tudo bonito. Se uma mulher, por razões de consciência optar por não utilizar a pílula anticoncepcional, é um direito que lhe assiste (embora ela deva ser esclarecida sobre métodos anticoncepcionais). Mas se ela, em função de circunstâncias de vida, optar por um aborto cabe ao Estado assisti-la.

A questão aqui não é apenas a do aborto em si. É a do súbito surto de religiosidade que ataca os candidatos brasileiros nesta época e que provoca visitas a templos, sinagogas, mesquitas, igrejas e terreiros. E, mais que isso, o problema são as alianças suspeitas celebradas com vistas a um retrocesso nos direitos sociais. Estamos diante de dois candidatos à Presidência cujo passado todos conhecem, razão por que sua atitude nos surpreende. Serra aparece de repente fazendo juras de fé mais esperadas num coroinha da Mooca. E Dilma, pior ainda, respaldada por uma resolução avançada do seu partido, tenta renegá-la com o apoio de alguns caciques do PT, que fazem ginástica semântica para nos informar que o pensamento de “algumas feministas” não está no programa da candidata que, agora, acha mais vantajoso posar de filha de Maria.

(publicado no jornal Correio Brazilisense – 10/10/10)

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