Tem quem garanta que os homens chegaram à América há mais de 20 mil anos, outros asseguram não estarmos aqui há mais de 12, no máximo 15 mil anos. O fato é que, a não ser que se faça uma improvável descoberta, temos que nos conformar com a ideia de que nosso continente foi dos últimos lugares do Planeta a ser habitado. Afinal, acredita-se que o homo sapiens tenha aparecido na África há mais de 300 mil anos e o homo erectus, um primo não tão distante, cerca de 2 milhões de anos. Como se vê, somos todos imigrantes neste pedaço de terra que hoje denominamos Brasil. Alguns estão chegando agora, outros chegaram há algumas gerações, mas ninguém é realmente autóctone.
Mudanças geológicas, catástrofes naturais, secas, fome, guerras e até curiosidade vem sendo motivos para migrações de indivíduos, grupos e até de populações inteiras. Hoje se sabe que o homem aprendeu a navegar muito antes do que se imaginava, o que facilitou a aventura em direção a lugares remotos. Com o domínio da linguagem (há 70 mil anos para Chomsky, ou mais de 700 mil para Everett) o homem (sapiens ou erectus) passou a ter melhor capacidade de se comunicar, conseguindo dessa forma organizar sua gente para migrações maiores, mais longas, mais distantes e mais ousadas. Mesmo assim, ao que tudo indica, nosso continente continuou à margem do interesse ou das possibilidades de acesso dos seres humanos que, oriundos da África, já se espalhavam pelas regiões hoje denominadas Ásia e Europa.
Essa digressão histórica (sempre cara ao historiador) tem a ver com o momento que vivemos. O continente americano, e o Brasil em particular, estão inseridos na economia global e isso é irreversível. Se até poucos anos atrás uma empresa concorria com outra do mesmo bairro, ou da mesma cidade, hoje concorre com outras situadas em regiões muito afastadas. Exemplos são fáceis de fornecer. Sou de Sorocaba, cidade que se apresentava como Manchester paulista, tal o número de fábricas de tecidos que tinha. Eu mesmo nasci e cresci entre as fábricas Santo Antônio e Santa Rosália, de onde vinha grande parte dos fregueses da loja que meu pai tinha, na região operária do Além Linha. Operando com maquinário muito antigo (dizia-se que era refugo da Revolução Industrial inglesa) as fábricas, para conseguirem vender seus produtos, exigiam muito trabalho e ofereciam pouca remuneração. Trabalhavam com mão de obra predominantemente feminina, muitas vezes adolescente, em três turnos. Mesmo assim perderam totalmente a capacidade de competir. Acabaram fechando.
Por outro lado, o país estava apostando muito na crescente indústria automobilística que se desenvolvia paralelamente à expansão da rede rodoviária, ao aumento da utilização do caminhão como meio transporte, e ao consequente esvaziamento do transporte ferroviário (“consequente” para nós; há países que conseguiram manter uma excelente rede ferroviária e maravilhosas estradas, mas isto não aconteceu por aqui). Esse movimento implicou diretamente na desativação das oficinas da Estrada de Ferro Sorocabana e na liquidação de um operariado de alto nível que trabalhava nela. Nos anos 80 – a chamada década perdida – Sorocaba busca novas opções. A construção da Castelo Branco, rodovia modelo para a ocasião, e da ligação dessa autoestrada à cidade pela Castelinho, apontam para os novos tempos.
Os anos 90 vão dar início a um período de prosperidade para a cidade com a conjugação de uma sequência feliz de boas administrações e o aparecimento de novas empresas em busca de locais próximos da Capital, com bons acessos e condições favoráveis de instalação. Sorocaba proporcionava tudo isso. Faculdades voltadas à formação de técnicos completava o quadro favorável e a cidade voltou a crescer. Além disso, modernizou-se de modo atípico para o nosso país, com preocupações ecológicas, criação de ciclovias, plantio de árvores e o desenvolvimento de uma vida cultural razoável para os nossos padrões.
Velhos sorocabanos sentiram-se invadidos com a população que dobrou e triplicou em pouco tempo. Tratavam os novos cidadãos como estranhos, perigosos para o equilíbrio daquela cidade até então provinciana. A desconfiança foi desaparecendo (a não ser na cabeça de alguns saudosistas empedernidos), o amálgama foi benéfico à cidade e a seus habitantes e Sorocaba hoje é uma cidade agradável, moderna, e, principalmente, com futuro.
Afinal, todo mundo entendeu que somos todos imigrantes. Alguns chegaram um pouco antes, outros um pouco depois, mas ninguém é autóctone.
Por Jaime Pinsky: Historiador, professor titular da Unicamp, autor ou coautor de 30 livros, diretor editorial da Editora Contexto.