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Cidadania global é possível? | Flávia Piovesan

por Flávia Piovesan, no livro Práticas de Cidadania

Os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução. São fruto da nossa história, de nosso passado e de nosso presente, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social. Realçam, sobretudo, a esperança de um horizonte moral,  pautado pela gramática da inclusão, refletindo a plataforma emancipatória de nosso tempo.

Flávia Piovesan

O movimento de internacionalização dos direitos humanos constitui um movimento extremamente recente na história, surgindo, a partir do pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. O legado do nazismo foi condicionar a titularidade de direitos, ou seja, a condição de sujeito de direitos, à pertinência a determinada raça – a raça pura ariana. Se a II Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o Pós-Guerra deveria significar a sua reconstrução. É neste cenário que se desenha o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional contemporânea.

Fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve ser reduzida ao domínio reservado do Estado, isto é, não deve se restringir à competência nacional exclusiva ou à jurisdição doméstica exclusiva, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Por sua vez, essa concepção inovadora aponta para duas importantes consequências: 1ª) a revisão da noção tradicional de soberania absoluta do Estado, que passa a sofrer um processo de relativização, na medida em que são admitidas intervenções no plano nacional em prol da proteção dos direitos humanos – transita-se, assim, de uma visão hobbesiana de soberania centrada no Estado para uma visão kantiana de soberania, centrada na noção de cidadania universal; 2ª) a consolidação da ideia de que o indivíduo deve ter direitos protegidos na esfera internacional, na condição de sujeito de Direito.

Inspirada por essas concepções, surge, em 1945, a Organização das Nações Unidas. Em 1948, é aprovada a Declaração Universal dos Direitos Humanos, como um código de princípios e valores universais a serem respeitados pelos Estados. A Declaração de 1948 inova a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade desses direitos. Universalidade porque a condição de pessoa é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos, sendo a dignidade humana o fundamento dos direitos humanos, na medida em que o ser humano é um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e de dignidade como valor intrínseco. Indivisibilidade porque, ineditamente, o catálogo dos direitos civis e políticos é conjugado ao catálogo dos direitos econômicos, sociais e culturais. A Declaração de 1948 combina o discurso liberal e o discurso social da cidadania, conjugando o valor da liberdade ao valor da igualdade. Não há, assim, liberdade sem igualdade, nem tampouco igualdade sem liberdade.

A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de inúmeros instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, indivisibilidade e interdependência dos direitos humanos. O sistema internacional de proteção é integrado por tratados internacionais de direitos humanos que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de parâmetros de proteção mínimos afetos à dignidade humana. Traduzem um mínimo ético irredutível para uma vida com dignidade.

Neste sentido, cabe destacar que, até 2003, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 149 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 146 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 132 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 167 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 170 Estados-partes e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 191 Estados-partes.

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.

praticasOs sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos valores e princípios da Declaração Universal, compõem o universo instrumental de proteção dos direitos humanos, no plano internacional. Nesta ótica, os diversos sistemas de proteção de direitos humanos interagem em benefício dos indivíduos protegidos. Ao adotar o valor da primazia da pessoa humana, esses sistemas se complementam, somando-se ao sistema nacional de proteção, a fim de proporcionar a maior efetividade possível na tutela e promoção de direitos fundamentais. Esta é inclusive a lógica e principiologia próprias do Direito dos Direitos Humanos.

Cabe ressaltar que a Declaração de Direitos Humanos de Viena, de 1993, reitera a concepção da Declaração de 1948, quando, em seu parágrafo 5o, afirma: “Todos os direitos humanos são universais, interdependentes e inter-relacionados”. Logo, a Declaração de Viena de 1993, subscrita por 171 Estados, endossa a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos. A Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993 afirma ainda a interdependência da Democracia, Direitos Humanos e Desenvolvimento, enfatizando que não há direitos humanos sem democracia nem tampouco democracia sem direitos humanos. Vale dizer, o regime mais compatível com a proteção dos direitos humanos é o regime democrático. Note-se que atualmente 140 países, dos quase duzentos Estados que integram a ordem internacional, realizam eleições periódicas – contudo, apenas 82 Estados são considerados plenamente democráticos (o que representa 57% da população mundial).

Acrescente-se ainda que a Declaração de Viena de 1993 enuncia ser o direito ao desenvolvimento um direito universal e inalienável, parte integral dos direitos humanos fundamentais. O direito ao desenvolvimento demanda uma globalização ética e solidária, na medida em que os quatro quintos da população mundial não mais aceitam o fato de um quinto da população mundial continuar a construir sua riqueza com base em sua pobreza. Vislumbram-se, assim, os delineamentos de uma cidadania global, a partir do processo de internacionalização dos direitos humanos, que gerou a concepção de direitos universais e internacionais, bem como fomentou uma arquitetura internacional de proteção a esses direitos.

O sistema internacional de proteção dos direitos humanos apresenta uma dupla vocação: fixar parâmetros de proteção mínimos afetos à dignidade humana e constituir uma instância de proteção dos direitos, quando as instituições nacionais se mostram falhas ou omissas. O surgimento da cidadania global, lança, contudo, o desafio de sua efetivação. Isto é, como proteger e defender direitos na arena internacional?

 

A Justiça Internacional

O grande desafio do Direito Internacional sempre foi o de adquirir “garras e dentes”, ou seja, poder e capacidade sancionatórios. Isto é, no âmbito internacional o foco se concentra no binômio: direito da força versus força do direito. O processo de justicialização do Direito Internacional, em especial dos direitos humanos, celebra, por assim dizer, a passagem do reino do “direito da força” para a “força do direito”. Testemunha-se, hoje, o crescente processo de justicialização dos direitos humanos.

Pela primeira vez na história da humanidade, foi instalado um Tribunal Penal Internacional, para julgar os mais graves crimes atentatórios à ordem internacional, em virtude da entrada em vigor do Estatuto de Roma, em julho de 2002. Note-se que, desde 1948, a Convenção sobre a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, ao afirmar que o genocídio era um crime contra a ordem internacional, estabelecia que o mesmo deveria ser julgado pelos Tribunais do Estado em cujo território foi o ato cometido ou por uma Corte Penal Internacional.

O raciocínio era simples: a gravidade do crime de genocídio poderia implicar o colapso das próprias instituições nacionais, que, assim, não teriam condições para julgar seus perpetradores, restando assegurada a impunidade. Por isso, há mais de cinquenta anos, já se antevia a necessidade de criação de um Tribunal Penal Internacional, cabendo menção ao legado das experiências dos Tribunais ad hoc de Nuremberg, Tóquio, Bósnia e Ruanda.

Em 17 de julho de 1998, em Roma, foi aprovado o Estatuto do Tribunal Penal Internacional, por 120 votos favoráveis, 21 abstenções e sete votos contrários (EUA, China, Israel, Filipinas, Índia, Sri Lanka e Turquia). A competência do Tribunal atém-se ao julgamento dos mais graves crimes internacionais, compreendendo o crime de genocídio, os crimes contra a humanidade, os crimes de guerra e os crimes de agressão. A jurisdição do Tribunal é adicional e complementar à do Estado, ficando condicionada à incapacidade ou à omissão do sistema judicial interno. O Estado tem o dever de exercer sua jurisdição penal contra os responsáveis por crimes internacionais, tendo a comunidade internacional a responsabilidade subsidiária. O Estatuto consagra ainda o princípio da cooperação, pelo qual os Estados-partes devem cooperar totalmente com o Tribunal na investigação e no processamento de crimes que estejam sob sua jurisdição. Desta forma, o Estatuto busca equacionar a garantia do direito à justiça, o fim da impunidade e a soberania do Estado, à luz do princípio da complementariedade. A jurisdição do Tribunal Penal Internacional não substitui a jurisdição local, mas é a ela complementar e subsidiária.

O Tribunal Penal Internacional permite limitar a seletividade política atualmente existente. Os Tribunais ad hoc, criados na década de 1990 para julgar os crimes ocorridos na Bósnia e em Ruanda, basearam-se em resoluções do Conselho de Segurança da ONU, para as quais requer-se o consenso dos cinco membros permanentes, com poder de veto. Ao contrário, o Tribunal Penal Internacional assenta-se no primado da legalidade, mediante uma justiça preestabelecida, permanente e independente, aplicável igualmente a todos os Estados que a reconhecem, capaz de assegurar direitos e combater a impunidade, especialmente a dos mais graves crimes internacionais.

Consagra-se o princípio da universalidade, na medida em que o Estatuto de Roma aplica-se universalmente a todos os Estados-partes, que são iguais diante do Tribunal Penal, afastando-se a relação entre “vencedores” e “vencidos”. Com isto, o Tribunal Penal Internacional é capaz de reduzir o “darwinismo” no campo das relações internacionais, em que Estados fortes, com elevado poder discricionário, atuam como bem querem em face de Estados fracos – basta mencionar a oposição dos EUA à criação do Tribunal, temendo que norte-americanos sejam processados por crimes de guerra, quando do uso arbitrário da força em território de Estado-parte do Estatuto.

O Estatuto de Roma aplica-se igualmente a todas as pessoas, sem distinção alguma baseada em cargo oficial. Vale dizer, o cargo oficial de uma pessoa, seja ela chefe de Estado ou de Governo, não eximirá sua responsabilidade penal nem tampouco importará em redução de pena. Isso simboliza um grande avanço do Estatuto com relação ao regime das imunidades, que não mais poderá ser escudo para a atribuição de responsabilização penal.

Além da jurisdição do Tribunal Penal Internacional, que é um órgão supranacional, orientado pelo princípio da complementariedade vertical no que tange às jurisdições nacionais, há a chamada “jurisdição universal”. É essa jurisdição que permite compreender, a título ilustrativo, o caso Pinochet. Com efeito, o crime de tortura é um crime que, por sua gravidade, viola o Direito internacional. Daí a existência da Convenção da ONU contra a Tortura e outros Tratamentos Cruéis, Desumanos e Degradantes, ratificada por 132 Estados, dentre eles o Chile, a Espanha e a Inglaterra. Desta convenção decorrem obrigações jurídicas internacionais aos Estados-partes, bem como direitos fundamentais aos indivíduos.

Por constituir um crime internacional, a competência para julgar a prática da tortura é fixada de forma diferenciada, na medida em que se estabelece a jurisdição compulsória e universal para os indivíduos suspeitos de terem praticado tortura. A jurisdição é compulsória porque obriga os Estados-partes a punir os torturadores, independentemente do território onde a violação tenha ocorrido. Universal porque o Estado-parte onde se encontra o suspeito deverá processá-lo ou extraditá-lo para outro Estado-parte que o solicite e tenha o direito de fazê-lo, independentemente de acordo prévio bilateral de extradição.

Este critério, por sua vez, justificou o pedido de extradição de Pinochet formulado pela Justiça espanhola. Essa sistemática é de grande importância pela eficácia que propicia à luta internacional contra a impunidade de responsáveis pela prática de torturas. Adicione-se ainda a necessária cooperação internacional para assegurar o julgamento de pessoas acusadas da prática de tortura, devendo os Estados-partes prestar entre si a maior assistência possível, inclusive no que diz respeito ao fornecimento de elementos de prova. Ressalte-se que aos acusados são asseguradas as garantias de um tratamento justo em todas as fases do processo.

Desta forma, o caso Pinochet é emblemático, ao ineditamente implementar o princípio da jurisdição universal, com base na Convenção contra a Tortura, que prevê um sistema de complementariedade horizontal para o combate à impunidade deste grave crime internacional. Observe-se, contudo, que, no sistema da ONU, não há ainda um Tribunal Internacional de Direitos Humanos. Há a Corte Internacional de Justiça (principal órgão jurisdicional da ONU, cuja jurisdição só pode ser acionada por Estados); os Tribunais ad hoc para a Bósnia e Ruanda (criados por resolução do Conselho de Segurança da ONU) e o Tribunal Penal Internacional (para o julgamento dos mais graves crimes contra a ordem internacional, como o genocídio, o crime de guerra, os crimes contra a humanidade e os crimes de agressão). Às Cortes Internacionais some-se a jurisdição universal. Neste quadro, seria fundamental a criação de um Tribunal de Direitos Humanos no âmbito da ONU.

Diversamente, nos sistemas regionais, seja o europeu, seja o interamericano, as Cortes de Direitos Humanos (Cortes Europeia e Interamericana) têm assumido extraordinária relevância, como especial locus para a proteção de direitos humanos. A jurisprudência de ambas as Cortes tem consolidado uma importante arena para a proteção de direitos, quando as instituições nacionais se mostram falhas e omissas em fazê-lo.

Note-se, inclusive, avanços dos sistemas regionais, no sentido do fortalecimento de sua justicialização. No sistema regional europeu, por exemplo, com o Protocolo nº 11, que entrou em vigor em 1o de novembro de 1998, qualquer pessoa física, organização não governamental ou grupo de indivíduos pode submeter diretamente à Corte Europeia demanda veiculando denúncia de violação por Estado-parte de direitos reconhecidos na Convenção. Houve, assim, a democratização do sistema europeu, com a previsão de acesso direto de indivíduos e organizações à Corte Europeia de Direitos Humanos.

Diante deste cenário, é necessário que se avance no processo de justicialização dos direitos humanos internacionalmente enunciados. As Cortes simbolizam e fortalecem a ideia de que o sistema internacional de direitos humanos é, de fato, um sistema que envolve direitos e obrigações juridicamente vinculantes. Se, de um lado, faz-se necessária a justicialização dos direitos humanos, por outro, faz-se emergencial ampliar a capacidade processual do indivíduo no sistema internacional, mediante sua democratização. Vale dizer que a afirmação de instâncias jurisdicionais de proteção internacional dos direitos humanos deve ser conjugada com a consolidação do indivíduo como verdadeiro sujeito de direito no campo internacional. Há de se fortalecer o acesso à justiça internacional.

Se os Estados foram ao longo de muito tempo os protagonistas centrais da ordem internacional, testemunha-se hoje a emergência de novos atores internacionais, como as organizações internacionais, os blocos regionais econômicos, os indivíduos e a sociedade civil internacional (ex: organizações não governamentais internacionais). O fortalecimento da sociedade civil internacional, mediante um network que alia e fomenta uma rede de interlocução entre entidades locais, regionais e globais, bem como a consolidação do indivíduo como sujeito de direito internacional demandam a democratização dos instrumentos internacionais. Demandam, sobretudo, o acesso aos mecanismos internacionais e à própria justiça internacional.

Em síntese, resta enfatizar que o aprimoramento do sistema internacional de proteção dos direitos humanos requer: a) o reforço do sistema sancionatório internacional, mediante a imposição não apenas de sanções políticas ou morais, mas de sanções de natureza jurídica (doando ao Direito Internacional “garras e dentes”, mediante sua justicialização); b) o fortalecimento dos mecanismos internacionais existentes, utilizando-se destes de forma plena; e c) a democratização dos instrumentos internacionais, a fim de que se assegure a indivíduos e a entidades não governamentais possibilidades ampliadas de atuação e um espaço participativo mais eficaz na ordem internacional.

Hoje pode-se afirmar que a realização plena e não apenas parcial dos direitos da cidadania envolve o exercício efetivo e amplo dos direitos humanos, nacional e internacionalmente assegurados.


Flávia Piovesan, a nova chefe da Secretaria de Direitos Humanosé professora doutora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo nos programas de Graduação e Pós Graduação em Direito; visiting fellow do Human Rights Program da Harvard Law School (1995 e 2000); visiting fellow do Centre for Brazilian Studies da University of Oxford (2005); visiting fellow do Max-Planck-Institute for Comparative Public Law and International Law (Heidelberg, 2007 e 2008) e Humboldt Foundation Georg Forster Research Fellow no Max-Planck-Institute for Comparative Public Law and International Law (2009-2011). Membro Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana; membro da UN High Level Task Force on the implementation of the right to development; e membro do OAS Working Group para o monitoramento do Protocolo de San Salvador em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais. Tem experiência na área de Direito, com ênfase em Direitos Humanos, Direito Constitucional e Direito Internacional, atuando principalmente nos seguintes temas: direitos humanos, Direito Constitucional, Direito Internacional, proteção internacional e proteção constitucional.

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