O Brasil é o país dos grandes espaços. E dos contrastes de arranjo. Passado e presente copiosamente neles se ligam e se negam. Grandes unidades de natureza se assentam entre os alinhamentos de rios e interflúvios reordenados pelos alinhamentos de assentamento humano numa sobreposição uniforme e dissonante. Largas paisagens de horizontes infindos, tomadas pela minúscula pontualidade das fazendas, ilhas de policultura e cidades. Estas cada vez menos cidades de indústria e cada vez mais cidades do terciário e serviços. Grandes unidades de espaço segmentadas e redemarcadas por dentro pelo emaranhado mosaico dos pequenos e médios pedaços de recortamentos desenhados pelo acamamento entrecruzado dos ciclos de ocupação.
País das paleopaisagens. Das matas, dos cerrados, dos campos e das caatingas de ontem e de hoje que se interpenetram numa trama de coabitabilidade de fauna e flora, rios e solos, morros e baixadas, que, ao fim, não se sabe se é deste ou daquele tempo, deste ou daquele bioma, deixados na mistura por uma história territorializada da natureza que antecipa pinturas e pintores das paisagens do país. País também dos traços da geografia indígena e da geografia colonial que misturam o mesmo desenho agora como uma história territorializada do homem, coabitantes e contrastantes por suas propriedades de relação homem-terra, homem-natureza, em profusa combinação de antagonismos.
País de contrastes. Da cultura diversa do Norte e da cultura homogênea do Sul. Da densidade velha do litoral e da densidade nova do sertão, da cidade dos sem o urbano e do campo dos sem-terra, do latifúndio gigante e do minifúndio nanico, da monocultura da predação e da policultura da seguridade alimentar, do sebastianismo nordestino e do barroquismo mineiro, da acumulação e da pobreza, da mudança e da permanência.
Aspectos estrutural-estruturantes de organização de uma relação sociedade-espaço-natureza de que decorre a estrutura societária e de relação de sociabilidade que conforma e retém, num estado a um só tempo de estabilidade e ebulição, o curso de vida corrente das instituições políticas e da cultura.
Essa singularidade socioespacial complexa e contraditória de um país-enigma é o tema deste livro. Para tanto, dividido em cinco capítulos. O capítulo “Um estranho país urbano” é o painel da trajetória e das formas da cidade, voltado para mostrar uma formação social que já nasce um país de cidades ao mesmo tempo que de fazendas, numa releitura de uma sociedade estritamente agrária desde o começo. O capítulo “Uma tecelagem em camadas” é a descrição das relações entrecruzadas de espaço que estão na origem dessa peculiaridade estrutural de ser a um tempo citadina e a um tempo rural. O capítulo “A combinação desigual” é a análise dos cruzamentos conflitivos e contraditórios dessa estrutura, do modo como os pedaços de espaço se diferenciam e ao mesmo tempo se consorciam numa unidade de diversidade. O capítulo “A árvore e o tronco” é o retratamento
dos elementos compósitos dessa peculiaridade estrutural determinada pela modalidade particular de suas formas de indústria. O capítulo “A cidade e o urbano” é a focagem da cidade como um dado estrutural tão seminal quanto a fazenda na formação da sociedade brasileira, seus vazios de arranjo urbano e seus problemas. Fecha esses capítulos o anexo “O agropoder, a grande indústria e o rentismo”, um adendo que acrescenta elementos sobre a natureza da sociedade brasileira que o livro aflora nos temas que analisa, indicando a diversidade da bibliografia atinente ao leitor que queira ir além.
Trata-se de um livro que retoma e sistematiza, numa ótica lógicoestrutural, o conteúdo histórico-estrutural de Sociedade e espaço geográfico no Brasil: constituição e problemas de relação, publicado em 2011 por esta Contexto. O Brasil visto aqui num enfoque progressivo-regressivo, o recurso de método que junta os dois enfoques, que no primeiro livro ficou mais restrito à focalização da linha do tempo da análise histórico-estrutural. Numa lembrança dos estudos de Geografia Histórica, da qual o enfoque progressivo-regressivo é voz discordante. Livros que, sugere-se, sejam lidos combinadamente. O leitor pode, então, encontrar em um e em outro os dados que o convidam a fazer sua própria leitura do enigma Brasil.
Combinação que pode ser acrescida de outros três livros focados na reflexão sobre a forma geográfica do Brasil, e que o leitor encontra indicados na bibliografia: Mudar para manter exatamente igual, cujo conteúdo este Brasil, espaço e tempo retoma e sistematiza particularmente no capítulo “A árvore e o tronco”, podendo o leitor nele analisar o tema com maior extensão e profundidade; O movimento operário e a questão cidade-campo: classes urbanas e rurais na formação da geografia operária brasileira, retomado, em particular no conceito de questão cidade-campo, no último capítulo, e formando uma espécie de prosseguimento deste Brasil, espaço e tempo, como se seus capítulos fossem os capítulos consecutivos do capítulo “A cidade inacabada e o urbano”; e A formação espacial brasileira: contribuição crítica aos fundamentos espaciais da geografia do Brasil, uma coletânea de textos que retomam, subsidiam, antecipam autocríticas e dão complemento aos cinco capítulos deste Brasil, espaço e tempo.
Resta a sugestão a uma olhada na própria bibliografia geral de referência, que certamente o leitor conhece e tem presente na sua estante pessoal, bem como a de ler estas páginas que seguem com um bom atlas geográfico e um bom atlas histórico do Brasil abertos à sua frente. Pois tem a propriedade de um mapa escrito. É um painel sobre o Brasil. Junto ao painel que o leitor tem de sua própria elaboração. E oxalá encontre aqui bons motivos para dedicar tempo para realizar sua própria análise reflexiva sobre este país belo e complicado que é o Brasil. E se o livro servir de motivo, terá cumprido sua missão.
Ruy Moreira é professor dos Programas de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal Fluminense (UFF) e Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FFP-UERJ). Graduado e mestre em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), doutor em Geografia Humana pela Universidade de São Paulo (USP) e doutor honoris causa pela Universidade do Estado do Ceará (UECE). Dedica-se à pesquisa nos campos da teoria (epistemologia-metodologia-ontologia) da Geografia e da teoria e compreensão global da sociedade brasileira; sua natureza e conflitualidades explicadas a partir das armas da teoria geográfica. É autor de artigos e livros sobre estes dois campos, sobre cujos entendimentos específicos e seus entrelaces publicou pela Contexto Para onde vai o pensamento geográfico? Por uma epistemologia crítica, a trilogia O pensamento geográfico brasileiro (volume 1 – as matrizes clássicas originais; volume 2 – as matrizes da renovação; volume 3 – as matrizes brasileiras), Pensar e ser em Geografia, Geografia e práxis: a presença do espaço na teoria e na prática geográficas, O discurso do avesso: para a crítica da geografia que se ensina, e Sociedade e espaço geográfico no Brasil: constituição e problemas de relação.