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Ato falho | Rubens Marchioni

Quando se tratava de expressar a atitude de aceitação ao diferente, a insegurança do sentimento era mais do que visível. Catarina era o tipo de pessoa que alimentava preconceitos por todos os cantos. Pior: eles cresciam firmes e fortes, prontos para se alastrar por onde ela passasse. Não faltou advertência. Não faltou a perda de emprego em outra empresa por causa de seus comentários pouco adequados. Não faltava a memória de tudo isso e de tudo o que ainda pode acontecer com ela. 

Ato falho | Rubens Marchioni

– Elias, se você quer ser gay, tudo bem, problema seu. Mas me deixa, tá?
Ele não teve dúvida quanto à maneira de reagir a essa demonstração clara de homofobia. Quase que tomado por uma força instintiva, com vigor ele levantou o dedo médio na direção de Catarina. O dedo foi apontando para ela de um jeito que a resposta, silenciosa no seu grito, ficasse bem clara. Naquele dia, Elias não estava muito disposto a demonstrar compreensão em casos críticos como esse.
– Elias, você falou com a Evelyn sobre a reclamação que devia fazer ao fornecedor de essência?

Elias ignorou a pergunta sobre um fornecedor que atrasou muito a entrega de matéria prima essencial para a produção de um perfume. O caso foi parar nas mãos do chefe do departamento. Catarina recebeu o Aviso Prévio, e imediatamente transformou-se em “Procuradora do Estado”. Todos os dias pela manhã comprava o jornal na esperança de encontrar um novo espaço profissional. Mas era difícil conseguir outro emprego. Em tempos de crise, eles haviam fugido para algum lugar desconhecido. Quando encontrava alguma coisa, era para trabalhos braçais e músculos fortes, nada ligados à Administração de Empresa.

Elias foi advertido, e quase viu ruir o seu emprego de maquiador, trabalho que desempenhava num ambiente externo, que simulava um salão de beleza. Lá, ele demonstrava os novos produtos da empresa, enquanto investigava o perfil médio de seus consumidores, informação útil para o pessoal do Marketing.

Hora do almoço. O tempo disponível era suficiente para tomar um cafezinho num ambiente diferenciado. Elias andou devagar, sem acompanhar a força do raciocínio. Em sua cabeça, algumas palavras circulavam, davam todas as voltas e não se dispunham a sair. Ele estava visivelmente inquieto.

No caminho, deixou de lado o costume corriqueiro de cantarolar uma música. Não cantou. Elias estava certo de que determinada palavra da sua letra pode trazer azar e até provocar desastres. De resto, prometeu a si mesmo que tentaria ser elegante com a figura de Catarina e se esforçaria para conseguir ser fiel ao seu propósito. Não conseguiu. E bastou o primeiro encontro, depois do almoço, para que isso ficasse claro.

No final do expediente, Elias foi tomar um lanche com Amélia. Ela ouviu e reouviu o seu relato. Pensou e repensou no que dizer. Ela era muito cética quanto às possibilidades de uma conversão das pessoas sobre o olhar em relação ao diferente. E não perdia uma qualidade sempre visível: ela era confiável, dessas que guardam segredo de tal forma que até Deus tem dificuldade para encontrá-lo.

– Elias, quando eu encaminho um carro para o emplacamento, depois de providenciar toda a documentação, eu sei que ele vai receber um rótulo, uma placa, certo?

– Certo. E?
– Algumas pessoas gostam de rótulos e de rotular, é isso, gostam de placas.
– Sei, elas querem rótulos até para elas mesmas.
– Exatamente. Elas querem ser identificadas e identificar como isso ou aquilo.
– Eu acho que, se pudessem, teriam uma placa também.
– Pois é, é triste, mas é assim. Elas são como carros. Só que não são carros!
– Amélia, foi isso mesmo que Catarina tentou fazer comigo, me rotular. Me discriminou na cara dura com aquele jeito nojento e esnobe que ela tem, credo!
– Você viu aquela hortênsia na entrada do restaurante?
– Claro que vi, é linda.
– Essa flor fala de respeito. Exatamente o que eu sinto por você, meu amigo. Eu aprendi o sentido da palavra tolerância, sabe?
– Respeito? Respeito por que, Amélia? Tolerância por quê? Me explica.

– Sim, respeito pela sua opção sexual – Amélia não se deu conta de que também ela demonstrava certa dose de preconceito camuflado. Via em Elias alguém que ainda não fazia parte dos “normais”, e por isso precisava ao menos de “respeito”, talvez de “tolerância”. Também não se deu conta de que as pessoas toleram aquilo que detestam e das quais gostariam, mas não podem se livrar. Foi um novo descuido, revelador como o primeiro – Deus é Pai.
– Não, eu não quero “respeito”. Eu quero que parem com o maldito costume de me rotular. Eu não sou um carro, não sou um produto no supermercado. E por que eu tenho de ser tolerado?
– Entendo. Mas…
– Você é hétero, e ninguém fica falando por aí “ah, eu respeito, eu tenho tolerância com a Amélia, sabe?”.
– Você está certo.
– As pessoas nem se dão conta disso. Pra elas não importa, porque consideram isso “normal”. Normal?! O que é ser “normal”?!
– Pois é, meu amigo, essas pessoas são assim mesmo.
– Que bom que você já percebeu, minha amiga. – “Será que percebeu mesmo?”, pensou.
– A gente não muda de uma hora pra outra. Isso ainda vai demorar muito tempo pra acontecer. Mas tem gente que já mudou…
– Será? Claro! Tem muita gente que não me discrimina.
– Será? Será que muitas dessas pessoas não são apenas cautelosas? Prudentes? Será que não agem assim porque discriminar pode custar caro? Veja o caso da Catarina. Será que não acham mais seguro discriminar em silêncio, quem sabe no bar ou no estádio de futebol?
– Parece que sim.
– Parece que sim? Veja a sua colega, ex-colega, a Catarina: ela pode até ter se esforçado por algum tempo. Mas quando se descuidou, quando foi espontânea, se revelou.
– Eu vi o preço desse descuido.
– Isso mesmo. O que aconteceu com ela? Foi pra rua. E por que seu gerente advertiu você, ao invés de agir exatamente ao contrário?
– É, os dois se revelaram.
– Te advertindo, ele simplesmente demonstrou que não condenava tanto o comportamento homofóbico de Catarina.
– Estou entendendo você. Estou ligando os pontos. Faz sentido.
– Raciocina: por que a empresa contratou você, e não um hétero, pra esse trabalho considerado feminino por ela?  

O rosto inteiro de Elias demonstrou uma desilusão crônica.

– É, faz sentido. Faz sentido. Essa praga é uma praga!
– Tá sentindo o cheirinho de cupim que vem da cozinha? Deve estar ansioso pra ser devorado, mas fica pra outro dia. Um dia a gente vem devorar esse cupim. Combinado?
– Eu queria devorar a Catarina, sabe?
Deram uma risada meio amarela, sem aroma e sem sabor. Só restava esperar.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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