Esses seres criados pelos homens e chamados de personagens, assim como seus criadores, não param de se multiplicar, movimentando o jogo artístico-literário que entrelaça criador, criatura e todos aqueles que se envolvem com eles, vivenciando-os, amando-os, odiando-os ou tentando entendê-los. Penso aqui especialmente nos leitores, tanto os que jogam esse jogo por puro prazer como os que quebram a cabeça para definir e escrever sobre a natureza específica, especial, singular, tanto dos criadores como de suas personagens. Assim sendo, a obra A personagem, que está fazendo exatamente 32 anos (uma jovem senhora…) – sua primeira edição é de 1985 –, ganha novos ares, mudando de casa e aproveitando para atualizar alguns aspectos que nela são tematizados.
Se o primeiro capítulo – “O faz de conta das personagens” – se mantém praticamente inalterado, o segundo – “A personagem e a tradição crítica” – sofreu algumas mudanças. O escopo dos estudos se amplia, acolhendo a teoria dialógica, advinda de Mikhail Bakhtin (1895-1975), pensador russo que se dedicou a uma reflexão artístico filosófica sobre autor/criador e personagem/herói, entendendo-os como elementos essenciais à atividade ética e estética, tanto na literatura como em outras artes. Bakhtin, ao longo de sua vida, dedicou vários de seus trabalhos a essa questão.
Se o terceiro – “A construção da personagem” – abriga poucas e pontuais mudanças, o leque de autores que respondem à pergunta “De onde vêm esses seres?”, no quarto capítulo, amplia-se significativamente. Os doze que apareciam desde a primeira edição, dando um toque muito especial à obra, à reflexão sobre a personagem, aproximando o leitor do processo criativo, abrindo uma janela para o universo da criação, continuam presentes: Antônio Torres, Doc Comparato, Domingos Pellegrini, Ignácio de Loyola Brandão, João Antônio, José J. Veiga, Lya Luft, Lygia Fagundes Telles, Marcos Rey, Marilene Felinto, Moacyr J. Scliar e Renato Pompeu. Catorze novos escritores se dispuseram a responder à questão, trazendo suas experiências de criadores contemporâneos, alguns voltados para formas específicas de literatura, caso da literatura infantojuvenil e da proveniente das questões da negritude. São eles: Autran Dourado, Beatriz Bracher, Cristovão Tezza, Julián Fuks, Luiz Ruffato, Marcelo Maluf, Maria Valéria Rezende, Milton Hatoum, Oswaldo de Camargo, Paloma Vidal, Patrícia Melo, Rafael Gallo, Rogério Pereira e Silvana Tavano.
O “Vocabulário crítico” e a “Bibliografia comentada”, que finalizam a reflexão, também sofreram pequenas e necessárias alterações. Mesmo com as mudanças aqui anunciadas, o espírito que levou a elaboração dessas reflexões continua inalterado. Ou seja, A personagem é uma obra que deve ser tomada como introdução ao estudo da personagem, pois se dirige a um público que analisa, produz e transforma textos de ficção. Na verdade, destina-se a um público muito especial, que tem no texto um instrumento de prazer, conhecimento e trabalho, mas que se encontra no início das reflexões acerca das especificidades da narrativa de ficção, em geral, e da personagem, em particular. Considerando esse fator decisivo para o encaminhamento da discussão, procurei cercar algumas questões a respeito da personagem, dando ao texto um formato que eu imaginava pertinente e que buscava encontrar em cada estudo a respeito do assunto, no início de minha vida universitária e também profissional.
Assumindo uma postura até certo ponto didática e correndo todos os riscos fatais que essa postura pode acarretar, a obra procura adequar-se às necessidades dos leitores que não são especialistas, mas candidatos a, simulando o isolamento da questão personagem e flagrando esses habitantes da ficção no seu espaço de existência: o texto. Aqui, é preciso, de imediato, um esclarecimento, isto é, a palavra texto cobre duas manifestações de naturezas diferentes: o texto literário, artístico, a ficção literária, a prosa de ficção que materializa esses seres, e o texto crítico, que, com seus instrumentos específicos, persegue a complexa natureza dessas incríveis criaturas.
Assim sendo, os capítulos que constituem esta obra procuram orientar o leitor no sentido de refletir sobre a concepção de personagem, sondando a sua variação no decorrer de um percurso literário que engloba, ao mesmo tempo, a diversidade da produção e a tradição crítica que a enfrenta. Cabe ao capítulo “O faz de conta das personagens” iniciar a reflexão, procurando desfazer os compromissos rígidos existentes entre as palavras (entidades?) “pessoa” e “personagem”; ao capítulo “A personagem e a tradição crítica”, traçar um rápido caminho dentre algumas das várias perspectivas teóricas existentes, as quais se debruçam sobre a questão da personagem; ao capítulo “A construção da personagem”, esboçar alguns procedimentos de caracterização de personagem; e ao capítulo “De onde vêm esses seres?”, reservar a escritores/as brasileiros/as contemporâneos/as uma palavra a respeito de suas criaturas.
Quanto a esse último capítulo, cabe aqui um esclarecimento e um profundo e afetuoso agradecimento. Essa reunião de depoimentos inéditos foi possível graças a gentil colaboração de escritores que, em meio a suas inúmeras atividades, acharam um tempinho e se dispuseram a colaborar com este livro, concedendo à autora e aos leitores a força de seus testemunhos. Sempre desconfiei, como autora, crítica e professora, que essa é a parte que mais atrai os leitores e que mais os instiga a entender e a tentar criar personagens. Afinal, quem não quer conhecer os segredos de seu escritor preferido (e dos outros também…) em relação ao trato com suas criaturas? Garanto que lendo esses criadores, suas obras, mas também este espaço em que segredam coisas muito importantes em relação às suas criações, os leitores abrirão olhos e ouvidos para o mundo (interno e externo), ganhando novo fôlego para a leitura e para a criação.
O reduzido vocabulário crítico e a bibliografia comentada não têm a pretensão de cercar todos os termos de todas as obras referentes à personagem, o que seria impossível e até mesmo absurdo, tratando-se de uma obra de introdução. Eles servem, na verdade, apenas como um ponto de partida (há outros…) para os que iniciam os estudos do problema. As obras aqui comentadas, com raras exceções, não são livros dedicados exclusivamente à personagem, mas estudos teóricos que dedicam um espaço a esse componente vital da narrativa. Por essa razão, aconselha-se que as obras sejam lidas na íntegra, a fim de que o leitor possa estabelecer a relação entre o estudo da personagem e os outros itens tratados pelo crítico.
Sendo uma obra de introdução, fica clara a necessidade de complementação pelos leitores, na medida de seu interesse, por meio da convivência com as grandes obras de ficção e os grandes criadores de personagens (isso é fundamental!), bem como com as possibilidades de leitura instigadas pelas diversas tendências críticas. Nesse sentido, e para finalizar essas palavras introdutórias à natureza desta reflexão, penso que seria possível estabelecer um paralelo entre esta obra – A personagem – e um guia de viagem. O leitor concordará comigo que, quando vamos conhecer um lugar, dentro ou fora do país, nosso primeiro gesto é buscar informações. Antes da ida, ou mesmo durante a viagem, se consultarmos um guia do local, impresso ou on-line, teremos a impressão de que há informações demais, difíceis de serem guardadas: históricas, geográficas, sociais, culturais etc. Na volta, ao consultar o mesmo guia, para conferir alguns aspectos, nossa impressão será totalmente diferente. O mesmo acontece com este livro: é o começo de uma curiosa viagem.