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Argumentação – José Luiz Fiorin

por José Luiz Fiorin

A vida em sociedade trouxe para os seres humanos um aprendizado extremamente importante: não se poderiam resolver todas as questões pela força, era preciso usar a palavra para persuadir os outros a fazer alguma coisa. Por isso, o aparecimento da argumentação está ligado à vida em sociedade e, principalmente, ao surgimento das primeiras democracias. No contexto em que os cidadãos eram chamados a resolver as questões da cidade é que surgem também os primeiros tratados de argumentação. Eles ensinavam a arte da persuasão.

Todo discurso tem uma dimensão argumentativa. Alguns se apresentam como explicitamente argumentativos (por exemplo, o discurso político, o discurso publicitário), enquanto outros não se apresentam como tal (por exemplo, o discurso didático, o discurso romanesco, o discurso lírico). No entanto, todos são argumentativos: de um lado, porque o modo de funcionamento real do discurso é o dialogismo; de outro, porque sempre o enunciador pretende que suas posições sejam acolhidas, que ele mesmo seja aceito, que o enunciatário faça dele uma boa imagem. Se, como ensinava Bakhtin, o dialogismo preside à construção de todo discurso, então um discurso será uma voz nesse diálogo discursivo incessante que é a história. Um discurso pode concordar com outro ou discordar de outro. Se a sociedade é dividida em grupos sociais, com interesses divergentes, então os discursos são sempre o espaço privilegiado de luta entre vozes sociais, o que significa que são precipuamente o lugar da contradição, ou seja, da argumentação, pois a base de toda a dialética é a exposição de uma tese e sua refutação.

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Se a argumentação é uma característica básica do discurso, poderíamos perguntar-nos se os trabalhos sobre argumentação são abundantes. A resposta é não. Isso poderia gerar certa perplexidade. Afinal, depois de Ducrot e Anscombre, a questão da argumentação parece ter-se tornado moda nos estudos da linguagem. No entanto, não é da argumentação na língua, que é o que se faz na esteira desses dois autores franceses, que deve tratar uma teoria do discurso. Ao contrário, ela deve estudar discursivamente o problema da argumentação.

Este livro tem o objetivo de discutir as bases da argumentação e de expor as principais organizações discursivas utilizadas na persuasão, isto é, os principais tipos de argumentos. Para isso, revisitamos, principalmente, o Órganon, de Aristóteles, e o Tratado da argumentação, de Perelman e Tyteca. Introdução à retórica, de Olivier Reboul, e Rhétorique et argumentation, de Jean-Jacques Robrieux, forneceram algumas sugestões de catalogação e descrição dos argumentos.

Vários textos deste livro já foram publicados: o primeiro capítulo, intitulado Argumentação e discurso, apareceu na revista Bakhtiniana (V. 9, n. 1, 2014), outros trechos foram publicados na revista Língua Portuguesa, da Editora Segmento, e no Manual de Português (Funag), de José Luiz Fiorin e Francisco Platão Savioli. Outros fragmentos ainda foram retirados de diversos trabalhos meus, como, por exemplo, a) “O éthos do enunciador” (em Arnaldo Cortina e Renata Coelho Marchezan, Razões e sensibilidades: a semiótica em foco, Araraquara/São Paulo, Laboratório Editorial da FCL da Unesp/Cultura Acadêmica, 2004, p. 117-38); b) “O páthos do enunciatário” (em Alfa – Revista de Linguística, São Paulo, Unesp, n. 48, p. 69-78, 2004); c) “Identidades e diferenças na construção dos espaços e atores do novo mundo” (em Diana Luz Pessoa de Barros (org.), Os discursos do descobrimento: 500 e mais anos de discursos, São Paulo, Fapesp/Edusp, 2000, p. 27-50). No entanto, tudo foi ampliado e reorganizado para ganhar a exaustividade e a coerência que a publicação deste livro exigia.

Os exemplos foram garimpados em textos literários e textos da mídia impressa. No caso dos últimos, eles foram retirados de jornais e revistas do período em que os textos estavam sendo escritos. Por isso, este autor pede que não se infira nenhuma posição política dele a partir da escolha dos exemplos. Eles referem-se pura e simplesmente a assuntos que estavam em discussão nos momentos diversos em que esta obra foi escrita.

Os exemplos retirados de obras literárias não serão citados remetendo a uma página de determinada edição. Como queremos que todos possam encontrá-los, indicamos a localização do texto na obra: num dado capítulo, numa determinada parte, numa certa estrofe. Nesses casos, não se cita uma determinada edição na bibliografia. Só citaremos a página, quando a obra não apresentar uma divisão em partes que permita facilmente verificar onde um texto se encontra. Por outro lado, nas referências bibliográficas, estão listados livros publicados originariamente em língua estrangeira que tenham mais de uma tradução em português, bem como obras dos séculos XVI a XVIII, cuja ortografia modernizamos, como o caso dos relatos dos viajantes. Nesse caso, informamos a edição de que o texto foi extraído, por haver divergências entre as diversas edições.

O aparecimento da argumentação, seu uso intensivo, sua codificação fazem parte da marcha civilizatória do ser humano, da extraordinária aventura do homem sobre a Terra. Ao abdicar do uso da força para empregar a persuasão o homem se torna efetivamente humano. Nesse momento da história, cabe a constatação de Riobaldo que encerra o Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa: “Nonada. O diabo não há! É o que eu digo, se for… Existe é homem humano. Travessia.”

Chaucer, ao final do Prólogo de Os Contos de Cantuária, pede que o perdoem se, em sua obra, ele ofender alguém ou cometer algum erro. Ele diz à guisa de explicação: “Meu talento é insuficiente, vós bem podeis entender.” Faço minhas as palavras do grande escritor inglês.

 

Na capital paulista, numa cerúlea manhã do outono de 2014.

José Luiz Fiorin


Texto extraído do prefácio do livro Argumentação, de José Luiz Fiorin

 

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