Por volta das 23 horas, quando deixou a universidade frequentada para realizar a vocação do pai, Diego estava revoltado com o professor e quase decepcionado consigo mesmo. Pouco tempo atrás, ele havia tomado conhecimento da nota sofrível que mereceu no trabalho para a disciplina de Fundamentos Filosóficos. Isso ainda poderia acabar numa ‘DP’, que o deixaria na dependência de conquistar uma nota melhor ao repetir a mesma disciplina para não se privar do diploma. Mas essa situação era bem conhecida de Diego, íntimo de tudo o que envolvia processos de recuperação escolar.
A irritação aumentava ainda mais o seu impulso previsível de puxar alguns fios do cavanhaque mal cuidado, enquanto tirava e recolocava a boina verde oliva e empurrava para o lado o chinelo de sempre, comprado numa loja da Rua Oscar Freire, aquela dos Jardins, onde não ultrapasso os limites da calçada.
Em uma das provas, ele tentou jogar com o professor – disse que pediria revisão de nota. Desafio aceito. Era seu direito como aluno. Diego só se esqueceu de pensar que, ao pedir essa revisão, tudo naquele caso voltava à estaca zero – até prova em contrário, ninguém estava certo, ninguém estava errado. Sempre havia a possibilidade do mestre se dar conta de que errou para menos e aumentar-lhe a nota final – ponto para Diego. Ou, por que não, que errou para mais e tirar alguns pontos daqueles que foram atribuídos na primeira avaliação.
Revisar é revisar, apenas isso.
Nunca ouvi falar em revisão da revisão. A não ser nos casos em que os pais do jovem senhor, ou da jovem senhora, estudante em questão, aparecem na universidade ao lado de um advogado cheio de parágrafos e incisos, reivindicando uma nota mais alta para a sua criança injustiçada e, de quebra, a cabeça do professor. Quando o aluno é visto como Receita e o professor apenas engrossa o caldo da Despesa na contabilidade da escola isso é possível. Mas essa é outra história, coisa de ficção escrita por um lunático. ‘Xapralá’, diria Shakespeare.
Fato é que o cenário emocional estava criado. Também por causa de mais essa nota baixa, e agindo com arrogância, Diego entrou na pizzaria bem próxima da universidade para comer uma fatia, antes de voltar para casa.
Naquela noite, um dos balconistas era Joakim, um homem maduro e experiente. Ele preparava muitas das pizzas da noite, cortando-a em fatias regulares para repor as bandejas que se esvaziavam com rapidez.
Junto ao balcão, ao pedir uma fatia, Diego fez uma brincadeira seguida de um gesto racista.
– Me dá uma fatia de Marguerita, dessa bem tostada. Mas nada de… [impublicável] – disse, jocosamente, apontando para o pedaço escolhido. Os outros clientes se entreolharam, perplexos, e num silêncio coletivo, protestaram contra aquele comportamento. Em alto e bom tom, mas em silêncio reservadamente reservado, porque o contrário disso lhes tomaria um tempo que não estava disponível no momento, talvez em outro dia.
Diego agiu assim porque não foi atendido antes mesmo de quem já havia chegado e esperava o momento de fazer o pedido – uma fatia de pizza e alguma coisa para beber, como de costume.
Joakim olhou fundo nos olhos do cliente preconceituoso.
– Não entendi o porquê da brincadeira, rapaz! Vá embora e repense os seus conceitos, garoto!
Os clientes se viraram para observar a cena e aplaudiram a atitude de Joakim com algumas palmas e palavras ensaiadas.
Mais por medo do que por respeito, Diego desistiu de pedir qualquer coisa e foi embora, esmurrando uma parede e xingando. Não conseguia aceitar o fato de que um negro, um negro balconista de pizzaria, lhe dirigisse a palavra sem que ele pudesse responder à altura, colocando-o no seu devido lugar, segundo os seus critérios. Afinal, naquele momento a vítima parecia estar escoltada por um grupo de oito pessoas. Considerava-se humilhado pela situação, inédita para ele.
Joakim voltou e retomou suas atividades. Em seguida, anotou o comportamento de Diego num caderno recheado de outras anotações e vários recortes de jornais e revistas. Colocou o caderno no lugar, sobre o livro Punishment: The Supposed Justifications, escrito por T. Honderich e agora relido em busca de alguns conceitos que enriqueceriam sua pesquisa. Tudo integrava um trabalho de campo, realizado como parte de um estudo do comportamento humano em situações nas quais os riscos de punição de uma prática ilícita ficavam reduzidos em função da circunstância em que foi praticada. A tese a ser defendida visava obter mais um grau em termos de titulação.
Sem esperar, no dia seguinte, Diego e Joakim se encontraram na aula de Sociologia. Ele substituiria o antigo professor, afastado por motivo de doença e em vias de se aposentar da carreira acadêmica.
Joakim acompanhou com particular interesse o desempenho escolar de Diego. Durante esse período, aproveitaria para obter novos elementos para seu objeto de pesquisa. Embora imprevisto, o pontapé inicial daquele caso havia sido interessante. Merecia ser prolongado. Joakim estava certo de que aquela situação poderia render material muito útil para a sua tese. Desejava verificar se no caso de Diego, as aulas, as reflexões e os debates sobre temas relacionados acabariam por provocar alguma espécie de revisão prática dos próprios conceitos.
O conhecimento acumulado por Joakim se condensava como num bloco de mármore, resistência que, no entanto, aceita o desafio de se moldar. Um dos ingredientes era a experiência atuando também numa pizzaria, como balconista, sentindo o pulso de cada novo cliente, expresso no rosto e nas palavras. O outro, a vivência na sala de aula, como professor e estudioso do comportamento humano. Tudo o habilitava para cumprir as exigências acadêmicas e finalmente defender sua tese.
Diego voltou para a universidade no semestre seguinte. Ainda tinha alguns débitos, feitos por excesso de falta e de notas insuficientes para aprovação. Antes disso, esteve algumas vezes na pizzaria. O cavanhaque havia conquistado status de barba, uma barba precária, no entanto. Não encontrou Joakim, agora o novo professor e coordenador no curso de especialização da mesma faculdade.
Diego esperou para ser atendido.
– Aquela mais tostadinha, por favor. E um chope bem gelado.
Comeu, bebeu, pagou, agradeceu e saiu. Quase invisível.
“Obrigado. Volte sempre” – dizia o adesivo junto à saída.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao