A VIAGEM FOI longa. A tranquilidade, breve. Juan viveu a experiência de estar num beco sem saída – tanto quanto essa frase, a sensação que teve já havia se transformado num detestável clichê em sua vida.
Bem cedo, contra qualquer evidência, tomou o primeiro ônibus, lotado. Tomou o trem, lotado. Caminhou entre casas, prédios e avenidas incertas e sem lockdown.
Durante a viagem, tentou fechar os olhos. Mas eles estavam emperrados. Veio o sinal de sonolência, mas Juan não adormeceu. Antes, mastigou em detalhes o compromisso com o trabalho e com a própria família. Não podia falhar. Não agora.
Juan teve dúvidas. Procurou manter a calma, e ela lhe fugiu feito pássaro assustado. Em sua mente, pousou a antecipação de uma tragédia que parecia iminente.
O medo de uma surpresa funesta ampliou-lhe a ansiedade. O conflito era latente e irredutível na sua expressão ameaçadora. Como conciliar a necessidade de enfrentar o desafio e, ao mesmo tempo, fugir de qualquer risco? Tornado concreto, ele bem poderia neutralizar todo seu esforço em prol de quem mais amava: a mulher e as três crianças vitimadas pelo cenário pandêmico e pouco afeito à negociação.
Na fábrica, Juan deixou a embalagem com lanche minguado num armário sem qualquer privacidade.
Esperou num espaço que antecedia a entrada do galpão onde se espalhavam linhas de montagem de sanduíches ditos naturais. Ele seria convocado para entrar? Haveria demanda para sua mão de obra pouco especializada? Viveria novamente um turno com horário incerto, robotizado diante de uma esteira neurótica? Não desejava essa nova experiência. Mas precisava mortalmente de cada minuto que pudesse ficar em cena naquele teatro macabro. A regra maior era viver ou viver. Morrer não podia.
Deixou o casaco, os documentos e o dinheiro do transporte público numa arara, junto de tantos outros. O dia estava frio de matar.
Juan foi chamado por uma voz sinistra. Vestiu outra máscara, agora para vedar o pequeno cavanhaque. Mais uma, para esconder o cabelo.
Com pressa, ele desacomodou os sapatos corriqueiros num pequeno armário, aberto e exposto a vilanias. Assinou o ponto eletrônico, por meio de um crachá que lhe dava uma identidade indesejada.
Lavou as mãos, segundo critérios rígidos estabelecidos pela empresa. Procurou, desesperadamente, por um par de sapatos brancos, parte do uniforme obrigatório, números diferentes entre si, formando algo incômodo que não respeitava o tamanho dos pés.
Novamente Juan lavou as mãos, observado por uma supervisora. Foi direto para o vestiário, onde concluiu a indumentária. Escondeu a roupa civil sob um uniforme. Ao menos na vestimenta ele se mostrava igual a todos, mas isso era apenas uma expressão exterior, que não lhe pertencia.
Seguindo instruções, foi até a Linha B. Quando tinha sorte, encontrava um par de luvas, em local incerto, rapidamente inutilizadas, sem poder fazer a troca.
O operário assumiu o posto diante da esteira que mal podia esperar até que fosse colocada em movimento apressado. Ao mesmo tempo em que se acotovelou com colegas à direita e à esquerda e respirou o mesmo ar daqueles que estavam em frente, numa distância próxima de meio metro – o vírus gosta disso.
Ele robotizou gestos e pensamentos. Na fatia de pão, que já era portadora de alguns legumes, se esforçou para equilibrar duas rodelas de tomate, geladas, às vezes derrubadas antes que fossem postas no lugar, como num mosaico sem arte nem concentração.
Finalmente o número de sanduíches previstos naquela empreitada foi atingido. No lugar de pão e legumes, água com sabão e panos descartáveis. Começava a higienização da esteira. Todos faziam o máximo – era preciso mostrar serviço para o supervisor e exibir uma ótima performance para as câmeras secretas.
O chão foi lavado e secado. Novas caixas de legumes chegaram do refrigerador. Cada um procurava se acomodar, assumir posições mais confortáveis – espalhar cebolas picadas ou pequenas folhas. O que é mais fácil? Sorte é para quem tem.
Alguns postos eram cobiçados. Uma voz repetia o mantra: “Mais rápido! Mais rápido! Mais rápido!” Mãos e braços atingiram a velocidade máxima. Exercício de superação na sua melhor forma. Quando acontecerão as próximas Olimpíadas?
Fim da nova rodada. Higienização da esteira. E chegou a hora do almoço. Juan tirou a máscara. Tirou o avental. Livrou-se dos sapatos desconfortáveis, mortalhas de pés que agora batiam palmas. Lavou as mãos. Marcou o ponto eletrônico. Assinou a folha que fica na entrada. Amedrontado, correu para o refeitório – o tempo era escasso. Descobriu que a embalagem com seu lanche fora violada, tudo estava no chão, alimentando as moscas. Compraria um almoço, mas o pouco dinheiro lhe fora subtraído por forasteiros com quem dividiu a esteira. Sem almoço, portanto, naquele dia insano. Apenas uma voz lembrando que a Linha F o aguardava e sugerindo que meia hora é tempo demais para almoçar. Ou para não comer nada, apenas engolir o desconforto infernal daquela situação.
Tomar remédios corriqueiros? Não podia, eles seriam retidos na Portaria da empresa. Escovar os dentes? Proibida a entrada de creme dental. Banheiro? Se for muito, muito rápido – converse com suas entranhas. Voltou e assumiu a Linha F. Tudo de novo. O mesmo ritual, a mesma liturgia.
De repente, foi levado, com seu medo, para a Linha C – ele que inventasse na hora a habilidade necessária para a próxima tarefa. Não, não teve treinamento prévio. Não lhe ofereceram conhecimentos sobre qualquer trabalho. Negaram-lhe a chance de adquirir habilidades. Apenas lhe exigiram atitude para realizar o que garantia a sobrevivência biológica, sua e da família, por mais algum tempo.
A que horas termina esse turno? É melhor se ocupar com a busca por respostas para questões menos complexas como o mistério da Santíssima Trindade, de onde viemos, quem somos e para onde vamos. Esqueça.
Mas até mesmo o final da jornada chegou. Juan tirou a máscara. Tirou o avental. Livrou-se dos sapatos desconfortáveis. Lavou as mãos. Marcou o ponto eletrônico. Assinou a folha que fica na entrada. Correu para o ponto de ônibus. Aquele veículo lhe ofereceu a experiência semelhante à que foi vivida pelo povo hebreu no dia feliz em que Deus abriu o Mar Vermelho para que, bem rápido, fugisse das garras do Faraó e do peso da escravidão, rumo à Terra Prometida.
Em casa, Juan tomou banho. Jantou o que foi possível. Descansou alguma coisa. Dormiu um sono feito de pesadelos e ansiedade. O que teria vindo com ele para casa? O tempo revelaria tudo sem qualquer diplomacia e com o sincericídio que o define. O termômetro não é culpado pela febre que revela.
Era a vida transformada numa grande esteira, roleta russa que a colocava em perigo constante. Apesar de tudo.
Rubens Marchioni é Youtuber, palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor dos livros Criatividade e redação, A conquista e Escrita criativa. Da ideia ao texto. [email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao