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Apenas um mimo | Rubens Marchioni

O multiprocessador já estava sobre a ilha feita de mármore, esperando apenas que lhe dissessem o que deveria fazer. Deniz mantinha um interesse genuíno por assuntos ligados à culinária. Agora testava um prato à base de salmão, que nunca faltou na sua geladeira.

Apenas um mimo | Rubens Marchioni

Ele sempre gostou muito de frequentar a enorme cozinha da sua casa, onde preparava pratos muito interessantes, nem sempre convencionais e reunia amigos para jantares Made in Ele Mesmo. Não sei o que pensariam os grandes chefs, e os críticos especializados sobre as suas alquimias gastronômicas, algumas no estilo clássico, feitas pelas mãos de um homem com um ar de autoridade que não sabia esconder. No mais, sua convicção religiosa, à moda de São Tomás de Aquino, o impedia de jogar no lixo qualquer alimento que pudesse, de alguma forma, ser aproveitado. Tudo pronto, compartilhava em algumas redes sociais as suas novas experiências.

Movido pelo medo cruel de sofrer amnésia, depois de abrir uma garrafa de vinho, Deniz imediatamente correu para a cozinha. Paramentado de avental e munido de facas de primeira linha, logo começou a cortar a carne e os legumes, antes que se esquecesse do que deveria fazer e isso significasse para ele um sinal de alerta. Deniz não podia se esquecer. Talvez se esquecesse de nunca esquecer nada, mas sempre faria todos os esforços para se lembrar de não se esquecer – será que esqueci alguma coisa?

Ele era doutor em Economia, título conquistado em Harvard. E não economizava esforços para ler os últimos livros, conhecer as últimas teorias e aplicá-las o quanto pudesse no trabalho num banco estatal, onde usava uma sala da Diretoria. Desejava muito que seu nome fosse cada vez mais reconhecido no setor, talvez tivesse até mesmo alguma ambição política, quem sabe um ministério, por que não? Precisava trabalhar muito para isso, ganhar espaço na mídia e evitar conversas sobre política para manter a privacidade da sua visão de centro-direita.

Ler, saber muito, saber mais e mais não o livrava de situações embaraçosas. Vez por outra se dava conta de estar andando sobre uma corda bamba, atravessando do topo de um prédio para a cobertura do outro, distantes entre si apenas 110 metros, em dia de ciclone extratropical. Era do jogo. Vida de diretor de instituição financeira tem lá suas flutuações, ora em alta, ora em baixa. Era visível o seu medo de ficar pobre, sobretudo pobre de espírito.

Um dia, Deniz recebeu uma caixa, uma linda caixa. Tratava-se de um presente. Mas não era para ele, que seria apenas o portador do mimo pensado para sua esposa. Dentro, uma coleção de echarpe, produto assinado por um estilista italiano cujo nome me esqueci – apenas me lembro de que sua marca frequentava lojas de grife, nas capitais mais importantes do mundo. No fundo da caixa, reluzia um relógio que fez brilhar os olhos cor de esmeralda de Anne.

Com uma felicidade incerta, ela estava pronta para vestir uma echarpe, que trocaria pela outra, mas preferiria a terceira, para finalmente ver como ficava a quarta e acabar optando pela quinta peça da coleção, que afinal combinava com o relógio e os cabelos cacheados da cor do sol. Os demais ela acomodou num cabide, selecionado para abrigar aquelas obras de arte da costura de altíssimo nível, arte exclusiva feita de tecido, e cuidou com o mesmo carinho da joia Made in Swiss.

Aqueles objetos se transformaram, num primeiro momento, no seu bezerro de ouro, diante dos quais só lhe faltava fazer orações e pedir as bênçãos necessárias para impactar, o quanto pudesse, o meio social. Sobretudo suas amigas, aquelas invejosas, fofoqueiras e mal amadas, que adoravam fotos bombásticas para se promover. “Você viu o echarpe que ela está usando, que coisa cafona, suburbana! E o relógio, então!” – elas diriam.

Isso, é claro, criava um abismo entre elas, porque a competição feita com tamanha intensidade e nenhuma elegância de ambas as partes, jamais poderia construir pontes.

O presente de Elias, um ato de ousadia, visava marcar presença nas conversas que Anne teria com o marido quando estivessem relaxados. Elias queria que seu nome e sua posição social e profissional fossem mencionados por ela, definindo-o como um homem elegante, gente que sabia agradar uma mulher. Esse comentário, vindo da esposa de Deniz, bem poderia ajudar o cliente na hora de conseguir vantagens para si mesmo num próximo negócio, negócio recheado de zeros, falando a linguagem do dinheiro americano, nada menos que isso.

Inseguro quanto à sua capacidade pessoal de direcionar as coisas, encaminhando tudo para encontros promissores entre os dois, Elias concluiu que era preciso transferir a liderança do processo à outra pessoa, de preferência aquela que dividia a aliança, os filhos e a cama com Deniz. Sem saber, ela faria direitinho o trabalho de assessora de Elias junto ao marido, homem com certa dificuldade crônica de dizer não à Anne.

Sempre mantendo o hábito pouco ortodoxo de comer com os cotovelos à mesa, sem qualquer demora o cliente tratou de mencionar sua marca preferida de vinho. Isso era bem o estilo de Elias.

Deniz logo se lembrou do presente finíssimo enviado pelo cliente à Anne e agradeceu com muita convicção. Falou do quanto a esposa era grata a ele. Elias fez questão de perguntar se ela havia mesmo gostado do mimo, sempre com a intenção de conseguir que Deniz reforçasse seu apreço por ele e assumisse a sua condição de devedor, mantendo-se disposto a lhe prestar favores financeiros, pessoais e corporativos.

Estrategicamente, o economista gourmet entrou no jogo do cliente. Sempre muito grato pelo gesto inusitado, claro.

Deu certo. Deu certo? Deniz sugeriu que Elias falasse com um colega, no banco, com poderes maiores ainda para liberar tudo o que o cliente desejasse. De volta para o trabalho, ele tratou de orientar o colega, recomendando que negasse o pedido do cliente. A atitude foi reforçada por Anne, que se sentiu usada, talvez por se tratar de mulher, e esperou o momento certo de desbancar o machismo descarado do cliente.

O primeiro passo de Elias foi descobrir o nome da esposa daquele que controlava algumas chaves. O presente não demorou a chegar. Essa era sua tática, a única que conhecia.

Mas os quatro, inclusive Anne, já sabiam de tudo. Não deu certo. Não teve almoço que resolvesse. Num jantar na casa de Deniz, as duas esposas cuidaram para não repetir a echarpe e o relógio que a outra usaria. Isso deu certo. E o novo prato preparado pelo marido gourmet estava tão gostoso quanto as melhores experiências da vida. Brindaram e a noite seguiu seu curso. Elias, pobre coitado, saiu com o estômago vazio de promessas retumbantes.


Rubens Marchioni é palestrante, produtor de conteúdo e escritor. Autor de livros como A conquista Escrita criativa. Da ideia ao texto[email protected]. https://rumarchioni.wixsite.com/segundaopcao

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